Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

CONSCIÊNCIA E CULTURA - As interações com o ambiente

      Agora vamos estudar nosso tema empregando um ponto de vista mais sociológico ou de uma psicologia social.


Durkheim: consciência coletiva
    Boa parte dos conteúdos que preenchem a cada instante nossa consciência são informações que nos chegam de fora já "prontas", podendo ser "processadas" depois no contexto de novas experiências. Freud chamou a atenção para o fato de que muitos desses conteúdos — absorvidos por nós desde a mais tenra infâncias, mesmo não sendo totalmente conscientizados — acabam moldando nossa consciência moral (a noção de como se deve agir) e nosso eu ideal (a pessoa que queremos ser).
      Trata-se de normas e visões de mundo que aprendemos da família e do meio social a que pertencemos. Em seu conjunto, podemos dizer que esses elementos culturais constituem outro tipo de consciência, que é coletiva, como aponta um contemporâneo de Freud, o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917):

"O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria; poderemos chamá-lo consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; é, por definição, difusa em toda extensão da sociedade; mas não deixa de ter caracteres específicos que fazem dela uma realidade distinta. Com efeito, é independente das condições particulares em que os indivíduos estão colocados; eles passam, ela permanece. É a mesma no norte e no sul, nas grandes e pequenas cidades, nas diferentes profissões. Da mesma forma, não muda a cada geração, mas, ao contrário, liga umas às outras as gerações sucessivas. Portanto, é completamente diversa das consciências particulares, se bem que se realize somente entre indivíduos. Ela é o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu medo de desenvolvimento, tudo como os tipos individuais, embora de uma outra maneira." (Da divisão do trabalho social, p. 40).

      Durkheim concebe, portanto, a existência de uma consciência coletiva como uma realidade distinta do indivíduo, no sentido de que não é minha nem sua, não é pessoal, não "nasce" de nós individualmente. Ela pertence a um ou outro grupo social ou à sociedade inteira e passa de geração em geração, podendo ser estudada como um fenômeno específico. No entanto, como a consciência coletiva é absorvida por cada um de nós e opera também dentro de nossa mente, ela passa a ser nossa consciência também.

Bruxelas — Henri Cartier-Bresson. A imagem denota a existência de uma consciência difusa, que não é individual, mas que nos "penetra" de maneira variada.

      Quando dizemos, por exemplo, "Precisamos de cidadãos conscientes", "Agiu de acordo com sua consciência" ou "Eu não tinha consciência", estamos falando de uma consciência individual como um saber que envolver não apenas possuir uma informação, mas também sentir que essa informação é a mais adequada. E esse sentido de adequação é dado, de modo geral, pela consciência coletiva, que funciona dentro de nós como um filtro cultural orientador de nossa percepção: isso é bom, aquilo não é; isso é belo, aquilo é feio; isso pode, aquilo é proibido; isso existe, aquilo é ficção; isso eu vejo, aquilo eu ignoro; e assim por diante. Em consequência, teríamos dentro de nós dois tipos de consciência, ou, como expressou Durkheim:

"Existem em cada uma de nossas consciências [...] duas consciências: uma é comum com o nosso grupo inteiro e, por conseguinte, não somos nós mesmos, mas a sociedade vivendo e agindo dentro de nós. A outra representa, ao contrário, o que temos de pessoal e distinto, o que faz de nós um indivíduo. [...] Existem aí duas forças contrárias, uma centrípeta e outra centrífuga, que não podem crescer ao mesmo tempo." (Da divisão do trabalho social, p. 69).

      Isso quer dizer, por exemplo, que se eu penso demais em meus interesses pessoais (consciência individual, força centrífuga), dando pouco "espaço mental" para os interesses dos outros, posso sofrer depois a pressão moral advinda do grupo ou da sociedade que se vê afetada (consciência coletiva, força centrípeta). A coesão social dependeria, portanto, de acordo com Durkheim, de "certa conformidade" das consciências particulares à consciência coletiva, a qual se expressa principalmente por meio das normas morais e das leis, isto é, do direito.
      O importante é que você perceba aqui o que considera sua maneira própria de pensar e observar — isto é, sua consciência — está moldada, em grande parte, por sua cultura. E que descubra que muitos de seus pensamentos e valores "indiscutivelmente próprios e verdadeiros" podem estar condicionados por um conjunto de construções culturais e visões da realidade fornecidas pela sociedade, o qual pode variar no tempo (épocas distintas) e no espaço (de um lugar para outro).


Modos de consciência
    Por tudo o que acabamos de estudar, você deve ter notado não só que a consciência pode ser entendida de distintas maneiras — dependendo do aspecto que se destaque nela —, mas também que há diferentes maneiras de estar consciente. De fato, cada um de nós pode se relacionar com a realidade em múltiplos modos e sentidos, e isso se expressaria em nossa produção cultural.
      Na interpretação do filósofo alemão Georg W. E. Hegel (1770-1831), haveria três grandes formas de compreensão do mundo: a religião, a arte e a filosofia. A diferença entre elas estaria no modo de consciência que se destaca em cada uma: enquanto a religião apreende o mundo pela fé, a arte o faz pela intuição e a filosofia, pela razão. Vejamos cada uma.


Consciência religiosa
    A consciência religiosa é um modo de perceber e entender a realidade que busca ir além dos limites definidos pela vivência imediata e cotidiana. Desse modo, integra o elemento sobrenatural, a noção de que existe um poder superior e inteligente, isto é, a divindade. Trata-se de uma experiência baseada geralmente na , na crença inabalável nas verdades reveladas, que conduziria a uma percepção do divino ou do transcendental. O sentir do "coração" é mais importante na compreensão da realidade. O espaço e o tempo são vividos de uma maneira distinta da comum, em uma procura de conexão com a dimensão do sagrado e do eterno.

Transcendental — que vai além da realidade sensível; que está em outra dimensão, em outro mundo, geralmente tido como superior ou fundamental.
Sagrado — que se relaciona com o divino, ou que se insere em uma dimensão maior, mais ampla que a experiência cotidiana, isto é, o profano.

Ritual xamânico na Rússia. O xamanismo busca estabelecer uma ligação entre as dimensões do natural e do sobrenatural.

"Em qualquer sociedade, a religião define um modo de ser no mundo em que transparece a busca de um sentido para a existência. Nos momentos em que a vida mais parede ameaçada, o apelo religioso se torna mais forte. As crenças religiosas e as mágicas são, para os que as adotam, formas de conhecimento e teorias da natureza do universo e do homem. As práticas religiosas e mágicas são, portanto, relacionadas frequentemente com a procura de verdades que, segundo se imagina, os homens devem conhecer para seu próprio bem e que estão acima do conhecimento comum ou da dedução puramente racional.
[...] Para aquelas pessoas que têm uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmo, ou seja, o conjunto do universo, em sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania, isto é, uma manifestação do sagrado." (Macedo, Imagem do eterno: religiões no Brasil, p. 15-16).

      No caso do cristianismo, essa perspectiva religiosa teve de conviver historicamente com o desenvolvimento da razão filosófica e científica e adequar-se a esta em vários momentos. Os longos debates travados entre os defensores da fé e os da razão durante a Idade Média não conseguiram, no entanto, conciliar satisfatoriamente essas duas concepções.
      No período seguinte, a discussão prosseguiu entre os filósofos. Descartes, por exemplo, colocava a ênfase na razão, enquanto o francês Blaise Pascal (1623-1662) fazia o contraponto ao afirmar que "o coração tem razões que a razão desconhece" (Pensamentos, p. 107). Em outras palavras, existem outras possibilidades de conhecer das quais a consciência racional não participa.


Consciência intuitiva
    A intuição é uma forma de tomar consciência que pode ser descrita como uma percepção que se traduz em um saber imediato, ou seja, que não passa por mediações racionais. Ocorre como um insight (termo inglês que designa a compreensão repentina de um problema ou situação). Desse modo, a intuição distingue-se do conhecimento formal, refletido, que se constrói por meio de argumentos. Seu melhor campo de expressão são as atividades artísticas e literárias.
      É possível falar na existência de uma intuição sensível e uma intuição intelectual. O filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) referia-se à intuição intelectual como o conhecimento imediato de alfo universalmente válido que, posteriormente, poderia ser demonstrado por meio de argumentos. De fato, a história da ciência relata que muitas das grandes descobertas científicas deram-se primeiro como intuições e só depois foram comprovadas experimentalmente e fundamentadas em uma teoria.
      A intuição sensível, por sua vez, seria um conhecimento imediato restrito ao contexto das experiências individuais, subjetivas. Ou seja, são aquelas "leituras de mundo" guiadas pelo conjunto de experiências de cada indivíduo e que, dessa forma, só podem ser "decifradas" a partir de suas vivências isoladas. Por exemplo: você nunca teve alguma sensação estranha ou suspeita sobre algo, sem saber bem por que, e depois descobriu que sua impressão estava correta? Muitas vezes basta apenas um pequeno sinal, um olhar, um gesto, umas palavras soltas, que se juntam automaticamente com nossa vivência passada e surge a intuição.


Consciência racional
    A consciência racional é o modo de perceber e entender a realidade baseado em certos princípios estabelecidos pela razão (portanto, lógicos), como, por exemplo, o de causa e efeito (que diz que todo efeito deve ter a sua causa) e o de não contradição (que diz que um argumento não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo). Veja duas situações bem simples: quando uma pessoa diz que bateu no carro da frente porque este parou bruscamente, está tentando encontrar uma explicação racional pra o que ocorreu (baseada na relação de causa-efeito); quando um suspeito prova que às 10 horas da manhã estava no trabalho e que, portanto, não poderia estar na cena do crime, também está usando um argumento lógico.
      A consciência racional pretende alcançar uma adequação entre pensamento e realidade, isto é, entre explicação e aquilo que se procura explicar. Para chegar a esse objetivo desenvolve um trabalho de abstração e análise. Abstrair significa separar, isolar as partes essenciais. Analisar significa decompor o todo em suas partes. A finalidade desse procedimento seria compreender o que define e caracteriza fundamentalmente o objeto em estudo ou alcançar a "essência" de determinado fenômeno.
      Este é o modo de consciência próprio da filosofia (pelo menos da tradição filosófica ocidental), compartilhado também pela ciência. Esses dois campos do saber racional mantiveram-se ligados por muito séculos, mas; a partir da revolução científica, no século XVII, foram desmembrados e hoje guardam características próprias.


A existência social condiciona nossa consciência ou nossa consciência constrói a existência social?
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