Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

As lágrimas negadas - Santo Agostinho

    Fechei-lhe os olhos, e uma tristeza imensa invadiu-me o coração, e já me ia desfazer em lágrimas; ao mesmo tempo, meus olhos, obedecendo ao enérgico poder de minha vontade, fechavam sua fonte até secá-la. Como foi angustiosa essa luta! E foi quando ela deu o último suspiro, que o meu filho Adeodato rebentou em soluços; mas, instado por todos nós, se calou. Deste modo sua voz juvenil, voz do coração, calou em mim essa espécie de emoção pueril que me provocava o pranto. De fato, não julgávamos correto celebrar aquele funeral com lágrimas e choro, pois tais demonstrações deploram geralmente o triste destino dos que morrem, ou sua total extinção. A morte de minha mãe não era uma desgraça, e ela não morria para sempre, e disto estávamos certos pelo testemunho de seus costumes, por sua fé sincera e outras razões inequívocas.
    Que era então o que tanto me pungia, senão a ferida recente causada pelo rompimento repentino de nosso dulcíssimo e querido convívio?
    Era para mim grande consolação o testemunho que dera de mim, quando nesta última enfermidade, respondendo com ternura às minhas atenções, chamava-me de bom filho, e recordava com grande afeto o nunca ter ouvido de minha boca uma só palavra dura ou injuriosa contra ela. Entretanto, o que era, meu Deus e meu Criador, a solicitude que eu lhe tributava, em comparação com o devotamento servil que por mim suportava? Por me ver privado de tão grande consolo, sentia a alma ferida e minha vida, que era uma só com sua, estava despedaçada.
    Reprimido o prato do Adeodato, Evódio tomou o saltério e começou a cantar um salmo, ao que todos respondíamos "Misericórdia e justiça te cantarei, Senhor". Conhecia a notícia de sua morte, acorreram muitos irmãos e mulheres piedosas e, enquanto os encarregados dos funerais faziam seu ofício conforme o hábito, retirei-me para um lugar conveniente, junto com os amigos que julgavam oportuno não me deixar só. Falava sobre assuntos próprios das circunstâncias, e com o lenitivo da verdade mitigava meu sofrimento, só conhecido por ti. Eles o ignoravam e me ouviam atentamente, julgando que não sofria nenhuma dor.
    Mas eu, pertinho de teus ouvidos, onde ninguém me podia escutar, censurava a minha sensibilidade e fraqueza e reprimia a onda de tristeza que me invadia; esta cedia por uns instantes, e novamente me arrastava com seu ímpeto, embora não chegasse a derramar lágrimas ou alterar a face. Somente eu sabia quão oprimido estava meu coração! E como me desgostava profundamente que as vicissitudes humanas estivessem tanto poder sobre mim, que são inelutáveis pela ordem natural e a sorte de nossa condição; minha própria dor causava-me outra dor, e me afligia com dupla tristeza.
    Quando o corpo foi levado à sepultura, fui e voltei sem derramar uma lágrima. Nem mesmo nas orações que te fizemos, quando oferecemos o sacrifício de nossa redenção por intenção da morta, cujo cadáver jazia junto ao sepulcro antes de ser inumado, como ali é costume, nem mesmo nessas orações, chorei. Mas durante todo o dia andei oprimido por grande tristeza interior; podia-te como podia, com a mente perturbada, que aliviasses minha dor. Mas não me atendias, sem dúvida para que fixasse, bem na memória, ao menos por esta única experiência, como são poderosos os laços do costume, mesmo em uma alma que já não se alimentava de palavras enganadoras.
    Lembrei então a ir aos banhos, por ter ouvido dizer que a palavra banho (bálneo, em latim) vinha dos gregos, que o chamaram balanéion (tirar fora a ania), porque o banho aliviava as tristezas da alma. Mas eu o confesso à tua misericórdia — ó Pai dos órfãos: depois do banho fiquei como estava antes, porque meu coração não expulsou o amargor de sua tristeza.
    Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito, lembrei-me dos versos cheios de verdade de teu Ambrósio. Porque, na verdade
    Tu és Deus, criador de quanto existe,
    De todo o mundo supremo governante, 
    Que o dia vestes com tua luz brilhante,
    E de sonhos gratos a noite triste
    A fim de que os membros cansados
    O descanso ao trabalho prepare
    E as mentes cansadas, repare
    E os peitos de pena oprimidos
    Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva. Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, da qual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, por causa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimas reprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meu coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem, que pudesse interpretar com soberba meu pranto.
    E agora, Senhor, te confesso nestas linhas: leia-o quem quiser, interprete-o como quiser. E se alguém julgar que pequei nessas lágrimas, que derramei sobre minha mãe por alguns instantes, por minha mãe então morta a meus olhos, ela que me havia chorado tantos anos para que eu vivesse aos teus olhos, não se ria. Antes, é grande sua caridade, chore por meus pecados diante de ti, Pai de todos os irmãos de teu Cristo!



Confissões, Santo Agostinho





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Teseu e Minotauro, Dédalo e Ícaro

    Na ilha de Creta reinava Minos. Um dia, Poseidon enviou-lhe, surgido do mar, um touro, que o rei lhe deveria sacrificar. Minos, porém, guardou para si o animal. A esposa de Minos, Pasífae, apaixonou-se pelo animal. Essa paixão deve ter sido uma vingança de Poseidon, o rei do mar, ou de Afrodite, a deusa do amor, de cujo culto a rainha tinha descuidado.
    Vivia em Creta um célebre arquiteto, escultor e inventor, Dédalo. Foi esse homem quem construiu para Pasífae uma novilha de bronze, oca, para que a rainha, pondo-se em seu interior, pudesse atrair o touro. Assim Pasífae se uniu àquele animal. Da união nasceria um monstruoso homem com cabeça de touro — o Minotauro.
    Quando nasceu o filho de Pasífae e do touro, Minos, envergonhado, fez com que Dédalo construísse um labirinto para aí deixar aquela criança monstruosa. Com seus inúmeros corredores, salas e galerias, criados de maneira a fazer perder a direção e confundir até o mais astuto dos homens, o labirinto só era dominado pelo próprio Dédalo: quem ali entrasse, não conseguia mais sair.
    Com o passar dos anos, o Minotauro foi crescendo no labirinto, longe dos olhares das pessoas. Ora, Minos, tendo derrotado os atenienses em batalha, exigiu deles um tributo sinistro: todos os anos, Atenas deveria enviar sete rapazes e sete moças para serem devorados pelo Minotauro. Pode-se imaginar  o terror que deveria se apossar de quem, perdido na confusão dos caminhos tortuosos, sentia aproximar-se de si aquela criatura grotesca que habitava o labirinto... Disposto a pôr um fim a essa situação, o herói ateniense Teseu foi um dia a Creta, junto com os outros jovens destinados à morte certa.
    Quando Teseu chegou à ilha, Ariadne, filha de Minos e Pasífae, apaixonou-se pelo jovem. Desejando salvá-lo da morte no labirinto, a moça lhe deu um novelo com um fio: Teseu deveria desenrolá-lo à medida que penetrasse naquele emaranhado. Quem tivera a ideia fora Dédalo. Foi assim que o herói, depois de matar o Minotauro, encontrou facilmente a saída, seguindo o caminho criado pelo fio de Ariadne.
    Ao saber do que ocorrera, Minos, enfurecido, aprisionou Dédalo e seu filho Ícaro no labirinto, pois julgava que o arquiteto tinha sido cúmplice daquela traição. Haveria de ser a morte para os dois, se Dédalo, sempre astucioso e inventivo, não tivesse encontrado um meio de escapar. Fez, com penas de aves coladas com cera, um par de asas para si e outro para o filho.
    Antes de saírem por uma das altas janelas do labirinto, Dédalo fez uma recomendação a Ícaro. Que ele, sob hipótese alguma, se aproximasse do sol; deveria voar nem muito alto nem muito baixo, entre o céu e a terra. Partiram.
    Mas Ícaro não obedeceu ao conselho paterno. Chegando demasiado perto do sol, a cera das asas derreteu, e as penas dispersaram-se nos ares. De repente o moço se viu agitando braços nus.
    Chamando em vão pelo pai, Ícaro caiu nas águas azuis do mar Egeu.



Labirinto em moeda do século III a.C. A imagem do labirinto tem sido retomada das mais variadas formas, na literatura, nas artes em geral, no cinema etc. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, em uma de suas conferências, interpretou a imagem do labirinto como símbolo dos intestinos, ao passo que o fio de Ariadne seria o cordão umbilical! Um exemplo de como os mitos podem ser usados para vários fins — e, neste caso, "abusados"... Você já deve ter ouvido falar no "Complexo de Édipo", que tem seu nome derivado de um mito grego: o rei Édipo, sem saber, assassina seu próprio pai e se casa com sua mãe; ao saber a verdade, cega a si mesmo. Este mito (e a tragédia grega de Sófocles que dele trata) era muito caro a Freud. Mas é com Jung que o recurso aos mitos se torna recorrente na psicologia.


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Prometeu, o primeiro benfeitor da humanidade

    Dizia-se que Prometeu criara os primeiros homens a partir do barro. Desejando ajudar essa humanidade primitiva, provocou por vezes a cólera de Zeus. Um dia, durante um sacrifício de um boi aos deuses, Prometeu cobriu com o couro a carne e as vísceras do animal; quanto aos ossos, passou neles uma espessa camada de gordura. Convidado a escolher a sua parte, Zeus, sem saber da trapaça, atraído pela gordura, acabou ficando com os ossos. É por isso que nos sacrifícios os gregos queimavam a gordura e os ossos para os deuses, mas a carne e as vísceras eram comidas pelos participantes da cerimônia.
    Ao descobrir que tinha sido enganado para favorecer os homens, o pai dos deuses resolveu vingar-se privando a humanidade do fogo. Novamente, porém, Prometeu interveio em socorro dos mortais, desta vez roubando para eles uma centelha de fogo divino. A cólera terrível de Zeus maquinou uma punição exemplar.
    Zeus enviou aos homens a primeira mulher, que os deuses Hefesto e Palas Atena, ajudados pelos demais, criaram. Cada um dos deuses lhe concedeu determinadas características: Afrodite lhe atribuiu a beleza e o encanto. Palas Atenas ensinou-lhes tarefas femininas, Hermes, astúcia, o fingimento e a mentira, além do dom da palavra. Foi este último quem a chamou Pandora, que foi enviada à terra como se fosse um presente para os homens. Essa primeira mulher levava consigo uma jarra tampada, na qual os deuses haviam colocado todos os males e desgraças imagináveis.
    Na terra, Pandora não conseguiu conter a curiosidade e destampou a jarra. Imediatamente, males e desgraças espalharam-se por todos os lados. Até então, os homens tinham vivido em paz, sem doenças, fome ou guerras. Pandora precipitadamente voltou a tampar a jarra, mas já todos os males tinham escapado, com exceção da esperança. Foi assim que a justiça de Zeus puniu os homens.
    Quanto a Prometeu, foi acorrentado a um rochedo. Uma águia vinha de dia roer-lhe o fígado; à noite, a parte que faltava renascia milagrosamente, tornando eterno o seu suplício.
    Muito tempo depois, Hércules, um outro benfeitor da humanidade, mataria a águia e libertaria Prometeu.




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O absurdo dos horóscopos - Santo Agostinho

    Também já havia rechaçado as enganosas predições e ímpios delírios dos astrólogos.
    Ainda, por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o mais íntimo de minha alma! Foste tu, e só tu — pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a vida que desconhece a morte, a sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem precisar de outra luz, e que governa o mundo até as folhas que tremulam nas árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunha ao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam — o primeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente — não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos homens muitas vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam em predizer algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem.
    Foste tu que me fizeste encontrar um amigo mui afeiçoado a consultar os astrólogos, não entendido dessa ciência, mas que consultava por curiosidade. Conhecia ele uma história, que ouvira do pai, segundo dizia. Ignorava ele até que ponto essa história era valiosa para destruir a autoridade daquela arte.
    Esse homem, chamado Firmino, educado nas artes liberais e instruído na eloquência, veio-me consultar, como amigo íntimo, sobre alguns assuntos nos quais alimentava esperanças mundanas, para ver qual seria meu vaticínio conforme suas constelações, como eles dizem. Eu, que já começara a me inclinar à opinião de Nebrídio, embora não me negasse a fazer-lhe o horóscopo e expor-lhe as suas conclusões, contudo, que estava quase persuadido de que tudo aquilo era ridícula quimera.
    Então, ele me contou que seu pai tinha grande interesse na leitura de tais livros, e que tivera um amigo igualmente apaixonado. Conversando sobre a matéria, empolgaram-se cada vez mais no estudo daquelas tolices, e chegaram ao ponto de observar os momentos no nascimento até dos animais domésticos, notando a posição das estrelas a fim de coligir dados experimentais daquela pseudo-arte.
    Firmino me relatava ter ouvido o pai contar que, estando sua mãe para dar à luz, também estava grávida uma serva daquele amigo de seu pai, coisa que não poderia passar despercebida a seu senhor, que cuidava com extrema diligência e precisão de conhecer até o parto das cadelas.
    E sucedeu que, contando com o maior esmero os dias, horas e suas menores parcelas, da esposa e da escrava, ambas as mulheres deram à luz, no mesmo momento, o que os obrigou a fazer, até em seus menores detalhes os mesmos horóscopos para os nascidos, um para o filho e outro para o pequeno servo.
    Tendo começado o trabalho de parto, informaram um ao outro o que se passava em suas casas, e enviaram mensageiros um ao outro, a fim de anunciar com igual rapidez o nascimento das crianças; e conseguiram-no fazer facilmente, como se o fato se passasse em suas próprias casas. E Firmino contava que os mensageiros que haviam sido enviados vieram a se encontrar à mesma distância de suas respectivas casas, de modo que não se podia notar a menor diferença na posição das estrelas, assim como nas demais frações de tempo. No entanto, Firmino, como filho de grande família, corria pelos mais brilhantes caminhos do mundo, crescia em riquezas e era coberto de honras, ao passo que o escravo, sujeito ainda ao jugo da escravidão, tinha que servir a seus senhores, segundo ele próprio contava, pois o conhecia.
    Ouvindo essa história, na qual acreditei pelo crédito que merecia seu narrador — toda minha resistência se quebrou. Esforcei-me em seguida para afastar Firmino daquela vá curiosidade, dizendo-lhe que, pelo seu horóscopo e para ser verdadeiro, deveria certamente considerar a seus pais como os primeiros entre seus concidadãos; o renome da sua família, a mais nobre da cidade; seu nascimento ilustre; sua educação esmerada e seus conhecimentos nas artes liberais. E, pelo contrário, se aquele servo me consultasse sobre o tal horóscopo — que era o mesmo de Firmino — se também tivesse de lhe dizer a verdade — deveria ver nos mesmos signos sua família paupérrima, sua condição servil e tantas outras coisas, tão diferentes e opostas às primeiras.
    Portanto, para dizer a verdade, vendo os mesmos sinais celestes deveria tirar conclusões divergentes, porque fazer prognósticos semelhantes seria mentir.
    De onde concluí, com toda certeza, que as predições verdadeiras não podem atribuir a uma arte, mas ao acaso, e que as falsas não se devem ``a ignorância dessa arte, mas à mentira do acaso.
    Após esta abertura e nela baseado, ruminava dentro de mim tais coisas, para que nenhum daqueles loucos que buscam nisso o lucro, e a quem eu então desejava refutar e ridicularizar, não me objetasse que Firmino ou o pai podia ter contado mentiras. Voltei pois minha atenção ao caso dos gêmeos, muitos dos quais saem do seio materno com tão breve intervalo de tempo, que por mais que o pretendam importante, não pode ser apreciado pela observação humana, nem pode ser considerado nos signos que o astrólogo lançará mão para fazer uma previsão certa. Mas os vaticínios não serão verdadeiros pois, vendo os mesmos signos, deveria predizer a mesma sorte para Esaú e Jacó, sendo que os sucessos da vida de ambos foram muito diversos.
    O astrólogo, portanto, deveria prognosticar coisas falsas, ou, no caso de falar coisas verdadeiras, estas forçosamente deveriam ser diferentes, a despeito da identidade das observações. Logo, se seus prognósticos fossem verdadeiros, não o seriam por efeito da arte, mas do acaso. Porque tu, Senhor, governador justíssimo do Universo, por inspiração secreta, desconhecida dos consulentes e astrólogos, fazes que cada um ouça a resposta que lhe convém, de acordo com os méritos das almas, do fundo do abismo de teu justo juízo. E que o homem não se atreva a dizer: Que é isto? Por que isto? Não o diga, porque é um simples homem.




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Apologia de Sócrates - Parte XXIX e XXX

XXIX

    Quanto àqueles cujos votos me absolveram, eu teria prazer de conversar com eles a respeito deste caso que acaba de ocorrer enquanto os magistrados estão ocupados, enquanto não chega o momento de ter de ir ao lugar onde terei de morrer. Ficai, pois, comigo este pouco de tempo, ó cidadãos, porque nada nos impede de conversarmos mais um pouco, enquanto se pode. É que a vós, como meus amigos, quero mostrar que não desejo falar do meu caso presente. A mim, de fato, ó juízes — uma vez que, chamando-vos juízes vos dou o nome que vos convém — aconteceu qualquer coisa de maravilhoso. Aquela minha voz habitual do demônio (daimon = gênio) em todos os tempos passados me era sempre frequente e se oponha ainda mais nos pequeninos casos, cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males; pois bem, o sinal do Deus não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. Em todo este processo, não se opôs uma só vez, nem a um ato, nem a palavra alguma.
    Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu caso pode ser um bem, e estamos longe de julgar retamente quando pensamentos que a morte é um mal. E disso tenho uma grande prova: que, por muito menos, normalmente, o meu gênio se me teria oposto, se não fosse para fazer alguma coisa de bem.
    Passemos a considerar a questão em si mesma, de como há grande esperança de que isso seja um bem.
    Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja, ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração deste lugar para um outro. Se, de fato, não há sensação alguma, mas é como um sono, a morte seria um maravilhoso presente. Creio que, se alguém escolhesse a noite na qual tivesse dormido sem ter nenhum sonho, e comparasse essa noite às outras noites e dias de sua vida e tivesse de dizer quantos dias e quantas noites na sua vida havia vivido melhor, e mais docemente do que naquela noite, creio que não somente qualquer indivíduo mas até um grande rei acharia fácil escolher a esse respeito, lamentando todos os outros dias e noites. Assim, se a morte é isso, eu por mim a considero um presente, porquanto, desse modo, todo o tempo se resume a uma única noite.
    Se, ao contrário, a morte é como uma passagem deste para outro lugar, e, se é verdade o que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual o bem que poderia existir, ó juízes, maior do que este? Porque, se chegarmos ao Hades, libertando-nos destes que se vangloriam seres juízes, havemos de encontrar os verdadeiros juízes, os quais nos diria que fazem justiça acolá: Monos e Radamante, Éaco e Triptolemo, e tantos outros Deuses e semideuses que foram justos na vida; seria então essa viagem uma viagem de se fazer pouco caso? Que preço não serieis capazes de pagar, para conversar com Orgeu, Museu, Hesíodo e Homero?
    Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade, pois para mim especialmente a conversação acolá seria maravilhosa quando eu encontrasse Palamedes e Ajax Telamônio, e qualquer um dos antigos, mortos por injusto julgamento. E não seria sem deleite, me parece, confrontar o meu com os seus casos e, o que é melhor, passar o tempo examinando e confrontando os de lá com os de cá, os últimos dos quais tem a pretensão de conhecer a sabedoria dos outros, e acreditam ser sábios sem o ser. A que preço, ó juízes, não se consentiria em examinar aqueles que guiou o grande exército a Troia, Ulisses, Sísifo, ou os incontáveis outros? Isso constituiria inefável felicidade.
    Com certeza aqueles de lá são mais felizes do que os de cá, mesmo porque, são imortais, se é que o que se diz é verdade.

XXX

    Mas também vós, ó juízes, deveis ter boa esperança em relação à morte, e considerar esta única verdade: que não é possível haver algum mal para um homem de bem, nem durante a vida, nem depois da morte, e que os Deus não se interessam do que a ele concerne; e que, por isso mesmo, o que hoje aconteceu, no que a mim concerne, não é devido ao acaso, mas é a prova de que para mim era melhor morrer agora e ser libertado das coisas deste mundo. Eis também a razão porque a divina voz não me dissuadiu, e porque, de minha parte, não estou zangado com aqueles cujos votos me condenaram, nem contra meus acusadores.
    Não foi com esse pensamento, entretanto, que eles votaram contra mim, que me acusaram, pois acreditavam causar-me um mal. Por isto é justo que sejam censurados. Mas tudo o que lhes peço é o seguinte: Quando os meus filhinhos ficarem adultos, atormentai-os como eu os vos atormentei, quando vos parecer que eles cuidam mais de riquezas e de honrarias do que da verdade. E, se acreditarem ser qualquer coisa não sendo nada, reprovai-os, como eu a vós: não vos preocupeis com aquilo que não lhes é devido.
    E, se fizerdes isso, terei de vós o que é justo, eu e os meus filhos.
    
    É a hora de irmos: eu para a morte, vós para as vossas vidas; quem terá a melhor sorte? Só os Deuses sabem.




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Apologia de Sócrates - Parte XXVII e XXVIII

Sócrates se despede do tribunal

XXVII

    Por não terdes querido esperar um pouco mais de tempo, atenienses, irei obter, da parte dos que desejam lançar o opróbrio sobre a nossa cidade, a fama e a acusação de haverdes sido os assassinos de um sábio, de Sócrates. Porque, quem vos quiser desaprovar me chamará, sem dúvida, de sábio, embora eu não o seja. Pois bem, tivésseis esperado um pouco de tempo, a coisa seria resolvida por si: vós vedes, de fato, a minha idade. E digo isso não a vós todos, mas àqueles que me condenaram à morte. Digo, além disso, mais o seguinte a esses mesmos: É provável que tenhais acreditado, ó cidadãos, que eu tenha sido condenado por pobreza de raciocínios, com os quais eu poderia vos persuadir, se eu tivesse acreditado que era preciso dizer e fazer tudo para evitar a condenação. Mas não é assim. Caí por falta, não de raciocínios, mas de audácia e imprudência, e não por querer dizer-vos coisas tais que vos teriam sido gratíssimas de ouvir, choramingando, lamentando e fazendo e dizendo muitas outras coisas indignas, as quais, é certo, estais habituados a ouvir de outros.
    Mas, nem mesmo agora, na hora deste grande perigo, eu faria nada de inconveniente, nem mesmo agora me arrependo de me ter defendido como o fiz; antes prefiro mesmo morrer, tendo-me defendido deste modo, a viver daquele outro.
    Nem nos tribunais, nem no campo, nem a mim, nem a ninguém convém tentar todos os meios para fugir da morte. Até mesmo nas batalhas, de fato, é bastante evidente que se pode evitar morrer, jogando fora as armas e suplicando aos que perseguem; e muitos outros meios há, nos perigos individuais, para evitar a morte quando se ousa dizer e fazer alguma coisa.
    Mas, ó cidadãos, talvez o difícil não seja fugir da morte. Bem mais difícil é fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. E agora eu, preguiçoso como sou, e velho, fui apanhado pela mais lenta, enquanto os meus acusadores, válidos e lépidos, foram apanhados pela mais veloz: a maldade.
    Assim, eu me vejo condenado à morte por vós, condenados de verdade, que sois criminosos de improbidade e de injustiça. Eu estou dentro da minha pena, vós dentro da vossa.
    E, talvez, essas coisas devessem acontecer mesmo assim. E creio que cada qual foi tratado adequadamente.

XXVIII

    Agora, pois, quero vaticinar-vos o que se seguirá, ó vos que me condenastes, porque já estou no ponto em que os homens podem vaticinar, quando estão para morrer: Digo-vos, de fato, ó cidadãos que me condenaram, que logo depois da minha morte virá uma vingança muito mais severa, por Zeus, do que aquela pela qual me tendes sacrificado. Fizestes isto acreditando subtrair-vos ao aborrecimento de terdes de dar conta da vossa vida, mas eu vos asseguro que tudo sairá ao contrário.
    Em maior número serão os vossos censores, que eu até agora contive, e vós reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e disso tereis maiores aborrecimentos.
    Se acreditais, matando os homens, entreter alguns dos vossos críticos, não pensais bem; esse modo de vos livrardes, não é decerto eficaz nem belo, mas belíssimo e facílimo é não contrariar os outros, mas aplicar-se a se tornar, quanto se puder, melhor. Faço, pois, este vaticínio a vós que me condenastes. Chego ao fim.




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Apologia de Sócrates - Parte XXV e XXVI

XXV

    Ao contrário, talvez vos pareça que eu, ainda falando disso, o faça com arrogância, pouco mais ou menos como quando falava da consideração e dos rogos; mas não é assim, cidadãos atenienses, antes é deste modo: estou persuadindo de que não ofendo ninguém por minha vontade, mas não vos posso persuadir também disto, porque o tempo em que estamos raciocinando juntos é brevíssimo; e eu creio que, se as vossas leis, como as de outros povos, não decidissem um juízo capital em um dia, mas em muitos, vos persuadiria: Ora, não é fácil, em tão pouco tempo, destruir tão grandes calúnias.
    Estando, pois, convencido de não ter feito injustiça a ninguém, estou bem longe de fazê-la, a mim mesmo e dizer, em meu dano, que mereço um mal, e me assinalar um de tal sorte. Quem devo temer? É possível que eu não tenha de sofrer a pena que me assinala Meleto, e que eu digo ignorar se será um bem ou mal? E, ao contrário disso, deverei escolher uma daquelas que sei bem ser um mal, e propor-me essa pena? O cárcere? E por que devo viver no cárcere, escravo do magistrado que o preside, escravo dos Onze. Ou uma multa, ficando amarrado, enquanto não acabe de pegá-la? Seria, pois, o exílio que deveria propor como pena para mim? É possível que vós me indiqueis essa pena. Ah!, eu teria verdadeiramente um amor excessivo à vida se fosse irrefletido a ponto de não ser capaz de refletir nisso: vós que sois meus concidadãos acabastes por não achar meios de suportar meus sermões; estes se tornaram para vós um fardo bastante pesado e detestável para que hoje procurei livrar-vos, serão os meus sermões mais fáceis de suportar para os outros? Muito longe disso, atenienses!
    Bela vida, em verdade, seria a minha, nesta idade, viver fora da pátria, passando de uma cidade a outra, expulso em degredo.
    Sei bem que onde quer que eu vá, os jovens ouvirão os meus discursos como aqui: se eu os repelir, eles mesmos me mandarão embora, convencendo os velhos a fazê-lo; e se não os repelir, os seus pais e parentes me mandarão embora igualmente, sob qualquer pretexto.

XXVI

    Ora, é possível que alguém perguntasse: — Sócrates, não poderias viver longe da pátria, calado e em paz? Eis justamente o que é mais difícil fazer e aceitar a alguns dentre vós: Se digo que seria desobedecer aos Deus e que, por essa razão, eu não poderia ficar tranquilo, não acreditaríeis em mim, supondo que tal afirmação é, de minha parte, uma fingida ingenuidade. Se, ao contrário, digo que o maior bem para um homem é justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outros argumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, examinando a mim mesmo e aos outros e, que uma vida sem esse exame não é digna de ser vivida, ainda menos acreditaríeis ouvindo-me dizer tais coisas. Entretanto, é assim, como digo, ó cidadãos, mas aqui não é fácil ser persuasivo.
    E, por outro lado, não estou habituado a acreditar que seja digno de algum mal. De fato, se tivesse dinheiro, eu me multaria em uma soma que pudesse pagar, porque não teria prejuízo algum; mas o fato é que não tenho. Só se quiserdes multar-me em tanto quanto eu possa pagar. Talvez eu vos pudesse pagar uma mina de prata; multo-me, pois em tanto. Mas Platão, cidadãos atenienses, Críton, Cristóbolo e Apolodoro me obrigaram a multar-me em trinta minas, e oferecem fiança: multo-me, pois, em tanto, e eles vos serão fiadores dignos de crédito.




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Apologia de Sócrates - Parte XXIII e XXIV

Sócrates é condenado e sugere a sua sentença

XXIII

    A minha impassibilidade, cidadãos atenienses, diante da minha condenação, entre muitas razões, deriva também desta: eu contava com isto, e até, antes me espanto do número dos dois partidos. Por mim, não acreditava que a diferença fosse assim de tão poucos, mas de muitos, pois, se somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo (nota: dos 501 juízes, 280 a favor e 220 contra).
    De Meleto, ao contrário, estou livre, me parece ainda, e isso é evidente a todos: se Anito e Licon não viessem aqui me acusar, Meleto teria sido multado em mil dracmas, não tendo obtido o quinto dos votos.

XXIV

    Eles pedem, pois, para mim, a pena de morte. Pois bem, atenienses, que contraproposta vos farei eu? A que mereço, não é assim? Qual, pois? Que pena ou multa mereço eu, que em toda a vida não repousei um momento, mas descuidando daquilo que todos tem em grande conta, a aquisição de riquezas e a administração doméstica, e os comandos militares, e as altas magistraturas, e as conspirações, e os partidos que surgem na cidade, conservei-me na realidade de ânimo bastante brando para que pudesse, fugindo de tais intrigas, me livrar delas, não indo aonde a minha presença não fosse de nenhuma vantagem nem para vós nem para mim mesmo? Voltava-me, ao contrário, para os lados aonde eu poderia levar, a cada um em particular, os maiores benefícios, procurando persuadir cada um de vós a não se preocupar demasiadamente com suas próprias coisas, antes que de si mesmo, para se tornar quanto mais honesto fosse possível; a não cuidar dos negócios da cidade antes que da própria cidade, e preocupar-se, assim, do mesmo modo, com outras coisas. De que sou digno eu, tendo assim procedido? De um bem, cidadãos atenienses, se devo fazer uma proposta conforme o mérito; e um bem tal que me possa convir. E, que convém a um pobre benemérito que tem necessidade de estar em paz, para vos exortar ao caminho reto? Não há coisa que melhor convenha, cidadãos atenienses, que nutrir um tal homem às expensas do estado, no Pritaneu; merece-o bem mais que qualquer de vós que tenha sido vencedor nos Jogos Olímpicos, nas corridas de cavalos, de bigas ou quadrigas! Esse homem, porém, homem rico, não tem necessidade de que se cuide da sua subsistência, mas eu sim, tenho necessidade. Portanto, se devo fazer uma proposta segundo a Justiça, eis o que indico para mim: Ser, às expensas do Estado, sustentado no Pritaneu.




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