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ARTE - A expressão criativa da sensibilidade

      Desde os tempos pré-históricos, o ser humano constrói no mundo suas próprias coisas, demonstrando maior ou menor habilidade para isso. Ao conjunto de coisas que se distinguem por revelar talento, perícia, habilidade e beleza costumamos associar o nome arte.
      Em algum momento de nossas vidas, já sentimos o efeito agradável de alguma obra de arte: uma música, um romance, uma pintura, uma dança, um poema. Mas não é fácil explicar, exatamente, o que nos encanta ou entender os motivos pelos quais milhões de seres humanos, ao longo da história, são atraídos pela arte.

Colar de ouro usado pelo faraó Tutankamon, em que as 250 peças que compõem as asas apresentam incrustações de vidro colorido, exemplo de habilidade e beleza.


O que é arte?
    A arte pode ter várias definições. Entre elas encontra-se a de Susanne K. Langer (1895-1985), filósofa estadunidense, para quem a arte pode ser entendida como a prática de criar formas perceptíveis expressivas do sentimento humano. Analisemos, então, o conteúdo essencial dos termos dessa definição:
prática de criar — a arte é produto do fazer humano. Deve combinar a habilidade desenvolvida no trabalho (prática) com a imaginação (criatividade);
formas perceptíveis — a arte concretiza-se em formas capazes de serem percebidas por nossa mente. Essas formas podem ser estáticas (uma obra arquitetônica, uma escultura) ou dinâmicas (uma música, uma dança). Qualquer que seja sua forma de expressão, cada obra de arte é sempre um todo perceptível, com identidade própria. A palavra perceptível não se refere às formas captadas apenas pelos sentidos exteriores, mas também pela imaginação;

"Um romance, por exemplo, é usualmente lido em silêncio, com os olhos, porém não é feito para a visão, como o é um quadro; e conquanto o som represente papel vital na poesia, as palavras, mesmo em poema, não são estruturas sonoras como a música." (Langer, Ensaios filosóficos, p. 82).

expressão do sentimento humano — a arte é sempre a manifestação (expressão) dos sentimentos humanos. Esses sentimentos podem revelar emoção diante daquilo que amamos ou revolta em face dos problemas que atingem uma sociedade. Sentimentos de alegria, esperança, agonia ou decepção diante da vida. A função primordial da arte seria "objetivar o sentimento de modo que possamos contemplá-lo e entendê-lo. É a formulação da chamada 'experiência interior', da 'vida interior', que é impossível atingir pelo pensamento discursivo" (Langer, Ensaios filosóficos, p. 82).

O grito (1893) — Edvard Munch. Para o pintor norueguês Munch, o importante não era retratar as pessoas, mas os sentimentos que expressavam.



Fenômeno social
    Há estudiosos que veem na obra de arte uma manifestação pura e simples da sensibilidade individual do artista. Outros a encaram como uma atividade plenamente lúdica, gratuita, livre de quaisquer preocupações utilitárias ou condicionamentos exteriores à sua própria criação.
      Não é preciso negar totalmente a validade de cada uma dessas concepções para reconhecer na atividade artística outra característica importante: o fato de que a arte é um fenômeno social. Isso significa que é praticamente impossível situar uma obra de arte sem estabelecer um vínculo entre ela e determinada sociedade. A arte é fenômeno social porque:
o artista é um ser social — como ser social, o artista reflete na obra de arte sua maneira própria de sentir o mundo em que vive, as alegrias e as angústias, os problemas e as esperanças de seu momento histórico.
      Para o pensador húngaro Georg Lukács (1885-1971):

"O artista vive em sociedade e — queira ou não — existe uma influência recíproca entre ele e a sociedade. O artista queira ou não — se apoia numa determinada concepção do mundo, que ele exprime igualmente em seu estilo." (Arte livre ou arte dirigida?, em Revista Civilização Brasileira, n. 13, p. 176).

a obra de arte é percebida socialmente pelo público — por mais íntima e subjetiva que seja a experiência do artista deixada em sua obra, esta será sempre percebida de alguma maneira pelas pessoas. A obra de arte será, então, um elemento social de comunicação da mensagem e do seu criador. Assim, como afirmou Lukács no mesmo artigo:

"Uma arte que seja por definição sem eco, incompreensível para os outros uma arte que tenha o caráter de puro monólogo só seria possível num asilo de loucos [...] A necessidade de repercussão, tanto do ponto de vista da forma, quanto do conteúdo, é a característica inseparável, o traço essencial de toda obra de arte, autêntica em todos os tempos." (p. 163).

      Como fenômeno social, a arte possui, portanto, relações com a sociedade. Essas relações não são estáticas e imutáveis; ao contrário, são dinâmicas, modificando-se conforme o contexto histórico. E envolvem três elementos fundamentais: a obra de arte, seu autor e o público. Formam-se em torno desses três elementos (autor, obra e público) os vínculos entre arte e sociedade "num vasto sistema solidário de influências recíprocas" (Candido, Literatura e sociedade, p. 22).
      No que diz respeito ao artista, as relações de sua arte com a sociedade podem ser de paz e harmonia, de fuga e ilusão, de protestos e revolta. Quanto à sociedade — considerando principalmente os órgãos do Estado —, seu relacionamento com determinada arte pode ser de ajuda e incentivo ou de censura e limitação à atividade criadora.

O grafite, de início perseguido, atingiu o status de "interferência artística" nos muros e paredes das cidades, principalmente nos grandes centros urbanos.

      O poeta mexicano Octavio Paz (1914-1998) escreveu a seguinte observação acerca da relação entre o artista e a sociedade:

"O poeta não escapa à história, inclusive quando a nega ou a ignora. Suas experiências mais secretas ou pessoais se transformam em palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e com essas mesmas palavras, o poeta diz outra coisa: revela o homem. Essa revelação é o significado último de todo o poema e quase nunca é dita de modo explícito, mas é o fundamento de todo dizer poético." (Signos em rotação, p. 55).


Fenômeno universal
    Afirmar que a arte é um fenômeno social não significa reduzi-la a mero produto de condicionamentos históricos e ideológicos. Não há dúvida de que esses condicionamentos existem e atuam sobre o artista, porém, na realização da obra de arte, todos os elementos que a envolvem precisam ser resolvidos artisticamente, isto é, traduzidos em termos de criação estética. É nessa criação que reside o valor essencial de toda grande obra de arte. Ocorre nela uma espécie de rompimento com o tempo imediato e um encontro do ser humano com a eternidade.
      Pela criação estética, a obra tende a se universalizar, a permanecer viva através dos tempos, anunciando uma mensagem artística que, independentemente de seu conteúdo ideológico, expressa profunda sensibilidade. Por isso, é capaz de atrair pessoas de diferentes países, culturas ou sociedades. Como escreveu o filósofo austríaco Ernst Fischer (1899-1972):

"Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com ideias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e, dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento." (A necessidade da arte, p. 17).

      Assim, as circunstâncias particulares presentes na criação artística unem-se, harmoniosamente, a elementos de universalidade, que penetram profundamente no espírito humano, gerando um sentido de permanente fascínio.

Pequena bailarina de 14 anos (1879-1881) — Edgard Degas. Essa escultura é considerada uma das obras-primas do gravurista, pintor e escultor francês Degas, que dedicou boa parte de suas obras a cenas do cotidiano feminino, produzindo uma desmitificação da mulher.


Arte e educação
    Por diversos ângulos e diferentes enfoques, as discussões sobre a beleza e o estético tiveram presença marcante no pensamento de vários autores, desde a Antiguidade grega até nossos dias. Muitas dessas especulações tomaram o rumo de associar o belo ao bom, entrelaçando os campos filosóficos da estética e da ética.
      Sócrates e Platão, por exemplo, já diziam que o que é bom é belo, o que é belo é bom. Não precisamos, porém, ir tão longe: o próprio senso comum faz essa ligação. Quando um indivíduo age mal, costuma-se dizer: "Que feio!"; se ele age de maneira ética, fala-se que teve uma atitude "bonita".
      Também se verifica um entrelaçamento entre estética e ética quando se constata que o belo pode despertar o bom no indivíduo e que, por isso, deve fazer parte de sua educação.
      Nesse sentido, o escritor e pensador alemão Friedrich von Schiller (1759-1805) propôs a educação estética, além da educação ética, como forma de harmonizar e aperfeiçoar o mundo e de o indivíduo alcançar sua liberdade. Em suas palavras, "para chegar a uma solução, mesmo em questões políticas, o caminho da estética deve ser buscado, porque é pela beleza que chegamos à liberdade" (Sobre a educação estética, p. 35).
      Ou seja, se o belo desperta o bom no indivíduo, este se verá menos pressionado por insatisfações e necessidades, poderá agir mais de acordo com sua boa consciência. Se através do belo o mundo material se reconciliasse com uma forma superior de moralidade, o ensino da arte, educando os sentidos e a sensibilidade, poderia tornar, portanto, o indivíduo melhor.


Arte e indústria cultural
    O mesmo Schiller que defendia a educação estética alertava:


"[...] a arte é filha da liberdade e quer ser legislada pela necessidade do espírito, não pela carência da matéria. Hoje, porém, a carência impera e curva em seu jugo tirânico a humanidade caída. O proveito [a vantagem, o lucro] é o grande ídolo do tempo; quer ser servido por todas as forças e cultuado por todos os talentos. Nesta balança grosseira o mérito espiritual da Arte não pesa, e ela, roubada de todo estímulo, desaparece no ruidoso mercado do século." (Sobre a educação estética, p. 35).

    Apesar de escrita há cerca de dois séculos, essa observação continua atual. Seu autor considera que existe uma arte ideal, cuja função seria servir à necessidade do espírito humano e não ao "mercado do século", ou seja, aos interesses econômicos que determinam o que pode e deve ser feito para atender à demanda de mercado.

Campbell's soup (1968) — Andy Warhol. A arte pop nasceu na década de 1950 com a proposta de empregar signos e símbolos do imaginário da cultura de massas e da vida cotidiana. Grande expoente desse movimento, Warhol retratava em suas obras produtos industrializados e celebridades do mundo artístico.

      Schiller refere-se, com essas palavras, a um fenômeno contemporâneo que já despontava à sua época, a indústria cultural, termo cunhado por outro filósofo alemão, Theodor Adorno (1906-1969).
      De acordo com Adorno, a arte e os bens culturais estão submetidos, com frequência, aos interesses do capitalismo contemporâneo e, quando isso ocorre, não passam de negócios, como qualquer outro produto do mercado (daí a expressão "indústria cultural").
      Essa indústria de lazer e divertimento investe em determinados produtos culturais que agradam às massas de forma imediata. Não está preocupada com uma educação estética, ou seja, com a criação de condições para que a maioria das pessoas possa receber manifestações artísticas de maior qualidade.
      Além disso, pela difusão de suas "mercadorias culturais" (filmes, músicas, shows, revistas), ela vende — na interpretação de Adorno — os valores dominantes do capitalismo, promovendo uma "colonização do espírito" dos consumidores. Em algumas de suas expressões, como o cinema, a arte chega a ser convertida, em certas produções, em uma vitrine para vender mercadorias: automóveis, roupas, refrigerantes, computadores etc.
      Nessa interpretação, portanto, para que a arte possa ser a arte ideal de Schiller, ela deveria libertar-se dos ditames do mercado, como defendeu o próprio Adorno. Desse modo, sem acobertar nem fugir da realidade, seria a expressão sensível e crítica de uma realidade que pode se tornar mais humana.


A cerâmica Maria Bonita e Lampião é uma peça de arte popular que, com estilo ingênuo e significativa brasilidade, resgata nossas tradições.


Sugestões de filmes

• Minha amada mortal (1994, EUA, direção de Bernard Rose)
      Biografia de Beethoven que, embora não seja totalmente fiel, tem como mérito mostrar a força e a beleza do romantismo.

Shine (1996, Austrália/Inglaterra, direção de Scott Hicks)
      Filme sobre David Helfgott, um dos principais intérpretes da obra pianística de Rachmaninoff. Retrata o processo de formação do artista.

Basquiat — Traços de uma vida (1996, EUA, direção de Julian Schnabel)
      História real do espirituoso imigrante haitiano que passou de desconhecido grafiteiro a frequentador das mais altas rodas de Nova York. Tornou-se artista de estimação do jet set mundial com a ajuda do artista multimídia Andy Warhol, mas acabou se entregando tragicamente às drogas.

O carteiro e o poeta (1995, Inglaterra/França/Itália, direção de Michael Radford)
      Retrato do processo de educação estética de um carteiro italiano, Mário, a partir de seu contato e amizade com o poeta chileno Pablo Neruda.
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