Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

GRANDE RACIONALISMO - O conhecimento parte da razão

      Durante o século XVII, a confiança no papel da razão no processo de conhecimento chega a seu auge no contexto da filosofia (que se mantinha ainda aliada à ciência). Por isso a produção filosófica dessa época é chamada de grande racionalismo.
      No campo das teorias do conhecimento, racionalismo designa a doutrina que privilegia a razão no processo de conhecer a verdade. Abordaremos em seguida dois dos principais filósofos racionalistas desse período: René Descartes (nosso velho conhecido) e Baruch Espinosa.


René Descartes
    René Descartes (1596-1650) nasceu em La Haye, França, em uma família de prósperos burgueses. Decepcionado com a formação jesuíta (tomista-aristotélica) que recebera, decidiu buscar a ciência por conta própria, esforçando-se por decifrar o "grande livro do mundo". Em suas inúmeras viagens pela Europa, estabeleceu contatos com vários sábios de seu tempo, entre eles Blaise Pascal (1623-1662).
      Temendo perseguições religiosas e tendo em mente a condenação de Galileu, tomou uma série de cautelas na exposição de suas ideias. Autocensurou vários trechos de suas obras para evitar tanto a repressão da Igreja Católica como a reação fanática dos protestantes. Apesar disso, o que publicou é suficientemente vasto e valioso para situá-lo como um dos pais da filosofia moderna.


Dúvida metódica
    Descartes afirmava que, para conhecer a verdade, é preciso, de início, colocar todos os nossos conhecimentos em dúvida. É necessário questionar tudo e analisar criteriosamente se existe algo na realidade de que possamos ter plena certeza.
      Fazendo uma aplicação metódica da dúvida, o filósofo percebeu que a única verdade totalmente livre de dúvida era que ele pensava. Deduziu então que, se pensava, existia ("Penso, logo existo"). Para Descartes, essa seria uma verdade absolutamente firme, certa e segura, que, por isso mesmo, deveria ser adotada como princípio básico de toda a sua filosofia. Era sua base, seu novo centro, seu ponto fixo.
      É preciso ressaltar que o termo pensamento é utilizado por Descartes em um sentido bastante amplo, abrangendo tudo o que afirmamos, negamos, sentimos, imaginamos, cremos e sonhamos. Assim, o ser humano era, para ele, uma substância essencialmente pensante.


Dualismo
    Descartes aplicando a dúvida metódica, chegou à conclusão de que no mundo haveria apenas duas substâncias, essencialmente distintas e separadas:
• a substância pensante (res cogitans), correspondente à esfera do eu ou da consciência; e
• a substância extensa (res extensa), correspondente ao mundo corpóreo, material.
      O ser humano seria composto dessas duas substâncias, enquanto a natureza seria apenas substância extensa. Essa era uma concepção que se chocava com a noção tomista-aristotélica predominante, segundo a qual haveria tantas substâncias quantos seres existissem.
      A metafísica cartesiana também incluía uma substância infinita (res infinita), relativa a Deus, o ser que teria criado todas as coisas. Mas essa substância não seria parte deste mundo, pois o Deus cartesiano é transcendente, está separado de sua criação.


Idealismo
    Descartes concluiu, porém, que o pensamento (ou consciência) é algo mais certo que qualquer corpo, pois ele considerava a matéria "algo apenas conhecível, se é que o é, por dedução do que se sabe da mente" (Russell, História da filosofia ocidental, v. 2, p. 88).
      Essa é uma concepção idealista, tanto em termos ontológicos como epistemológicos, pois prioriza o ser pensante em contraposição à matéria, bem como a atividade do sujeito pensante em relação ao objeto pensado.



Racionalismo
    Descartes era um racionalista convicto. Recomendava que desconfiássemos das percepções sensoriais, responsabilizando-as pelos frequentes erros do conhecimento humano. Dizia que o verdadeiro conhecimento das coisas externas devia ser conseguido através do trabalho lógico da mente. Nesse sentido, considerava que, no passado, dentre todos os indivíduos que buscaram a verdade nas ciências, "só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes" (Descartes, Discurso do método, p. 39).
      Descartes atribuía, portanto, grande valor à matemática como instrumento de compreensão da realidade. Ele próprio foi um grande matemático, sendo considerado um dos criadores da geometria analítica, sistema que tornou possível a determinação de um ponto em um plano mediante duas linhas perpendiculares fixadas graficamente (as coordenadas cartesianas).


Método cartesiano
    Da sua obra Discurso do método, podemos destacar quatro regras básicas, consideradas por Descartes capazes de conduzir o espírito na busca da verdade:
 regra da evidência — só aceitar algo como verdadeiro desde que seja absolutamente evidente por sua clareza e distinção. As ideias claras e distintas seriam encontradas em sua própria atividade mental, independentemente das percepções sensoriais externas. Devido a elas, Descartes propôs a existência das ideias inatas (com as quais nascemos), que são plenamente racionais. Exemplos: as ideias matemáticas, as noções gerais de extensão e movimento, a ideia de infinito etc.
regra da análise — dividir cada uma das dificuldades surgidas em tantas partes quantas forem necessárias para resolvê-las melhor.
regra da síntese — reordenar o raciocínio indo dos problemas mais simples para os mais complexos.
regra da enumeração — realizar verificações completas e gerais para ter absoluta segurança de que nenhum aspecto do problema foi omitido.


Herança cartesiana
    O pensamento de Descartes influi profundamente no pensamento posterior. Sua concepção dualista do ser humano ainda é sentida em diversos campos do conhecimento. E seu método contribui grandemente para uma visão reducionista da realidade.
      Sua tentativa, porém, de reconstruir o edifício do conhecimento talvez não tenha sido uma obra tão fecunda quanto o efeito demolidor que provocou. Por isso, podemos dizer que Descartes celebrizou-se não propriamente pelas questões que resolveu, mas, sobretudo, pelos problemas que formulou, problemas esses que foram herdados pelos filósofos posteriores.

"Por fim, as filosofias de Espinosa, de Leibniz, de Malebranche, atestam a importância da revolução cartesiana: elas constroem-se na meditação dos problemas postos por Descartes, e seguindo estruturas provindas do seu pensamento." (Alquié, A filosofia de Descartes, p. 141).


Baruch Espinosa
    Baruch Espinosa (1632-1677) nasceu na Holanda, filho de imigrantes judeus de origem espano-portuguesa. Em sua filosofia, desenvolveu um racionalismo radical, que se caracterizou pela crítica às superstições religiosa, política e filosófica.
      De acordo com o filósofo, a fonte de toda superstição é a imaginação. Incapaz de compreender a verdadeira ordem do universo, a imaginação credita a realidade a um Deus transcendente e voluntarioso, nas mãos de quem os seres humanos não passam de joguetes. A partir da superstição religiosa, desenvolvem-se as superstições políticas e filosóficas.


Deus imanente
    Para combater essas superstições em sua origem, Espinosa escreveu a Ética, texto no qual busca provar, como em uma demonstração geométrica, a natureza racional de Deus, que se manifesta em todas as coisas (Deus imanente). Desse modo, Deus não está fora nem dentro do universo: ele é o próprio universo.

Baruch Espinosa — Escola Germânica. Para Espinosa, a felicidade seria a compreensão lógica do mundo e da vida, o que demonstra seu profundo racionalismo.
      No interior desse entendimento racionalista, não há lugar para tragédia nem mistérios: tudo se torna compreensível à luz da razão. A filosofia seria o conhecimento racional de Deus, e a liberdade humana consistiria na consciência da necessidade. Ou seja, não haveria livre-arbítrio, uma vez que Deus se identifica com a natureza universal e, portanto, tudo o que existe é necessário, não pode ser transgredido, pois faz parte da natureza divina.
      Por isso, Espinosa propunha a equação Deus = Natureza, que significa: tudo existe em Deus, e mantém-se em seu Ser.


Blaise Pascal
    Vejamos, por último, um filósofo que vivei na época do grande racionalismo, mas que foi um pensador contra a corrente, isto é, um crítico de seus contemporâneos e da confiança excessiva na razão. Trata-se de Blaise Pascal (1623-1662), nascido em Clermont-Ferrand, na França.
      Apesar de ter sido um grande matemático e físico e de ter inventado a primeira calculadora, não aceitava o reducionismo matemático nas questões humanas. Exemplo disso é sua frase lapidar: "O coração tem razões que a razão desconhece" (Pascal, Pensamentos, p. 107). Pascal preferiu refletir sobre a condição trágica do ser humano, ao mesmo tempo magnífico e miserável, capaz de alcançar grandes verdades e gerar grandes erros.
      Em sua obra Pensamentos (da qual transcrevemos os diversos fragmentos que seguem), escrita sob a forma de aforismos, questiona a situação paradoxa do ser humano em meio a toda a realidade existente: "No fundo, o que é o homem na natureza? É nada em relação ao infinito, é tudo em relação ao nada, algo de intermediário entre o nada e o tudo". Diante das novas teorias astronômicas de seu tempo, confessa: "O silêncio eterno dos espaços infinitos apavora".


Limites da razão
    Assim, em vez de mostrar a mesma confiança na razão que caracterizava os pensadores de seu tempo, Pascal defendeu a ideia de que o ser humano não pode conhecer o princípio e o fim das realidades que busca compreender. Estaria limitado apenas às aparências, já que, em suas palavras, "só o amor dessas maravilhas as compreende; ninguém mais pode fazê-lo".
      Afirmava que a razão humana seria impotente para provar a existência de Deus. Dependeria da fé a crença em um Deus, cuja existência jamais poderá ser provada. De acordo com seu pensamento, "o supremo passo da razão está em reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam". Dessa forma ele dirá: "O coração — e não a razão — é que sente Deus. E isto é a fé: Deus sensível ao coração e não à razão".
      Pascal polemizou contra o Deus dos filósofos e dos sábios, um deus transformado em engenheiro do mundo, que, uma vez criado, seguiria seu rumo em cego mecanicismo. Nessa polêmica, seu alvo era Descartes e sua concepção de um Deus das verdades geométricas. O que Pascal buscava recuperar era o "Deus de amor e consolação, é um Deus que faz cada qual sentir interiormente a sua própria miséria e a misericórdia infinita de Deus".


Sugestões de filmes

Giordano Bruno (1973, Itália, direção de Giuliano Montaldo)
      Filme que retrata parta da vida de Bruno, envolvido em problemas com a Igreja devido às suas ideias. Mostra o processo movido pela Inquisição até a sua morte na fogueira.

Galileu (Itália, direção de Liliane Cavani)
      Vida e obra de Galileu, com destaque para o seu julgamento pela Inquisição.

Rainha Margot (1994, França/Alemanha/Itália, direção de Patrice Chéreau)
      Obra sobre a questão religiosa e política entre católicos e protestantes no século XVI.

Decameron (1970, Itália/França/Alemanha, direção de Pier Paolo Pasolini)
      Adaptação de dez contos de obra homônima de Bocaccio, que mostram aspectos do cotidiano, da religiosidade e dos costumes da cidade de Nápoles no século XIV, em histórias divertidas e picantes.
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