Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

DUVIDAR - O pensamento em busca de novos horizontes

Situação filosófica
    Em uma manhã ensolarada da antiga Atenas, a população desenvolvia tranquilamente seus afazeres. De repente, um homem cruza a praça correndo, e logo se ouvem gritos desesperados.
      — Pega ladrão! Pega ladrão!
      Um soldado imediatamente se lança em disparada atrás do sujeito. Sócrates, por sua vez, pergunta:
      — O que é um ladrão?


Importância de perguntar
    Ter dúvidas, mesmo que provisoriamente, é algo desejável para alcançar um conhecimento maior. Por que será, então, que as pessoas tendem a expressar poucas dúvidas, a fazer tão poucas perguntas umas às outras em seu dia a dia?
      Isso pode ser observado, por exemplo, na sala de aula. Quando uma professora ou professor pergunta à classe se alguém tem alguma dúvida sobre o que acabou de expor, qual é a reação mais comum? Silêncio ou algumas perguntas tímidas. A maioria tem alguma dúvida — ou muita dúvida —, mas não ousa expressá-la. Essa postura ocorre também nas universidades, nas empresas, em encontros culturais, nos almoços e jantares, nas mesas de bar etc. Por que isso é tão frequente?
      Uma explicação pode estar na dificuldade de expressar, isto é, na dificuldade de encontrar as palavras certas para expressar a dúvida que se tem, o que é muito comum. Outra explicação seria que grande parte das pessoas não ousa expressar sua dúvida por medo de falar em público. Esse temor também é bastante comum. O desenvolvimento de maiores habilidades de expressão linguística e de comunicação oral poderia mudar bastante esse cenário.
      Há, porém, uma explicação que nos parece mais fundamental: muita gente acredita, mesmo sem estar consciente disso, que ter dúvidas e perguntar é expor uma debilidade, um sinal de dificuldade intelectual ou falta de "conhecimentos". Como nossa cultura valoriza muito a inteligência e a informação (ou, pelo menos, o parecer inteligente e bem informado sobre tudo), poucos se arriscam a ser interpretados como tolos, ignorantes ou confusos ao fazer uma simples pergunta (foi essa a impressão que passou Sócrates na anedota, não foi?).
      Assim, a conversação entre as pessoas costuma ser, com frequência, uma sucessão de monólogos ou de enfrentamentos, em que cada um dos interlocutores está mais preocupado em dar o contro ou exibir seus "conhecimentos", suas certezas, do que entender o outro ou aprender com ele — ou junto com ela. Em resumo, o que está em jogo é mais o amor-próprio, a vaidade pessoal do que a aprendizagem. E, quando não entram nessa disputa, as pessoas "optam" pelo silêncio.
      Isso tudo nos parece um grande equívoco. Perguntas são, no mínimo, a expressão do desejo de conhecer mais sobre algo ou alguém, do interesse pelo que pensa, sente e é o outro. Portanto, elas se complementam com a atitude de saber escutar, de dar a adequada atenção ao que o outro questiona ou propõe, de tal maneira que possa haver uma verdadeira troca de percepções e reflexões. Muitas vezes descobrimos nesse processo, nesse diálogo respeitoso, que a outra pessoa — que observa o mundo a partir de uma perspectiva diferente da nossa — percebeu coisas que não tínhamos percebido ainda, notou problemas nos quais não havíamos pensado até então. Isso ampliará nossa maneira ver as coisas e a nós mesmos, ampliando nossos horizontes e possibilidades de escolha para a construção de uma vida mais justa, sábia, generosa e feliz.


Atitude filosófica
    Pois bem, a filosofia busca tudo isso que acabamos de ver. Portanto, para aprender a filosofar, é fundamental adotar uma atitude indagadora. Como afirmou o pensador alemão Karl Jaspers (1883-1969), "as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas e cada resposta transforma-se numa nova pergunta" (Introdução ao pensamento filosófico, p. 140).
      Isso ocorre justamente porque a filosofia busca essa ampliação da paisagem e seus horizontes: cada resposta (cada paisagem e horizonte conquistado) gera um novo terreno para dúvidas e perguntas (uma nova paisagem, com mais um horizonte a ser explorado).
      Assim, mesmo que você não tenha nenhuma intenção de se tornar um filósofo ou uma filósofa, desenvolver uma atitude indagadora e "escutadora", isto é, filosófica, pode ser de grande utilidade em muitos momentos de sua vida.

A condição humana (1935) — René Magritte. A realidade sempre será mais ampla do que os "quadros" que formamos dela ou a realidade é uma construção contínua, composta desses "quadros"?

      Na infância, principalmente nos primeiros anos, essa atitude é bastante comum ou natural. A maioria das crianças vive mergulhada no encantamento da surpresa, da novidade, da descoberta, que se desdobra em interrogações intermináveis: "o que é isso?", "o que é aquilo?", "por que isso é assim?", "como você sabe?" e assim por diante. Desse modo, junto com outras experiências, elas vão formando imagens, ideias, conceitos dos diversos elementos que formam a realidade. Por exemplo:

      — Mãe, o que é tulipa?
      — É uma flor, filha.
      — Uma flor como?
      — Uma flor muito delicada e bonita, com a forma de um sino, só que invertido, com a boca para cima.
      — Que cor tem?
      — Tem tulipa de tudo quanto é cor: vermelha, amarela, branca, lilás.
      — E por que a gente não tem tulipa no nosso jardim?
      — Porque é preciso saber cultivar essa planta, ela vem de regiões de clima frio, como a Holanda.
       Holanda? Onde fica a Holanda?

      E assim por diante. Às vezes, as crianças dão uma reviravolta nas questões que abordam, fazendo perguntas insistentes e até geniais, verdadeiras torturas para os adultos, que se veem obrigados a parar e pensar sobre as coisas. Com o passar dos anos, porém, a vida vai deixando de ser novidade: elas mergulham no cotidiano das respostas prontas e "acabadas" e, de modo geral, esquecem aquelas questões para as quais nunca conseguiram explicação.
      A atitude filosófica constitui, portanto, uma espécie de retorno a essa primeira infância, a essa maneira de ver, escutar e sentir as coisas. É um certo começar de novo na compreensão do mundo por meio da dúvida e de sucessivas indagações.
      É claro que esse "começar de novo" não é possível no sentido literal da expressão, porque você já conhece, sente e imagina muitas coisas a respeito do mundo, das pessoas e de si mesmo ou si mesma, e não é possível apagar toda essa vivência. Você já tem um "cardápio" de conceitos, imagens e sentimentos sobre tudo o que foi fundamental para sua existência até este instante, mesmo sem ter consciência disso. O natural é que você se mova pela vida orientado ou orientada por esse mapa, sem precisar fazer tantas perguntas quanto uma criança, que ainda não montou seu próprio "cardápio".
      Mas há momentos em que o "cardápio" que uma pessoa têm não serve para enfrentar determinada situação: não é completamente satisfatório, "nutritivo" e "saudável". É então que surge a quebra, o estranhamento em relação ao fluxo normal do cotidiano. Trata-se de ma oportunidade para começar a pensar na vida de uma maneira filosófica, isto é, para começar a indagar e duvidar.


Abrir-se ao mundo como uma criança
    "Para abordar a filosofia, para entrar no território da filosofia, é absolutamente indispensável uma primeira disposição de ânimo. É absolutamente indispensável que o aspirante a filósofo sinta a necessidade de levar a seu estudo uma disposição infantil.
      Em que sentido faço esta paradoxal afirmação de que convém que o filósofo que puerilize? Faço-a no sentido de que a disposição de ânimo para filosofar deve consistir essencialmente em perceber e sentir por toda a parte [...] problemas, mistérios: admirar-se de tudo, sentir profundamente o arcano e misterioso de tudo isso: colocar-se ante o universo e o próprio ser humano com um sentimento de admiração, de curiosidade infantil como a criança que não entende nada e para quem tudo é problema.
      Aquele para quem tudo resulta muito natural, para quem tudo resulta muito fácil de entender, para quem tudo resulta muito óbvio, nunca poderá ser filósofo."

Garcia Morente, fundamentos de filosofia, p. 33-34.

Arcano muito difícil de compreender, enigmático.


Imagem do filme Onde vivem os monstros (2009, EUA, direção de Spike Jonze). Realidade ou fantasia? Cada vez mais se aceita em meios científicos e filosóficos que as explicações que damos aos fenômenos geram os próprios fenômenos que pretendemos explicar.


Dúvida filosófica
    É nesses momentos críticos de quebra e estranhamento que costumam surgir dúvidas sobre temas fundamentais e permanentes da existência humana, dos quais trata a filosofia.
      Isso significa que nem todo tipo de dúvida é filosófico. Por exemplo: "Quem será o campeão brasileiro de futebol deste ano?" não é uma dúvida filosófica, e sim uma simples especulação sobre algo que está para acontecer, por mais angustiado que se sinta o torcedor com essa questão. Pode ser um bom exercício teórico discutir com colegas ou especialistas as possibilidades de seu time do coração em comparação com as de outros, para saber suas opiniões. Mas a resposta a esse tipo de dúvida virá da própria sucessão dos acontecimentos (ou jogos) ao longo do tempo (ou campeonato), tornando-se um fato inquestionável.

      A dúvida filosófica propriamente dita surge de uma necessidade inquietante de explicação racional para algo da existência humana que se tornou incompreensível ou cuja compreensão existente não satisfaz. Geralmente são temas para os quais não há resposta única ou para os quais a mente humana sempre retorna. Por exemplo, quem já não se fez, mesmo que intimamente, a pergunta "Por que tanta maldade?" ao saber de mais uma das atrocidades, aparentemente inexplicáveis, de que alguns seres humanos (ou desumanos) são capazes? Tal questão conduz a outras, mais básicas e fundamentais, como "O que é o mal?", "O que é o ser humano?", "É da essência do ser humano ser mau?", "É da essência do ser humano ser bom?" etc.
      A dúvida verdadeiramente filosófica é aquela que favorece, portanto, o exercício fecundo da inteligência, do espírito, da razão sobre questões teóricas importantes para todos nós (e que costumam ter uma incidência prática enorme em nossas vidas, sem que nos demos conta disso).
      Por que a dúvida filosófica propicia um exercício fecundo da razão? Porque nela se adota — para início de conversa — a suspensão do juízo: assim se denomina a interrupção temporária do fluxo normal de ideias prontas que uma pessoa possui sobre determinado assunto. Para quê? Para poder reunir o maior número de antecedentes ou conhecimentos fundamentais com relação a esse assunto e só então formular uma opinião, um juízo a seu respeito, agora bem estruturado e justificado.
      A dúvida filosófica não é, portanto, ociosa, não é uma especulação vazia ou fútil, nem constitui uma prática meramente destrutiva, um questionar por questionar, uma chatice de quem não tem o que fazer (o chamado "espírito de porco"). A pessoa que a pratica visa se articular racionalmente no sentido de construir uma explicação sólida e bem fundamentada, um conhecimento claro e confiável sobre o tema que é objeto de sua preocupação.

A traição das imagens (Isto não é um cachimbo), 1928-1929 — René Magritte (Contry Museum, Los Angeles, EUA). A obra de Magritte é um convite constante à dúvida e à reflexão sobre as coisas e as situações mais cotidianas.


Clique na imagem para ampliar

Método — forma organizada, lógica e sistemática de realizar alguma tarefa, estudo, investigação, geralmente seguindo um conjunto de regras ou princípios reguladores.
Premissa — cada uma das proposições ou ideias que se compõe um raciocínio e que fundamentam sua conclusão.
Lógico — que segue as leis do pensamento ou raciocínio correto, com um encadeamento coerente que permita chegar a uma conclusão considerada válida, bem fundamentada ou verdadeira.
Compartilhar:
← Anterior Proxima → Inicio

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens mais lidas

O QUE É CIÊNCIA - Do método científico às leis científicas

      Comecemos nossa investigação sobre a ciência buscando o significado básico dessa palavra. O termo ciência vem do latim scientia , que...