Conta-se a seguinte experiência, vivida por um grande médico paulista, muitos anos atrás. Durante o período em que trabalhou entre os índios xavantes, no Mato Grosso, ele fez amizade com um dos nativos, Rupawe, que o acompanhava frequentemente e lhe contava diversas histórias de sua tribo.
Numa tórrida tarde dessa região central do Brasil, os dois decidiram refrescar-se no rio das Garças. Nadaram durante quase uma hora e depois se sentaram à beira das águas para descansar e apreciar a bela paisagem. A agradável sensação da brisa tocando seus corpos pareceu despertar no médico pensamentos mais sutis, resultando neste curto diálogo:
— Você é feliz, Rupawe?
— Sim — respondeu prontamente o nativo
— E você sabe o que é felicidade?
— Não.
Estranhamento ou deslocamento
Trata-se do primeiro passo da experiência filosófica. Quando uma pessoa vive uma circunstância de deslocamento ou estranhamento, experimenta quebra, uma interrupção no fluir normal de sua vida. Detém-se, então, para pensar ou observar algo que antes não via, ou que vivia de forma automática, sem se dar conta, sem atenção, sem se questionar.
Foi isso o que ocorreu com o médico durante sua permanência com os xavantes. Tal circunstância permitiu-lhe um distanciamento em relação à sua vida na cidade e, provavelmente, um contato com algumas de suas próprias crenças sobre a felicidade.
Questionamento ou indagação
Trata-se do segundo passo da experiência filosófica. Após viver o estranhamento, a pessoa inicia um processo de questionamento (interno e externo) sobre o tema que lhe chamou a atenção.
Foi o que expressou o médico, em suas perguntas ao nativo: a primeira, com enfoque particular ("você é feliz?"), cuja resposta corresponde apenas a esse indivíduo; a segunda, de enfoque universal ("o que é felicidade?"), cuja resposta deveria valer para todos os seres humanos.
Certamente você já passou, em algum momento, por uma experiência parecida, após algum acontecimento marcante em sua vida. Pode ter sido durante uma viagem ao estrangeiro, na morte de um ser querido, em uma grande decepção amorosa, ou em muitas outras circunstâncias distintas. E aí começou a se questionar, mesmo que superficial e brevemente, sobre sua vida e existência em geral. Pois, então, você estava tendo uma experiência filosófica, ainda que rudimentar Estava dando os primeiros passos no filosofar.
Resposta filosófica
Falta-nos, porém, um terceiro passo para que haja uma experiência filosófica completa. Prossigamos, então, em nossas descobertas.
Na análise que fizemos da situação contida na historieta inicial, a principal questão encontrada foi a que envolve o conceito de felicidade, formulada na pergunta "o que é felicidade?". Trata-se agora, portanto, de buscar uma resposta clara, coerente e elucidativa a essa questão e que tenha caráter universal, isto é, que se aplique a todos os casos ou pessoas. Essas são características importantes de uma resposta filosófica.
Isso quer dizer que as respostas filosóficas não são "qualquer" resposta, pois filosofar não é pensar de qualquer maneira, seja quando se pergunta ou se responde.
Esse terceiro passo para constituir uma experiência filosófica completa não foi dado em nossa historieta. Ela não apresenta uma resposta com tais características. Ao contrário, a resposta de Rupawe chega a provocar em nós, leitores, certo efeito cômico, já que ele não conhece uma definição para a felicidade que sabe sentir. Isso se deve à sua ingenuidade e aparente contradição ao se declarar feliz e, ao mesmo tempo, não saber o que é a felicidade. Dizemos aqui "aparente", porque essa contradição é discutível. Muitas vezes temos o conhecimento particular, intuitivo e experiencial de alguma "coisa", mas não um conhecimento conceitual mais amplo e abstrato dela.
É justamente a distinção entre esses dois tipos de conhecimentos que queremos destacar. A situação relatada não explicita uma resposta que seja ao mesmo tempo clara, coerente e elucidativa, bem como universal, sobre o tema em questão.
Será, porém, fácil de definir a felicidade nesses termos? Não, assim como não é fácil responder à maioria dos temas tratados pelos filósofos em toda a história da filosofia. Tanto que existe muita discordância entre eles, que deram respostas bastante distintas, com frequência contrárias — embora brilhantes —, para as mesmas questões. E muitas vezes, ao respondê-las, criaram novas questões.
Aliás, como veremos ao longo deste blogue, em filosofia não existem respostas definitivas, no sentido de convencer a todos e "acabar com a discussão" (embora seja isso o que pretende e acredita ter alcançado a maioria daqueles que se lançam na tarefa filosófica), Os temas filosóficos são os temas fundamentais da existência humana, mas as pessoas têm experiências distintas, suas vidas mudam e as sociedades também. Por isso, costuma-se dizer que a filosofia é uma contínua conversação.
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O amor à sabedoria pode nos conduzir por caminhos de infinitas descobertas, conferindo maior sentido a nossas existências. Foto de Mike Agliolo |
Felicidade e sabedoria
Voltando ao nosso tema, a felicidade, talvez você já esteja pensando: "Até aqui eu entendi. Mas por que começamos um livro de filosofia falando de felicidade? Afinal, qual é a relação entre felicidade e filosofia?".
Pois bem, a relação é histórica, isto é, vem desde o nascimento da atividade filosófica na Antiguidade grega, há mais de 25 séculos. Como a própria etimologia da palavra revela (é formada dos termos gregos philos, "amigo", "amante", e sophia, "sabedoria"), filosofia quer dizer "amor à sabedoria". E sabedoria, para os gregos, não era apenas um grande saber teórico, mas principalmente prático, tendo em vista que buscava atender ao que consideravam o objetivo supremo da vida humana: a felicidade.
Assim, a filosofia apresentava-se como um conhecimento superior que conduzia à vida boa, isto é, que indicava como viver para ser feliz. E o filósofo se reconhecia como aquele que buscava, praticava e ensinava um método, um caminho para a felicidade.
Finalidade última da filosofia
Em sua origem histórica, a relação entre felicidade e filosofia é fundamental, pois felicidade seria a finalidade última da filosofia. Para que você entenda bem o que queremos dizer com "finalidade última" de uma ação, observe a seguinte sequência de perguntas:
• Filosofar para quê?
Para poder pensar melhor sobre tudo: os fatos, as pessoas, a vida.
• Pensar melhor sobre tudo para quê?
Para encontrar soluções aos problemas da existência, a minha e a de outas pessoas.
• Encontrar essas soluções serve para quê?
Para ter menos problemas, ficar mais tranquilo e viver melhor.
• Viver melhor para quê?
Para sentir-se bem, em paz consigo mesmo e com o mundo.
• Sentir-se assim para quê?
Para ser feliz.
• Ser feliz para quê?
Não sei. Talvez para deixar as pessoas que me cercam felizes também.
• Deixá-las felizes para quê?
Para que eu fique feliz com a felicidade delas.
Vemos que, no final, as respostas começam a ser circulares. Voltam sempre ao mesmo ponto, ou seja, à ideia desse sentimento de bem-estar, de satisfação consigo mesmo e com a vida, ligada também à sensação de plenitude, de já ter udo e não precisar de mais nada. Essa é uma boa descrição da felicidade.
Portanto, finalidade última é aquela que está por detrás de todas as finalidades mais imediatas e conscientes de uma ação. Geralmente inconsciente, ela é o motivo fundamental de uma conduta.
Finalidade última de todos os atos
Usando da mesma lógica contida nessa sequência de perguntas, podemos supor que a felicidade é igualmente a finalidade última de todos os nossos atos, mesmo de ações que parecem "ruins" por algum tempo, ou daquelas que realmente nos fazem mal e aos outros. É que, no fundo, conforme acreditam vários filósofos e psicólogos, a intenção última de toda ação ou conduta é "positiva" no sentido de que, consciente ou inconscientemente, a pessoa está buscando, por meio dessa ação, trazer, preservar, aumentar seu bem-estar, ou mesmo evitar, acabar com uma infelicidade.
É o caso, por exemplo, do jovem que "malha" todos os dias na academia para alcançar uma determinada forma física ou que "racha" de estudar para passar no vestibular. São esforços, "sacrifícios", ações em que se abandona o prazer imediato em busca de um bem maior, que trará felicidade.
Infelizmente, a busca do bem-estar também está por detrás de muitos comportamentos autodestrutivos, como a dependência das drogas, do álcool e do tabaco, ou antissociais, como a violência e a delinquência, sem falar no simples egoísmo e na falta de consideração pelos demais.
Assim, afirmar que a felicidade é a finalidade última de todos os atos não é dizer que todo e qualquer ato traz felicidade. Como você já deve ter experimentado, muitas vezes o que se obtém é o oposto: buscamos felicidade e acabamos conseguindo infelicidade. Por isso é tão importante desenvolver um conhecimento mais crítico sobre o mundo, sobre as coisas. Como diz o ditado popular, "nem tudo que reluz é ouro".
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Viver uma vida feliz pode não ser uma tarefa fácil. Há muitas ilusões e excessos no caminho. Ilustração de Leon Zernitsky |
Reconhecer que existe uma intenção "positiva" por detrás de toda ação pode ser importante, tanto para promover autoconhecimento ou a compreensão entre as coisas, como para desenvolver processos terapêuticos voltados para quem deles necessita. E, claro, também para entender o que é que nos move neste mundo: a felicidade — e nisso somos todos iguais.
A felicidade funciona como um ímã oculto que atrai todas as pessoas em seu magnetismo, impulsionando seus movimentos, suas ações. Sem a perspectiva do bem que traz uma ação, ela perde seu sentido, e o magnetismo se desfaz. Mas quando temos a perspectiva do bem-estar e o alcançamos, vivemos um estado de satisfação com nossa situação no mundo.
Aliás, a etimologia (estudo da origem e evolução das palavras) revela que a palavra felicidade vem do latim felicitas, que, por sua vez, deriva do latim antigo felix, que significa "fértil, frutuoso, fecundo" (cf. Abragnano, Dicionário de filosofia). Felicidade é, portanto, um estado de fecundidade que gera vida e vitaliza nossa existência.
Fonte: Fundamentos de Filosofia
Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes
Código do livro: 28895L2928
Texto maravilhoso!!!
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