Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

A criação da Biologia

      Enquanto caminhava pensativo pelo seu grande jardim zoológico, Aristóteles acabou convencido de que a infinita variedade da vida podia ser disposta numa série contínua na qual cada elo fosse quase que indistinguível do seguinte. Sob todos os aspectos, seja na estrutura, no modo de vida, na reprodução e na criação, ou na sensação e no sentimento, há diminutas gradações e progressões dos organismos mais íntimos para os mais elevados. Na base da escala, mal podemos separar os vivos dos "mortos"; "a natureza faz uma transição tão gradativa do reino inanimado para o animado, que as linhas que os separam são indistintas e duvidosas"; e é possível que exista um grau de vida inorgânico. Repetindo, há várias espécies que não podem ser chamadas, com segurança, de plantas ou de animais. E como é quase impossível, às vezes, classificar esses organismos inferiores segundo o gênero e espécie, tal a semelhança entre eles, em toda ordem de vida a continuidade das gradações e diferenças é tão notável quanto a diversidade de funções e formas. Em meio, porém, a essa assombrosa riqueza de estruturas, certas coisas se destacam de maneira convincente: a vida tem aumentado continuadamente no que se refere a complexidade e poder; a inteligência tem progredido em correlação com a complexidade da estrutura e a mobilidade da forma; tem havido uma crescente especialização de funções e uma continuada centralização do controle fisiológico. A pouco e pouco, a vida criou para si mesma um sistema nervoso e um cérebro; e a mente avançou, resoluta, para o domínio de seu meio ambiente.

      O detalhe notável, aqui, é que, com todas essas gradações e similaridades saltando aos seus olhos, Aristóteles não chega à teoria da evolução. Ele rejeita a doutrina de Empédocles, de que todos os órgãos e organismos são uma sobrevivência dos mais aptos, e a ideia de Anaxágoras de que o homem tornou-se inteligente ao usar as mãos para a manipulação, e não para se movimentar; Aristóteles pensa, ao contrário, que o homem usou as mãos dessa maneira porque se tornara inteligente. De fato, Aristóteles comete tantos erros quanto é possível cometer um homem que está fundando a ciência da biologia. Ele pensa, por exemplo, que o elemento masculino na reprodução simplesmente estimula e apressa; não lhe passa pela cabeça (o que agora sabemos com base em experimentos em partenogênese) que a função essencial do esperma não é tanto fertilizar o óvulo quanto dar ao embrião as qualidades transmissíveis do pai e, assim, permitir que o rebento seja uma variante vigorosa, uma nova mistura das duas linhas ancestrais. Como em sua época não se praticava a dissecação, ele é particularmente fértil em erros fisiológicos: nada sabe a respeito dos músculos, nem mesmo de sua existência; não faz distinção entre artérias e veias; pensa que o cérebro é um órgão para resfriar o sangue; acredita, o que é perdoável, que o homem possui mais suturas no cérebro do que a mulher; acredita, o que é menos perdoável, que o homem tem oito costelas de cada lado; acredita, inexplicavelmente, e o que é imperdoável, que a mulher tem menos dentes do que o homem. Aparentemente, suas relações com as mulheres eram muitíssimo amistosas.

      No entanto, ele faz um progresso total em biologia maior que o de que qualquer outro grego antes ou depois dele. Percebe que os pássaros e os répteis são quase afins no que se refere à estrutura; que o macaco tem uma forma intermediária entre o quadrúpede e o homem; e uma vez declara, com intrepidez, que o homem pertence a um grupo de animais no qual estão os quadrúpedes vivíparos (os nossos "mamíferos"). Declara que, na infância, é praticamente impossível distinguir a alma das crianças da alma dos animais. Faz uma esclarecedora observação no sentido de que a dieta determina, com frequência, o modo de vida; "quanto aos animais, alguns são gregários, e outros, solitários ― vivem da melhor maneira que se adapta (...) à obtenção dos alimentos de sua escolha." (Política, I, 8). Antevê a famosa lei de Von Baer, segundo a qual características comuns ao gênero (como os olhos e os ouvidos) aparecem no organismo em desenvolvimento antes das características peculiares à sua espécie (como a "fórmula" dos dentes) ou ao próprio indivíduo (como a cor final dos olhos); e com dois mil anos de antecedência prenuncia a generalização de Spencer de que a individuação varia em razão inversa à de gênese ― isto é, de que quanto mais altamente desenvolvida e especializada for uma espécie ou um indivíduo, menor será o número de sua prole. (De Generatione Anitnalium, II, 12). Observa e explica a reversão ao tipo ― a tendência de uma variação destacada (como o gênio) a ser diluída na união sexual e perdida em gerações sucessivas. Faz muitas observações zoológicas que, temporariamente rejeitadas por biologistas posteriores, foram confirmadas pela pesquisa moderna ― de peixes que fazem ninhos, por exemplo, e tubarões que possuem placenta.

      E, finalmente, cria a ciência da embriologia. "Aquele que vê as coisas crescerem desde o início", escreve ele, "terá delas a melhor das concepções." Hipócrates (n. 460 a.C.), o maior dos médicos gregos, tinha dado um belo exemplo do método experimental ao quebrar os ovos de uma galinha em vários estágios de incubação; e aplicara os resultados desses estudos no seu tratado Sobre a Origem da Criança. Aristóteles seguiu esse exemplo e realizou experimentos que lhe possibilitaram fazer uma descrição do desenvolvimento do pinto que até hoje provoca a admiração dos embriologistas. Ele deve ter feito experiências originais em genética, porque é contra a teoria de que o sexo da criança depende do testículo que fornece o fluido reprodutor, citando um caso em que o testículo direito do pai tinha sido amarrado e, no entanto, os filhos tinham saído de sexos diferentes. Levanta certos problemas muito modernos quanto à hereditariedade. Uma mulher de Elida havia se casado com um negro; seus filhos foram todos brancos, mas na geração seguinte houve o reaparecimento de negros; onde, pergunta Aristóteles, estava escondida a cor preta da geração intermediária? Dessa pergunta vital e inteligente, foi só um passo para os memoráveis experimentos de Gregor Mendel (1822-1882). Prudens quaestio dimidium scientiae ― saber o que perguntar já é saber a metade. Sem dúvida, apesar dos erros que prejudicam esses trabalhos biológicos, eles formam o maior monumento jamais erguido à ciência por um só homem. Quando pensamos que antes de Aristóteles não houvera, pelo que sabemos, biologia além de observações esparsas, percebemos que esse empreendimento por si só deveria ter sido suficiente para uma vida e teria dado a imortalidade. Mas Aristóteles estava apenas começando.




A História da Filosofia, de Will Durant

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