Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

Aristóteles - Crítica

       O que dizer dessa filosofia? Talvez nada de entusiástico. E difícil ficar entusiasmado com relação a Aristóteles, porque era difícil ele se entusiasmar com alguma coisa; e si vis me flere, primum tibi flendum" ("Se você quiser que eu chore, chore primeiro." ― Horácio [Ars Poética] aos atores e escritores). O seu moto era nil admirari ― não admirar ou ficar maravilhado com coisa alguma; e neste caso, hesitamos em violar-lhe o moto. Não vemos nele o zelo reformador de Platão, o irado amor à Humanidade que fez com que o grande idealista denunciasse seus contemporâneos, não vemos a ousada originalidade de seu professor, a majestosa imaginação, a capacidade de um generoso delírio. No entanto, depois de ler Platão, nada poderia ser tão salutar, para nós, do que a calma cética de Aristóteles.

      Façamos um resumo de nossa divergência. Nós nos aborrecemos, logo de início, com a sua insistência na lógica. Ele acha que o silogismo é uma descrição da maneira de raciocinar do homem, enquanto descreve apenas a maneira de o homem enfeitar o seu raciocínio para a persuasão de outra inteligência; ele supõe que o pensamento começa com premissas e procura as conclusões dessas premissas, quando na verdade o pensamento começa com conclusões hipotéticas e procura as premissas que o justifiquem ― e as procura da melhor maneira com a observação de determinados acontecimentos sob condições de experimento controladas e isoladas. No entanto, como seríamos tolos a ponto de esquecer que dois mil anos apenas alteraram os pontos insignificantes da lógica de Aristóteles, que Occam, Bacon, Whewell, Mill e uma centena de outros só acharam manchas em seu sol e que a criação, por Aristóteles, dessa nova disciplina de pensamento e a sua firme criação das linhas essenciais dessa disciplina continuam entre as duradouras realizações da mente humana.

      E novamente a ausência do experimento e das hipóteses fecundas que deixa a ciência natural de Aristóteles como uma massa de observações não assimiladas. A especialidade dele é a coleta e a classificação de dados; em todos os campos, ele maneja suas categorias e apresenta catálogos. Mas lado a lado com essa tendência e esse talento para a observação, há um apego platônico pela metafísica; isso o estorva em todas as ciências e o engabela, levando-o a fazer as mais absurdas pressuposições. Nisso estava, realmente, o grande defeito da mentalidade grega: ela não era disciplinada; faltavam-lhe tradições limitantes e moderadoras; movia-se livremente em um campo inexplorado e corria a formular com demasiada facilidade teorias e conclusões. Assim, a filosofia grega ia saltando para alturas nunca mais alcançadas, enquanto a ciência grega ficava para trás, claudicando. O nosso perigo moderno é precisamente oposto; dados indutivos caem em cima de nós de todos os lados, como a lava do Vesúvio; ficamos sufocados por fatos descoordenados; nossa mente fica esmagada pelas ciências que geram e se multiplicam num caos especialista por falta de pensamento sintético e de uma filosofia unificadora. Somos, todos, meros fragmentos daquilo que um homem poderia ser.

      A ética de Aristóteles é uma ramificação de sua lógica: a vida ideal é como um silogismo adequado. Ele nos dá um manual de boas maneiras, e não um estímulo ao aperfeiçoamento. Um crítico antigo poderia chamar a Ética de a melhor coleção de trivialidades em toda a literatura; e um anglófobo ficaria consolado com a ideia de que os ingleses, quando jovens, tinham feito uma penitência antecipada pelos pecados imperialistas de sua idade madura, já que tanto em Cambridge como em Oxford tinham sido obrigados a ler, palavra por palavra, a ética nico-aqueana. Ansiamos por misturar frescas e verdes Leaves of Grass com essas páginas mais secas, acrescentar a inebriante apologia do prazer dos sentidos, feitas por Whitman, à exaltação de Aristóteles a uma felicidade puramente intelectual. Nós nos perguntamos se esse ideal aristotélico de imoderada moderação teve alguma coisa a ver com a virtude incolor, a rígida perfeição e as inexpressivas convenções sociais da aristocracia britânica. Matthew Arnold nos conta que, na sua época, os professores de Oxford consideravam a Ética infalível. Durante trezentos anos, esse livro e a Política formaram a mentalidade governante inglesa, talvez para grandes e nobres realizações, mas certamente para uma dura e fria eficiência. Qual teria sido o resultado se os senhores dos maiores impérios tivessem sido nutridos, em vez disso, com o santo fervor e a paixão construtiva de A República?

      Afinal de contas, Aristóteles não era positivamente grego; ele já se estabelecera numa profissão e se formara antes de ir para Atenas; não havia, nele, nada de ateniense, nada do apressado e estimulante experimentalismo que fazia Atenas fervilhar com élan político e que acabou por sujeitá-la a um déspota unificador. Cumpriu com rigor demasiado a ordem délfica de evitar o excesso: está tão ansioso por cortar os extremos, que no final não sobra coisa alguma. Tem tanto medo da desordem, que se esquece de ter medo da escravidão; é tão tímido em relação à mudança incerta, que prefere uma imutabilidade certa que muito se parece com a morte. Falta-lhe aquele senso heraclitiano de fluxo que justifica que o conservador acredite que toda mudança permanente é gradativa, e justifica a crença do radical de que nenhuma imutabilidade é permanente. Ele se esquece de que o comunismo de Platão destinava-se apenas à elite, a minoria altruísta e desprovida de ganância; e chega tortuosamente a um resultado platônico quando diz que, embora a propriedade deva ser privada, o seu uso deve ser, tanto quanto possível, comum. Não percebe (e talvez não se pudesse esperar que percebesse, naquela época) que o controle individual dos meios de produção só era estimulante e salutar quando esses meios eram tão simples que podiam ser adquiridos por qualquer homem; e que o aumento da complexidade e do custo desses meios leva a uma perigosa centralização de propriedade e poder e a uma desigualdade artificial e, por fim, dilaceradora.

      Mas, afinal são críticas inteiramente insignificantes daquilo que resta do mais maravilhoso e influente sistema de pensamento já montado por uma só cabeça. Pode-se duvidar de qualquer outro pensador tenha contribuído tanto para a ilustração do mundo. Todas as eras posteriores recorreram a Aristóteles e subiram-lhe nos ombros para ver a verdade. A variada e magnífica cultura de Alexandria encontrou nele a sua inspiração científica. Seu Organon representou um papel central na formação da mentalidade dos bárbaros medievais, com pensamento disciplinado e consistente. As outras obras traduzidas por cristãos nestorianos para o siríaco no século V a.C., e deste para o árabe e o hebraico no século X, e depois para o latim, mais ou menos em 1225, transformaram a escolástica de seus eloquentes primórdios em Abélard na conclusão enciclopédica em Tomás de Aquino. Os cruzados trouxeram exemplares gregos mais perfeitos dos textos do filósofo; e os eruditos gregos de Constantinopla trouxeram outros tesouros aristocráticos quando, depois de 1453, fugiram dos turcos que os sitiavam. As obras de Aristóteles passaram a ser, para a filosofia europeia, o que a Bíblia era para a teologia ― um texto quase infalível, com soluções para todos os problemas. Em 1215, o núncio papal em Paris proibiu os professores de lecionarem baseados em seus trabalhos; em 1231, Gregório IX nomeou uma comissão para expurgá-lo; em 1260, ele era de rigueur em toda escola cristã, e assembleias eclesiásticas penalizavam os desvios das opiniões de Aristóteles. Chaucer declara que um estudante seu era feliz por ter 

A cabeceira de seu leito
Vinte livros encadernados em preto ou vermelho
De Aristóteles e sua filosofia;

e nos primeiros círculos do Inferno, diz Dante:

Vi, lá, o Mestre daqueles que sabem,
Em meio à família filosófica,
Por todos admirado e por todos reverenciado;
Lá vi também Platão, e Sócrates,
Mais perto dele do que os demais.

      Versos como estes nos dão a ideia da honra que mil anos prestaram ao estagirita. Só quando novos instrumentos, observações acumuladas e experimentos pacientes refizeram a ciência e deram armas irresistíveis a Occam e Ramus, a Roger e a Francis Bacon, o reinado de Aristóteles chegou ao fim. Nenhuma outra inteligência dominara por tanto tempo o intelecto da humanidade.




A História da Filosofia, de Will Durant

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