Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

PLATÃO - Alicerces da filosofia ocidental

      Nascido em Atenas, Platão (427-347 a.C.) pertencia a uma das mais nobres famílias atenienses. Seu nome verdadeiro era Arístocles, mas, devido a sua constituição física, recebeu o apelido de Platão, termo grego que significa "de ombros largos".
      Platão foi discípulo de Sócrates, a quem considerava o mais sábio e o mais justo dos homens. Depois da morte de seu mestre, empreendeu inúmeras viagens, período em que ampliou seus horizontes culturais e amadureceu suas reflexões filosóficas.
      Por volta de 387 a.C. retornou a Atenas, onde fundou sua própria escola filosófica, a Academia, nos jardins construídos por seu amigo Academus. Essa escola foi uma das primeiras instituições permanentes de ensino superior do mundo ocidental. Uma espécie de universidade pioneira dedicada a pesquisa a pesquisa científica e filosófica, além de um centro d formação política. A maior parte do pensamento platônico nos foi transmitida por intermédio da fala de Sócrates, nos diálogos socráticos, escritos pelo próprio Platão. Seu pensamento é tão vasto e importante que deu origem a uma expressão famosa: "toda filosofia ocidental são notas de rodapé a Platão". Vejamos algumas concepções d suas teorias sobre a realidade, o conhecimento e a política.

Platão meditando sobre a imortalidade diante do busto de Sócrates (c. 400 a.C., autoria desconhecida). Platão conheceu Sócrates quando tinha 20 anos. Foi seu discípulo e amigo durante 8 anos, até a morte do mestre.


Dualismo platônico
    Como grande parte dos pensadores de sua época, Platão também enfrentou o impasse criado pelos pensamentos de Parmênides e Heráclito, isto é, sobre o problema da permanência e da mudança, da unidade e da multiplicidade. E chegou a uma conclusão dualista, isto é, de que existem duas realidades diametralmente opostas, baseadas em dois aspectos antropomórficos:
mundo sensível (kósmos horatós, em grego) — corresponde à matéria e compõe-se das coisas como as percebemos na vida cotidiana (isto é, pelas sensações), as quais surgem e desaparecem continuamente. Assim, as coisas e os fatos do mundo sensível são temporárias, mutáveis e corruptíveis (o mundo de Heráclito);
mundo inteligível (kósmos noetós, em grego) — corresponde às ideias, que são sempre as mesmas para o intelecto, de tal maneira que nos permitem experimentar a dimensão do eterno, do imutável, do perfeito (o mundo de Parmênides). Todas as ideias derivam da ideia do bem.



Demiurgo e o mundo
    Apesar de, para Platão, existirem apenas duas realidades, ele supôs que uma terceira realidade operou na criação do mundo, pois — como argumenta o filósofo no diálogo Timeu — tudo o que foi gerado deve ter tido um princípio gerador, isto é, uma causa. Desse modo, defendeu a ideia de que o universo (o mundo sensível) surgiu por obra de um demiurgo, palavra de origem grega que significa "aquele que faz", "construtor".
      De acordo com essa doutrina, o demiurgo buscou as ideias eternas do mundo inteligível como modelo para dar forma à matéria indeterminada (Platão, Timeu, p. 96-97). Isso quer dizer que, de um lado, as ideias e a matéria já existiam antes, sendo, junto com o demiurgo, as três realidades fundamentais da cosmogênese platônica. De outro lado, significa que o mundo sensível foi construído pelo demiurgo (uma espécie de deus "artesão") à imagem das ideias eternas.


Teoria das ideias
    Observe que a concepção dualista de Platão — também conhecida como teoria das ideias — opera uma mudança radical em relação aos pensadores anteriores ao situar o ser verdadeiro fora ou separado do mundo sensível. Não era assim para os filósofos pré-socráticos, que buscavam a arché das coisas nas próprias coisas. Para Sócrates, a essência ou o ser verdadeiro também se encontrava nas coisas.
      Isso significa que o ser verdadeiro é, para esses filósofos, imanente (isto é, encontra-se neste mundo ou se confunde com ele), enquanto para Platão é transcendente.


Processo de conhecimento
    A teoria das ideias também costuma ser estudada em seus aspectos epistemológicos, isto é, como uma teoria sobre o conhecimento verdadeiro (epistemologia). É que, para Platão, o processo de conhecimento desenvolve-se por meio da passagem progressiva do mundo sensível, das sombras e aparências, para o mundo das ideias, das essências (ou seres verdadeiros).
      A primeira etapa desse processo é dominada pelas impressões ou sensações advindas dos sentidos. Essas impressões sensíveis são responsáveis pela opinião que temos da realidade. A opinião representa o saber que se adquire sem uma busca metódica.
      O conhecimento, porém, para ser autêntico, deve ultrapassar a esfera das impressões sensoriais, o plano da opinião, e penetrar na esfera racional da sabedoria, o mundo das ideias. Para atingir esse mundo, o ser humano não pode ter apenas "amor às opiniões" (filodoxia); precisa possuir um "amos ao saber" (filosofia).
      O método proposto por Platão para realizar essa passagem e atingir o conhecimento autêntico (epistéme) é a dialética. Equivalente aos diálogos críticos de Sócrates, a dialética socrático-platônica consiste, basicamente, na contraposição de uma opinião à crítica que dela podemos fazer, ou seja, na afirmação de uma tese qualquer seguida de uma discussão e negação dessa tese, com o objetivo de purificá-la dos erros e equívocos, e permitir uma ascese até as ideias verdadeiras.
      Somente quando saímos do mundo sensível e atingimos o mundo racional das ideias é que alcançamos também o domínio do ser absoluto, eterno e imutável. Nesse mundo das ideias só podemos entrar, segundo Platão, através do conhecimento racional, científico ou filosófico.


O mito da caverna
    Platão criou em seus textos várias alegorias para expor suas doutrinas. A mais conhecida é o mito da caverna, que ajuda a evolução do processo de conhecimento.
      De acordo com essa alegoria, homens prisioneiros desde pequenos encontram-se em uma caverna escura e estão amarrados de tal maneira que permanecem sempre de costas para a abertura da caverna. Nunca saíram e nunca viram o que há fora dela. No entanto, devido à luz de um fogo que entra por essa abertura, podem contemplar na parede do fundo a projeção das sombras dos seres que passam lá fora, em frente do fogo. Acostumados a ver somente essas projeções, isto é, as sombras do que não podem observar diretamente, assumem que o que veem é a verdadeira realidade.
      Se saíssem da caverna e vissem as coisas do mundo luminoso, não as identificariam como verdadeiras ou reais. Isso levaria um tempo. Estando acostumados às sombras, às ilusões, teriam de habituar os olhos à visão do real: primeiro olhariam as estrelas da noite, depois, as imagens das coisas refletidas nas águas tranquilas, até que pudessem encarar diretamente o Sol e enxergar a fonte de toda a luminosidade.

Você consegue estabelecer uma analogia (relação de semelhança) entre algum espaço ou meio do mundo contemporâneo urbano e o mito da caverna? Há alguma situação ou elemento do cotidiano que recorde a prisão em que vivem os homens submetidos às ilusões da caverna? Justifique.


Reis-filósofos
    Na juventude, Platão alimentou o ideal de participação política em Atenas. Depois, desiludido com a democracia ateniense, confessou:

"Deixei levar-me por ilusões que nada tinham de espantosas por causa de minha juventude. Imaginava que, de fato, governariam a cidade reconduzindo-a  dos caminhos da injustiça para os da justiça." (Carta VIII, em História do pensamento, v. 1, p. 58).

      E prossegue, falando de um novo ideal que adotou ao abraçar a filosofia:

"Fui então irresistivelmente levado a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que somente à sua luz se pode reconhecer onde está a justiça na vida pública e na vida privada."

      Assim, Platão elaborou uma doutrina política segundo a qual somente filósofos, eternos amantes da verdade, teriam condições de libertar-se da caverna das ilusões e atingir o mundo luminoso da realidade e sabedoria.
      Por isso, em seu livro A república, imaginou uma sociedade ideal, governada por reis-filósofos. Seriam pessoas capazes de atingir o mais alto conhecimento do mundo das ideias, que consiste na ideia do bem.
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DEMOCRACIA ATENIENSE - O debate em praça pública

      Consideramos brevemente o contexto histórico em que surgiu o pensamento clássico grego. Este coincidiu com o apogeu político, econômico e cultural das cidades gregas, produzido entre os séculos VI e IV a.C. (período clássico da história da Grécia antiga), especialmente de Atenas e de sua democracia.
      Até meados do século VIII a.C., Atenas havia vivido uma monarquia, mas o poder do rei foi passado aos poucos para as mãos dos arcontes, representantes da aristocracia ateniense (os eupátridas), que comandavam o governo da cidade. Entre os séculos VII e VI a.C., diversas reformas — promovidas sucessivamente por Drácon, Sólon e Clístenes — foram criando uma nova forma de governar, a democracia, que se guiava basicamente pelo princípio da isonomia, isto é, de que todos os cidadãos têm o mesmo direito perante as leis.
      A partir do século V a.C., sob a liderança de Péricles (499-429 a.C.), essas reformas políticas aprofundaram-se e Atenas atingiu grande esplendor, tanto no campo econômico como cultural. Nessa cidade viveu — ou por ela passou — boa parte dos mais destacados artistas e intelectuais da época, vindos de diversas partes do mundo grego: dramaturgos, arquitetos, escultores, historiadores e filósofos, entre outros.
      É preciso ressaltar, no entanto, que há várias diferenças entre as democracias atuais e a antiga democracia ateniense. Apenas uma pequena parte da população masculina adulta era reconhecida como cidadão em Atenas. Além disso, tratava-se de uma sociedade escravista. Assim, escravos, mulheres e jovens menores de 21 anos não tinham direitos políticos. Nem mesmo os estrangeiros (os metecos, pessoas não nascidas em Atenas), que residiam em grande número na cidade, podiam participar da vida democrática.
      Por outro lado, apesar dessas limitações, a democracia ateniense era uma democracia direta, isto é, cada cidadão tinha não apenas direito ao voto, mas também à palavra. As discussões se davam na chamada ágora, principal praça pública da cidade, onde se reuniam em assembleia todos os cidadãos.
      Desse modo, a instituição democrática ateniense — propiciando a participação de um número maior de habitantes na discussão sobre temas práticos e públicos — favoreceu também o desenvolvimento de uma cultura que valorizava o uso da palavra e da razão. As habilidades argumentativas e dialéticas dos cidadãos tornaram-se um bem cada vez mais apreciado. Foi nesse contexto que apareceram os sofistas e Sócrates.


Sofistas: a retórica
    Os sofistas pertenciam, em geral, à periferia do mungo grego. Eram professores viajantes que, por determinado preço, vendiam ensinamentos práticos de filosofia. Empregavam a exposição ou monólogo como método de ensino. Levando em consideração os interesses dos alunos, davam aulas de eloquência e de sagacidade mental. Ensinavam conhecimentos úteis para o sucesso nos negócios públicos e privados. Alguns deles diziam-se mestres em qualquer assunto, desde a arte de fazer sapatos até a ciência política e como viver bem na pólis grega. Por isso eram chamados de sofistas, palavra de origem grega que quer dizer "grande mestre ou sábio", algo assim como "super-sábios".
      Segundo alguns estudiosos, as lições dos sofistas tinham como principal objetivo o desenvolvimento do poder de argumentação, a habilidade retórica, bem como o conhecimento de doutrinas divergentes. De acordo com essa interpretação, eles transmitiam todo um jogo de palavras, raciocínios e concepções úteis para driblar as teses dos adversários e convencer as pessoas.
      O momento histórico vivido pela civilização grega favoreceu o desenvolvimento desse tipo de atividade em Atenas. Era uma época de lutas políticas e intenso conflito de opiniões nas assembleias democráticas. Por isso, muitos cidadãos sentiam a necessidade de aprender a retórica ou oratória — arte de falar e argumentar em público — para conseguir persuadir as pessoas em assembleias e, muitas vezes, fazer prevalecer seus interesses individuais e de seu grupo social.
      Essas características dos ensinamentos dos sofistas favoreceram o surgimento de concepções filosóficas relativistas sobre as coisas. Para o relativismo não há uma verdade única, absoluta. Tudo seria relativo ao indivíduo, ao momento histórico, a um conjunto de fatores e circunstâncias de uma sociedade.


Heróis ou vilões
    Como vimos, o termo sofista teve originalmente um significado positivo. Entretanto, com o decorrer do tempo ganhou o sentido de "enganador" ou "impostor", devido, sobretudo, às críticas de Platão, cujo pensamento estudaremos em outro post.
      Desde então, considerou-se a sofista, isto é, a arte dos sofistas, apenas uma atitude viciosa do espírito, uma arte de manipular raciocínios, produzir o falso, iludir os ouvintes, sem qualquer amor pela verdade. Verdade se diz aletheia, em grego, e significa "manifestação daquilo que é", "o não oculto", "aquilo que opõe-se a pseudos, que significa "falso", "aquilo que se esconde, que ilude". Os sofistas pareciam não buscar a aletheia; contentavam-se com pseudos.
      Por isso hoje se utiliza a palavra sofisma, derivada de sofista, para designar um raciocínio aparentemente correto, mas que na realidade é falso ou inconclusivo, geralmente formulado com o objetivo de enganar alguém.
      Entretanto, abordagens mais recentes sobre a atuação dos sofistas procuram mostrar que o relativismo de suas teses fundamenta-se em uma concepção flexível sobre os homens, a sociedade e a compreensão do real. Para os sofistas, as opiniões humanas são infindáveis e não podem ser reduzidas a uma única verdade. Assim, não existiriam valores ou verdades absolutas.
      É importante destacar, por último, que não existe uma doutrina sofista única. O que há são alguns aspectos comuns entre as concepções de certos sofistas, como Protágoras, Górgias e outros, o que permitiu que fossem considerados como um conjunto ou corrente.


Protágoras de Abdera
    Nascido em Abdera (a mesma cidade natal de Demócrito), Protágoras (c. 480-410 a.C.) é considerado o primeiro e um dos mais importantes sofistas. Ensinou por muito tempo em Atenas, tendo como princípio básico de sua doutrina a ideia de que o homem é a medida de todas as coisas.
      Essa frase chegou-nos isolada de seu contexto, tendo, por isso, várias interpretações. Buscando uma síntese entre elas, podemos dizer que Protágoras afirmava que o mundo é aquilo que cada indivíduo o grupo social consegue perceber que é. A realidade é relativa a cada um (indivíduo, grupo social, cultura), isto é, depende de suas disposições. Não se pode saber se há uma realidade absoluta. Desse modo, o mundo é como os seres humanos o interpretam, constroem ou destroem, múltiplo e variado, visão que coincide, em parte, com a de Heráclito.
      A filosofia de Protágoras sofreu críticas em seu tempo por dar margem a um grande subjetivismo: tal coisa é verdadeira se para mim parece verdadeira. Assim, qualquer tese poderia ser encarada como falsa ou verdadeira, dependendo da ótica de cada um.
      Essa visão relativista da realidade também ameaçava o projeto metafísico de conhecer os fundamentos do real (como esboçaram os pré-socráticos) ou a essência das coisas (como defendiam Sócrates, Platão e Aristóteles), despertando por isso grande oposição.

Protágoras de Abdera (1637) — Jusepe de Ribera.


Górgias de Leontini
    Górgias de Leontini (c. 487-380 a.C.), considerado um dos grandes oradores da Grécia, aprofundou o subjetivismo relativista de Protágoras a ponto de defender o ceticismo absoluto. Giórgias afirmava que:
a) o ser não existe;
b) se existisse, não poderia ser conhecido;
c) mesmo que fosse conhecido, não poderia ser comunidade a ninguém.


Sócrates: a dialética


Frase atribuída a Sócrates: "Penso que não ter necessidade é coisa divina e ter as menores necessidades possíveis é o que mais se aproxima do divino".

    Nascido em Atenas, Sócrates (469-399 a.C.) é tradicionalmente considerado um marco divisório da história da filosofia grega. Por isso os filósofos que o antecederam são chamados de pré-socráticos e os que o sucederam, de pós-socráticos. O próprio Sócrates, porém, não deixou nada escrito, e o que se sabe dele e de seu pensamento vem dos textos de seus discípulos e de seus adversários.
      Sócrates era filho de um escultor e de uma parteira. Dupla herança que, simbolicamente, o levou a buscar esculpir uma representação autêntica do ser humano, fazendo-o dar à luz suas próprias ideias.
      O estilo de vida de Sócrates assemelhava-se, exteriormente, ao dos sofistas, embora não "vendesse" seus ensinamentos. Desenvolvia o saber filosófico em praças públicas, conversando com os jovens, sempre dando demonstrações de que era preciso unir a vida concreta ao pensamento. Unir o saber ao fazer, a consciência intelectual à consciência prática ou moral.
      Tanto quanto os sofistas, Sócrates abandonou a preocupação dos filósofos pré-socráticos em explicar a natureza e concentrou-se na problemática do ser humano. No entanto, contrariamente aos sofistas, opunha-se, por exemplo, ao relativismo quanto à questão da moralidade e ao uso da retórica para atingir interesses particulares.


Debate com sofistas
    Embora tenha sido, em sua época, confundido com os sofistas, Sócrates travou uma polêmica profunda com esses filósofos. Procurava um fundamento último para as interrogações humanas (O que é o bem? O que é a virtude? O que é a justiça?), ao passo que os sofistas — conforme a visão de seus críticos — situavam suas reflexões a partir dos dados empíricos, o sensório imediato, sem se preocupar com a investigação de uma essência da virtude, da justiça, do bem etc., a partir da qual a própria realidade empírica pudesse ser avaliada.
      A pergunta fundamental que Sócrates tentava responder era: o que é a essência do ser humano? Ele respondia dizendo que o ser humano é a sua alma, entendendo-se "alma" aqui, como a sede da razão, o nosso eu consciente, que inclui a consciência moral, e que, portanto, distingue o ser humano de todos os outros seres da natureza.
      Por isso, o autoconhecimento era um dos pontos básicos da filosofia socrática. "Conhece-te a ti mesmo", frase inscrita no Oráculo de Delfos, era a recomendação primordial feita por Sócrates a seus discípulos.


Diálogo crítico
    Sua filosofia era desenvolvida mediante o diálogo crítico (ou dialética) com seus interlocutores, o qual pode ser dividido em dois momentos básicos:
refutação ou ironia — etapa em que Sócrates interrogava seus interlocutores sobre aquilo que pensavam saber, formulando-lhes perguntas e procurando evidenciar suas contradições. Seu objetivo era fazê-los tomar consciência profunda de suas próprias respostas, das consequências que poderiam ser retiradas de suas reflexões, muitas vezes repletas de conceitos vagos e imprecisos;
maiêutica — etapa em que Sócrates propunha aos discípulos uma nova série de questões, com o objetivo de ajudá-los a conceber ou reconstruir suas próprias ideias. Por isso, essa fase é chamada de maiêutica, termo que em grego significa "arte de trazer à luz".


A morte de Sócrates (1787) — Jacques-Louis Davi. Alguns filósofos ensinam filosofia, enquanto Sócrates viveu a filosofia.

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Os pré-socráticos e a ciência

      Apresentarei, a seguir, um texto sobre os pré-socráticos e depois pequenos textos que ilustram a importância desses pensadores. Leia-os e responda às questões que seguem.


"A ciência se inicia com problemas
    Um problema significa que há algo errado ou não resolvido com os fatos.
      O seu objetivo é descobrir uma ordem invisível que transforme os fatos de enigma em conhecimento. [...]
      Aqui somos forçados a viajar séculos para trás, para os tempos em que nossos pais, os gregos, começaram a pensar sobre o mundo e a se fazerem perguntas com que os cientistas lutam até hoje. Porque as perguntas que eles fizeram não admitiam uma resposta única e final. Eram como portas que, uma vez abertas, vão dar numa outra porta, muito maior, é verdade, que por sua vez dá em outra, indefinidamente. E aqui estamos nós abrindo portas com as perguntas que geraram as nossas chaves. Vamos seguir o seu pensamento.
      Você já notou que a nossa experiência cotidiana, o que vemos, ouvimos, sentimos, é um fluxo permanente de impressões que não se repete nunca? 'Tudo flui, nada permanece. Não se pode entrar duas vezes num mesmo rio', dizia Heráclito de Éfeso.
      A respeito disso — e aqui está algo que é muito curioso — nós somos capazes de falar sobre as coisas, de ser entendidos, de ter conhecimento.
      Nunca mais haverá nuvens idênticas àquelas que produziram o temporal de ontem. A despeito disto serei capaz de identificar nuvens como nunca existiram antes e dizer que delas a chuva virá. Também nunca mais terei uma laranjeira como aquela que morreu de velhice. Mas serei capaz de identificar uma outra da mesma qualidade e de prever quanto tempo levará para começar a dar os seus frutos.
      Como explicar que o meu discurso sobre as coisas não fique colado às suas aparências? Parece que, ao falar, eu sou capaz de enunciar verdades escondidas, ausentes do visível, expressivas de uma natureza profunda das coisas. Tanto assim que, quando falo, pretendo que estou dizendo a verdade não apenas sobre aquele momento transitório, mas também sobre o passado e o futuro. Laranjas são doces, a água mata a sede, as estrelas giram em torno da Terra, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos: estas não são afirmações sobre o sensório imediato. Elas têm pretensões universais.
      Esta foi a grande obsessão da filosofia grega: estabelecer um discurso que falasse sobre a natureza íntima das coisas, que permanece a mesma em meio à multiplicidade de suas manifestações. [...]
      A leitura da filosofia grega nos introduz, passo a passo, às diferentes fases desta busca, a partir dos filósofos milesianos que achavam que as coisas mantinham sua unidade em meio à multiplicidade porque, lá no fundo, todas se reduziam a um mesmo suco, uma mesma essência. Progressivamente houve uma passagem desta posição, que explica a unidade em termos de substância, para uma outra que considera que a questão fundamental são as relações e funções."

Alves, A filosofia da ciência, p. 40-41.


Sobre Tales
    "A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário determo-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e, enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida (estado latente, prestes a se transformar), está contido o pensamento: 'Tudo é Um'. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego."

Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos, em Souza, Pré-socráticos, p. 10.


Sobre Heráclito
    "Heráclito diz em alguma passagem que todas as coisas se movem e nada permanece imóvel. E, ao comparar os seres com a corrente de um rio, afirma que não poderia entrar duas vezes num mesmo rio. Heráclito retira do universo a tranquilidade e a estabilidade, pois isso é próprio dos mortos; e atribui movimento a todos os seres, eterno aos eternos, perecível aos perecíveis."

Platão, Crátilo, em Souza, Pré-socráticos, p. 77.


Sobre Parmênides
    "O ser É; o não ser Não é. [...] Este princípio, descoberto por Parmênides, é o princípio lógico da identidade.
      Parmênides tem uma importância histórica imensa para a filosofia ocidental. Mas desde Parmênides, e por sua culpa, temos do ser uma concepção estática em lugar de uma concepção dinâmica.
      A própria ciência física sente-se apertada dentro do conceito parmenídico da realidade. Mas o que não entra de maneira alguma dentro de tal conceito do ser é a ciência do homem. A concepção do homem como uma essência quieta, imóvel, eterna, e que se trata de descobrir e conhecer [...] tem que ser substituída por outra concepção de vida na qual o estático, o quieto, o imóvel, o eterno da definição parmenídica não nos impeça de penetrar por baixo e chegar a uma região vital, a uma região vivente, onde o ser [...] seja precisamente o contrário: um ser ocasional, um ser circunstancial, um ser que não se deixe espetar numa cartolina como a borboleta naturalista.
      Parmênides tomou o ser, espetou-o na cartolina há vinte e cinco séculos e lá continua ainda, preso na cartolina, e agora os filósofos atuais não veem o modo de tirar-lhe o alfinete e deixá-lo voar livremente.
      Este voo, este movimento, esta funcionalidade, esta concepção de vida como circunstância, como chance, como resistência que nos revele a existência de algo anterior à posse do ser, algo do qual Parmênides não podia ter ideia, é isto que o homem tem que conquistar. Mas antes de reconquistá-lo reconheçamos que um filósofo que influenciou durante vinte e cinco séculos de maneira tão decidida o curso do pensamento filosófico merece algo mais que as poucas páginas que lhe costumam dedicar os manuais de filosofia.

García Morente, Fundamentos de filosofia, p. 70-77.


1. O educador brasileiros Rubem Alves (1933-2014) estabelece uma relação entre o início da filosofia e o início da ciência. Que relação é essa?

2. Como esse autor sintetiza a evolução da filosofia grega em seus primórdios?

3. Interprete as razões apontadas pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) para levarmos a sério a proposição de Tales de que "a água é a origem e a matriz de todas as coisas".

4. Justifique com trechos do texto de Platão a seguinte afirmação: "Heráclito proclama o permanente fluir da realidade. O ser é sempre dinâmico".

5. Interprete o significado da frase de Platão: "Heráclito retira do universo a tranquilidade e a estabilidade".

6. Interprete a afirmação do filósofo espanhol Manuel García Morente (1886-1942): "A própria ciência física sente-se apertada dentro do conceito parmenídico da realidade". Por que "apertada"? Como a física tem compreendido a realidade física através do tempo?

7. Segundo García Morente, a ciência do ser humano não se encaixa de maneira nenhuma no conceito parmenídico da realidade. Por quê? O que ele propõe?

8. O que significa, para você, assumir uma concepção não estática da vida? Você acha que existe algo de permanente e eterno, que nunca muda nem deve mudar? Discuta esta questão: o permanente e o transitório em sua vida.


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PRÉ-SOCRÁTICOS - Os primeiros filósofos gregos

      De acordo com a tradição histórica, a fase inaugural da filosofia grega é conhecida como período pré-socrático (isto é, anterior a Sócrates). Assim, esse período abrange o conjunto das reflexões filosóficas desenvolvidas desde Tales de Mileto, no século VII a.C., até o surgimento de Sócrates, no século V a.C.
      É difícil conhecer o pensamento desse período em toda a sua dimensão, pois são poucos os escritos encontrados dos seus pensadores, e até mesmo as datas de nascimento e morte são incertas.
      Cabe ressaltar, também, que alguns filósofos chamados de "pré-socráticos" foram contemporâneos de Sócrates, mas são assim designados porque mantiveram o tipo de investigação de seus predecessores, centrado na natureza. Sócrates, por sua vez, inaugurou outro tipo de reflexão, centrada no ser humano, dando início a outra tradição filosófica.
      No vasto mundo grego, a filosofia teve como berço a cidade de Mileto, situada na Jônia, litoral ocidental da Ásia Menor. Caracterizada por múltiplas influências culturais e por um rico comércio, Mileto abrigou os três primeiros pensadores da história ocidental a quem atribuímos a denominação filósofos. São eles: Tales, Anaximandro e Anaxímenes.
      Destaca-se, entre os objetivos desses primeiros filósofos, a construção de uma cosmologia — explicação sobre a origem do universo baseada nos mitos.
      Por isso, tentaram descobrir, com base na razão e não na mitologia, o princípio substancial ou substância primordial (a arché, em grego) existente em todos os seres materiais. Ou seja, pretendiam encontrar a "matéria-prima" de que são feitas todas as coisas). Qual era a arché para cada pensador pré-socrático? É o que detalharemos em seguida.


Tales: a água


Acredita-se que Tales teria aprendido boa parte de seus conhecimentos com egípcios e babilônios. Considerado o primeiro pensador grego, "o pai da filosofia", e o mais antigo dos sete sábios da Grécia, buscou a construção do pensamento racional em diversos campos do conhecimento, como a astronomia e a geometria.

   
Tales de Mileto (c. 623-546 a.C.) é tido como o pensador que deu início à indagação racional sobre o universo. Inspirando-se provavelmente em concepções egípcias, acrescidas de suas próprias observações de corpos hídricos — como rios e mares —, bem como da vida animal e vegetal, ele dizia: "Tudo é água".
      Para ele, a água — por permanecer basicamente a mesma, em todas as transformações dos corpos, apesar de assumir diferentes estados (sólido, líquido e gasoso) — seria a árche, a substância primordial, a origem de todas as coisas, presente em tudo o que existe.
      Como princípio vital, a água penetraria todas as coisas e tudo seria animado por ela, de tal modo que tudo teria alma (isto é, anima ou psyché). Por isso, tudo seria divino (ou "cheio de deuses"), não havendo separação entre o sagrado e o mundano. O universo seria uno e homogêneo.
      Apesar da simplicidade da afirmação de Tales a respeito da água — e considerando que a água não representava para ele o mesmo que representa hoje para nós —, pela primeira vez tentava-se explicar a multiplicidade da realidade de maneira sintética e simples, empregando um elemento natural e concreto, visível para todos.
      Era também a primeira concepção monista da filosofia, isto é, que considera que tudo o que existe pode ser reduzido a um princípio único ou realidade fundamental. Muitas outras surgiriam depois.


Anaximandro: o indeterminado


Anaximandro teria desenvolvido diversos estudos e trabalhos nas áreas de geometria, geografia e astronomia. A ele são atribuídas, por exemplo, a confecção de um mapa celeste e de um mapa terrestre das regiões habitadas, a introdução do gnômon (relógio d sol) na Grécia e a tese de que a Terra é cilíndrica e estaria no centro do universo.

    Outro milésio, Anaximandro (c. 610-547 a.C.), discípulo de Tales, procurou aprofundar as concepções do mestre sobre a origem única de todas as coisas e resolver os problemas que este lançara.
      Em meio aos diversos elementos observáveis e determinados no mundo natural, pares de contrários que se "devoram entre si" (água, terra, ar e fogo), Anaximandro acreditava não ser possível eleger uma única substância material como princípio primordial de todos os seres, a arché. Ele dizia que tinha de ser alguma substância diferente, ilimitada, e que dela nascessem o céu e todos os mundos nele contidos.
      Assim, para esse filósofo, o princípio primordial deveria ser algo que transcendesse os limites do observável, ou seja, não se situaria em uma realidade ao alcance dos sentidos, como a água. Por isso, denominou-o ápeiron, termo grego que significa "o indeterminado", "o infinito" no tempo.
      O ápeiron seria a "massa geradora" dos seres e do cosmo, contendo em si todos os elementos opostos. Segundo sua explicação, por diversos processos naturais de diferenciação entre contrários (por exemplo, frio e calor) e de evaporação teriam surgido o céu e a Terra, bem como os animais, em uma sucessão evolutiva que faz lembrar a bem posterior teoria da evolução das espécies (do século XIX).
      O cosmo se manteria por compensações cíclicas entre os contrários (as sucessivas estações do ano) até ser reabsorvido no ápeiron e recriado novamente a partir deste. Ou seja, trata-se de um cosmo dinâmico mas limitado no tempo (que é cíclico) e que tem sua origem e seu fim no ápeiron, o qual é infinito.
      Temos, desse modo, certo retorno a algumas concepções relativas aos deuses primordiais (ao Caos mítico, por exemplo), porém sem voltar diretamente a eles e com maior grau de abstração conceitual e justificação lógica (Bernhardt, O pensamento pré-socrático: de Tales aos sofistas, em Châtelet, História da filosofia: ideias, doutrinas, v. 1, p. 30).


Anaxímenes: o ar
    Um terceiro milésio, Anaxímenes (c. 588-524 a.C.), discípulo de Anaximandro, concordava que a origem de todas as coisas é indeterminada. Entretanto, recurou-se a atribuir essa indeterminação o caráter de arché.
      Para ele, esta não poderia ser um elemento situado fora dos limites da observação e da experiência sensível, como o ápeiron de Anaximandro.
      Em discordância com aspectos do pensamento dos dois mestres anteriores, mas buscando uma síntese entre eles, Anaxímenes incorporou argumentos de ambos e propôs o ar como princípio de todas as coisas: "Como nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o cosmo sopro e ar o mantém" (Anaxímenes, em Souza, Pré-socráticos, p. 51).
      O ar seria um elemento mais sutil que a água, quase inobservável, mas que nos animaria, nos daria vida, como testemunha nossa respiração. Infinito e ilimitado, penetrando todos os vazios do universo, o ar constituiria uma arché mais determinada que o ápeiron. Também seria um princípio ativo, gerador de movimento, como nos ventos.
      Segundo Anaxímenes, pelos processos de rarefação e condensação se formariam os outros elementos — que, para os antigos, eram a terra, a água e o fogo, além do próprio ar — e, a partir destes, todos os demais. A terra, por exemplo, seria o estado mais condensado (isto é, de menor volume) do ar, enquanto o fogo seria o mais rarefeito (isto é, de maior volume). Nascido do ar e movido por ele, o cosmo seria uma espécie de respiração gigante.

Anaxímenes nasceu em Mileto e foi discípulo e sucessor de Anaximandro. Teria defendido teses astronômicas acertadas e equivocadas, como as de que a Terra é plana e estaria assentada sobre o ar, a luz da Lua é reflexo da luz do Sol e seus eclipses são consequência de terem sido obstruídos por outro corpo celeste.


Pitágoras: os números


Conta-se que Pitágoras sofreu perseguição política em sua terra natal, a ilha de Samos (situada na costa jônica, não distante de Mileto), sendo obrigado a exilar-se em Crotona, na Magna Grécia, onde fundou uma sociedade secreta, de caráter mítico-filosófico. Por seu projeto político, foi expulso também de Crotona. As principais contribuições da escola pitagórica podem ser encontradas nos campos da matemática (lembre-se do célebre teorema de Pitágoras), da música e da astronomia.

   
Resposta bastante distinta na busca da arché veio de Pitágoras de Samos (c. 570-490) a.C.). Profundo estudioso da matemática, Pitágoras defendeu a tese de que todas as coisas são números.
      Conta-se que, para chegar a essa tese, primeiro teria percebido que à harmonia dos acordes musicais correspondiam certas proporções aritméticas. Supôs, então, que as mesmas relações se encontrariam na natureza. Unindo essa suposição aos seus conhecimentos de astronomia — que podia, por exemplo, calcular antecipadamente o deslocamento dos astros —, concebeu a ideia de um cosmo harmônico, regido por relações matemáticas (teoria da harmonia das esferas).
      Se para Pitágoras "tudo é número", isso quer dizer que o princípio fundamental (a arché) seria a estrutura numérica, matemática, da realidade. A diferença entre as coisas resultaria, essencialmente, de uma questão de números. Os pitagóricos entendiam, por exemplo, que os corpos eram constituídos por pontos e a quantidade de pontos de um corpo definiria suas propriedades.
      O mundo teria surgido da fixação de limites para o ilimitado (o ápeiron), da imposição de formas numéricas sobre o espaço. E da estrutura numérica da realidade derivariam problemas como finito e infinito, par e ímpar, unidade e multiplicidade, reta e curva, círculo e quadrado etc.
      Observe que, com Pitágoras, pela primeira vez na história da filosofia ocidental se introduzia, na explicação da realidade, um elemento mais formal, fundado na ordem e na medida.

Formal — que considera as relações existentes entre os termos de uma operação do entendimento, independentemente da matéria ou conteúdo dessa operação.

      Há, portanto, um monismo em Pitágoras, quando ele diz que tudo é número. No entanto, seu princípio sobre a origem do mundo pode também ser entendido como dualista. Segundo essa doutrina, o mundo surgiu de um ápeiron determinado pelo limite, princípios este que instaura o múltiplo, mas mantém a unidade e a ordem universal. O limite operaria como um deus, ou seria o próprio Deus (Bernhardt, O pensamento pré-socrático: de Tales aos sofistas, em Châtelet, História da filosofia: ideias, doutrinas, v. 1, p. 34).
      Apaixonados pela matemática os pitagóricos aliaram aos números concepções não apenas filosóficas, mas também míticas, desenvolvendo uma visão espiritual da existência. Por isso, propunham e praticaram um estilo de vida baseado na crença de que a alma é prisioneira do corpo e que dele se libera com a morte. Poderia, então, reencarnar-se em uma forma de existência mais elevada, dependendo do grau de crescimento e virtude que a pessoa tivesse alcançado. Assim, para eles, o principal propósito da existência humana seria o de purificar a alma e elevar suas virtudes.
      As doutrinas pitagóricas tiveram grande influência sobre Platão e o platonismo. Recordemos, por último, que se atribui a Pitágoras o uso da palavra filosofia pela primeira vez.

Em sua opinião, seria possível estabelecer alguma relação entre o pensamento de Pitágoras e a ciência moderna? Por quê?


Heráclito: fogo e devir


Heráclito nasceu no seio da nobreza governante de Éfeso. Também conhecido como "o Obscuro", desenvolveu um pensamento assistemático e polêmico. Escreveu sob a forma de aforismos, isto é, frases curtas e marcantes, muitas vezes de sentido simbólico.

    Em outra cidade jônica, Éfeso, também se desenvolveu um pensamento distinto e original. Isso se deveu a Heráclito (c. 535-475 a.C.), estudioso da natureza e preocupado com a arché.
      Assim como os pensadores de Mileto, Heráclito observava que a realidade é dinâmica e que a vida está em constante transformação. Mas, diferentemente dos milésios — que buscavam na mudança aquilo que permanece —, decidiu concentrar sua reflexão sobre o que muda. Assim, o filósofo dirá que tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo. O ser não é mais que o vir a ser. "Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sobre ti" (Heráclito, em Souza, Pré-socráticos, p. XXXI).
      Heráclito também observou, como seus predecessores, a atuação dos opostos na natureza (frio e calor,  seco e úmido etc.), mas radicalizou essa observação, conferindo papel essencial a esse conflito em sua cosmologia. Para ele, o fluxo constante da vida seria impulsionado justamente pela luta de forças contrárias: a ordem e a desordem, o bem e o mal, o belo e o feio, a construção e a destruição, a justiça e a injustiça, o racional e o irracional, a alegria e a tristeza etc. Assim, afirmava que "a luta (guerra) é a mãe, rainha e princípio d todas as coisas". É pela luta das forças opostas que o mundo se modifica e evolui.
      Por isso, Heráclito imaginou que, se devia haver um elemento primordial na natureza, este teria que ser o fogo, com chamas vivas e eternas, governando o constante movimento dos seres.

"Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos deus ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e sera um fogo eternamente vivo, que se acende com medida e se apaga com medida." (Heráclito, em Souza, Pré-socráticos, p. XXVIII).

      A medida desse acender e apagar do fogo seria determinada pelo logos — o pensamento, a razão —, que, para Heráclito, era a razão criadora e unificadora das tensões opostas, a razão-discurso do filósofo: "É sábio escutar não a mim, mas a meu discurso" (Heráclito, em Souza, Pré-socráticos, p. xxx). Ele resgatava, assim, a unidade, mas uma unidade descortinada pela mente atenta, desperta, em vigília.
      Pela importância que deu ao movimento, a escola heraclitiana de pensamento é chamada de mobilista. Apesar de não ter sido muito bem visto entre seus contemporâneos e estudiosos posteriores, Heráclito é considerado um dos mais destacados filósofos pré-socráticos e o primeiro grande representante do pensamento dialético. Teria inspirado filósofos como Nietzsche, Hegel e Heidegger, entre outros.


Pensadores de Eleia
    As diversas cosmologias que acabamos de estudar despertaram, na época, uma nova questão. Por que tanta divergência? Por que tantas opiniões contrárias?
      Foi assim que surgiu na cidade de Elena outra forma de reflexão sobre a realidade, a qual se oporia tanto à preponderância fisicista dos pensadores de Mileto como ao mobilismo de Heráclito. Trata-se da chamada escola eleática, da qual Parmênides foi o principal expoente.


Parmênides: o ser

Parmênides nasceu em Eleia, na Magna Grécia (litoral sul e sudoeste da península Itálica), no seio de uma família nobre. Para muitos, foi o principal filósofo pré-socrático, exercendo grande impacto no pensamento de Platão, que o chamava de Grande Parmênides. Suas reflexões sobre o ser constituíram os primeiros passos da ontologia e da lógica.

    Parmênides (c. 510-470 a.C.) entendia que o equívoco das pessoas e dos demais pensadores era conceder demasiada importância aos dados fornecidos pelos sentidos (Descartes diria algo parecido mais de dois mil anos depois). Embora também percebesse pela via sensorial a mudança e o movimento no mundo, achava contraditório buscar a essência (a arché) naquilo que não é essencial, buscar a permanência naquilo que não permanece (a mudança, o movimento) ou supor que aquilo que é permanente pudesse converter-se em algo impermanente.
      Assim, Parmênides optou por escutar o que lhe dizia a razão — e não os sentidos, que o faziam sentir a mudança — e proclamou que existe o ser e não é concebível sua não existência. Desse modo: "O quer é e o não ser não é". Tentemos compreender melhor essa frase, aparentemente tão óbvia:

• da primeira oração ("o ser é") podemos extrair que o ser (aquilo que é) é eternamente, pois o ser constitui, para ele, a substância permanente das coisas. Portanto, o ser é de maneira imutável e imóvel, e é o único que existe. O ser é a arché de Parmênides, não identificada com nenhum elemento natural, sensível, mas, ao mesmo tempo, equivalente a toda corporeidade, com tudo o que existe, pois o ser é uno, pleno, contínuo e absoluto;
• na segunda oração ("o não ser não é"), temos que o não ser (a negação do ser) não é, não tem ser, substância, essência. Portanto é nada, não existe. Essa é uma conclusão lógica, pois se o ser é tudo, o não ser só pode não existir. Para Parmênides, o não ser se identificaria com a mudança (o devir), pois mudar é justamente não ser mais aquilo que era, nem ser ainda algo que é.

      Em vista dessa formulação, Parmênides é considerado o primeiro filósofo a expor o princípio de identidade (A = A) e de não contradição (se A = A, é impossível, ao mesmo tempo e na mesma relação, A = não A), cuja argumentação seria depois mais bem desenvolvida por Aristóteles.
      Em seu poema filosófico Sobre a natureza (aliás, nessa época, a maioria dos pensadores escrevia sob a forma de poemas), Parmênides expôs que dois caminhos para a compreensão da realidade têm sido trilhados. O primeiro é o da verdade, da razão, da essência. O segundo é o da opinião, da aparência enganosa, que ele considerava a via de Heráclito. Quando a realidade é pensada pelo caminho da aparência, tudo se confunde em movimento, pluralidade e devir. De acordo com Parmênides, essa via precisaria ser evitada para não termos de concluir que "o ser e o não ser são e não são a mesma coisa", o que seria um contrassenso, uma formulação ilógica.
      Foi a partir dessa discussão sobre os contrários, sobre o ser e o não ser, que se iniciaram a lógica e a ontologia e suas relações recíprocas.


Zenão


Junto com Parmênides e Xenófanes (pensador não estudado nesta postagem), Zenão de Eleia é considerado um dos principais filósofos da escola eleática.

    Discípulo de Parmênides, Zenão de Eleia (c. 488-430 a.C.) elaborou argumentos para defender a doutrina de seu mestre. Com eles pretendia demonstrar que a própria noção de movimento era inviável e contraditória.
      Desses argumentos, talvez o mais célebre seja o paradoxo de Zenão, que se refere à corrida de Aquiles (herói grego, segundo a mitologia) com uma tartaruga. Dizia Zenão:
a) Se, na corrida, a tartaruga saísse à frente de Aquiles, para alcançá-la ele precisaria percorrer uma distância superior à metade da distância inicial que os separava no começo da competição.
b) Entretanto, como a tartaruga continuaria se locomovendo, essa distância, por menor que fosse, teria se ampliado. Aquiles deveria percorrer, então, mais da metade dessa nova distância.
c) A tartaruga, contudo, continuaria se movendo, e a tarefa de Aquiles se repetiria ao infinito, pois o espaço pode ser dividido em infinitos pontos.

      Na observação que fazemos do mundo, através de nossos sentidos, é evidente que o argumento de Zenão não corresponde à realidade. Por isso, é chamado de paradoxo, isto é, um raciocínio que parece correto e bem fundamentado, mas cujo resultado entra em contradição com a experiência do mundo real.
      Geralmente isso ocorre porque se trata, na verdade, de uma falácia, ou seja, um raciocínio logicamente equivocado que leva a uma conclusão errônea, com aparência de verdadeira. Mas enquanto não se sabe se existe e onde está a falácia, o que temos é um paradoxo (Bunch, Matemática insólita: paradojas y paralogismos, p. 1-2).

Os paradoxos de Zenão foram debatidos durante séculos por filósofos, físicos e matemáticos. E hoje já existe um cálculo que demonstra que Aquiles alcançou a tartaruga.

      Os argumentos usados por Zenão demonstram as dificuldades pelas quais passou o pensamento racional para compreender conceitos como movimento, espaço, tempo e infinito, entre tantos outros.


Empédocles: quatro elementos


O filósofo, médico, professor, místico e poeta Empédocles nasceu em Aeragas, hoje Agrigento, então parte da Magna Grécia. Além de defensor da democracia, foi um profundo teórico da evolução dos seres vivos. É considerado o primeiro sanitarista da história.

    Empédocles (c. 490-430 a.C., aproximadamente) esforçou-se por conciliar as concepções de Parmênides e Heráclito. Aceitava de Parmênides a racionalidade de que afirma a existência e permanência do ser ("o ser é"), mas procurava encontrar uma maneira de tornar racional os dados captados por nossos sentidos.
      Defendeu, assim, a existência de quatro elementos primordiais, que constituem as raízes de todas as coisas percebidas: o fogo, a terra, a água e o ar. Esses elementos seriam movidos e misturados de diferentes maneiras em função de dois princípios universais opostos:
amor (philia, em grego) — responsável pela força de atração e união e pelo movimento de crescente harmonização das coisas;
 ódio (neikos, em grego) — responsável pela força de repulsão e desagregação e pelo movimento de decadência, dissolução e separação das coisas.
      Para Empédocles, todas as coisas existentes na realidade estão submetidas às forças cíclicas desses dois princípios.


Demócrito: o átomo


Demócrito nasceu em Abdera, cidade situada no litoral mediterrâneo, entre a Macedônia e a Trácia (região que hoje pertence ao nordeste da Grécia). Teria sido discípulo de Leucipo, supostamente o verdadeiro fundador do pensamento atomista. No entanto, a existência real de Leucipo ainda é discutível para alguns estudiosos.

    Finalmente, destacou-se na busca pela arché a resposta concedida por Demócrito (c. 460-370 a.C.). Antes, porém, é preciso ressaltar que, embora seja considerado um pré-socrático, Demócrito viveu na mesma época de Sócrates de Atenas, sendo talvez apenas cerca de 10 anos mais novo que este. Apesar da simultaneidade cronológica, essa classificação tradicional justifica-se pelo fato de que o pensamento democrático inscreve-se na tradição de busca de uma arché explicativa de tudo o que existe, própria dos pré-socráticos.
      Demócrito foi o filósofo responsável — junto com seu mestre, Leucipo — pelo desenvolvimento de uma doutrina conhecida pelo nome de atomismo. Concordava com a necessidade de plenitude e unidade do ser (como havia afirmado Parmênides), mas não aceitava que o não ser (o movimento, a multiplicidade) fosse uma ilusão. Para ele, a experiência do movimento era justamente a prova da existência de um não ser, que em sua concepção era o vazio. Sem espaço vazio, nenhuma coisa poderia se mover, argumentava o filósofo.
      Segundo sua doutrina, todas as coisas que formam a realidade são constituídas por partículas invisíveis (porque muito minúsculas) e indivisíveis. Denominou-as, por isso, átomos, palavra de origem grega que significa "não divisível" (a, negação; tomo, "parte, divisão"). O átomo democrítico seria equivalente ao ser parmenídico: uno, pleno e eterno.
      No entanto, além dos átomos, Demócrito concebeu a noção de que toda a realidade é composta também do vazio, que representaria a ausência de ser (o não ser). Devido ao vazio, torna-se possível o movimento do ser — que é o movimento dos átomos, segundo a teoria atomista.
      Os átomos seriam homogêneos entre si, isto é, teriam o mesmo ser, a mesma natureza fundamental. No entanto, seriam infinitos em número por sua figura ou configuração. Nesse sentido, seriam heterogêneos e nunca se converteriam uns nos outros, razão pela qual o atomismo é considerado uma doutrina pluralista por grande parte dos autores.
      Há também um dualismo em sua concepção, pelo fato de afirmar que toda a realidade é composta de átomos e vazio. Mas sabemos que o vazio era entendido por Demócrito como não ser, de tal maneira que não era uma substância, não constituindo, portanto, uma arché em seu sentido pleno.
      Demócrito também entendeu que os átomos estão em constante movimento espiralado (de vórtices), chocando-se uns com os outros, ao acaso. Nesses entrechoques, podem atrair-se e aglomerar-se ou repelir-se e separar-se. Quando os átomos se aglomeram (sempre com certo vazio entre eles para que realizem sua movimentação eterna), formam-se os distintos corpos, com suas qualidades específicas, que nossos sentidos percebem.
      As distintas e infinitas composições dos átomos eram explicadas por Demócrito de acordo com três fatores básicos:
figura — a forma geométrica de cada átomo que compõe o corpo, bem como sua grandeza e seu peso. Assim, átomo de figura A ≠ átomo de figura B. O fogo, por exemplo, seria um aglomerado de átomos de mesma figura, todos redondos, pequenos e leves, de acordo com Demócrito;
ordem — a sequência espacial dos átomos de mesma figura que compõem um corpo. Assim, AB ≠ BA;
posição — a situação de cada átomo em relação às coordenadas espaciais.
      Os pensamentos e a alma eram explicados de maneira semelhante, pela aglomeração de átomos mais leves e sutis. E o nascimento e a morte não existiriam, no sentido de uma geração ou corrupção da matéria (isto é, transformações qualitativas); seriam apenas o resultado da união ou separação de átomos, e estes se manteriam sempre os mesmos, eternos. Daí a afirmação de Demócrito de que "nada nasce do nada, nada retorna ao nada". Tudo tem uma causa. E os átomos seriam a causa última do mundo.
      Por essa razão, o atomismo passou à história como uma teoria mecanicista, pois explica tudo a partir dos átomos (matéria) e seus movimentos. No mecanicismo, a sucessão dos acontecimentos é necessária — no sentido de que segue uma lei natural que a determina —, mas ocorre ao acaso — no sentido de que não tem um projeto ou finalidade (não que não tenha uma causa). É como o mecanismo de uma máquina, que não define nada, apenas funciona de acordo com as leis físicas. Assim devia pensar Demócrito quando disse que tudo o que existe no universo nasce do acaso ou da necessidade.


Observação: Com exceção das escolas eleática e pitagórica de pensamento (que propuseram uma arché mais abstrata), as concepções dos pré-socráticos costuram ser consideradas fisicalistas ou materialistas, seja porque seu enfoque deu-se principalmente sobre a physis, seja porque tenderam a identificar entidades físicas como princípios explicativos de toda a realidade. Isso não quer dizer que esses filósofos negassem a existência da alma ou dos deuses. O enfrentamento entre matéria e espírito ou corpo e mente não havia surgido ainda na história das ideias. Para eles, tanto a alma como os deuses participavam dos mesmos princípios, da mesma arché que concebiam para tudo, como fica claro no atomismo. Essa noção começaria a mudar com o dualismo platônico.
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PÓLIS E FILOSOFIA - A passagem do mito ao logos

      Na história do pensamento ocidental, a filosofia nasce na Grécia entre os séculos VII e VI a.C., promovendo a passagem do saber mítico (alegórico) ao pensamento racional (logos). essa passagem ocorreu durante longo processo histórico, sem um rompimento brusco e imediato com as formas de conhecimentos utilizadas no passado.
      Durante muito tempo os primeiros filósofos gregos compartilharam de crenças míticas, enquanto desenvolviam o conhecimento racional que caracterizaria a filosofia. Essa transição do mito à razão "significa precisamente que já havia, de um lado, uma lógica do mito e que, do outro lado, na realidade filosófica ainda está incluído o poder do lendário" (Chátelet, História da filosofia: ideias, doutrinas, v. 1, p. 21).
      Conforme analisa o historiador francês Pierre Grimal (1912-1996) em A mitologia grega:

"O mito se opõe ao logos como a fantasia à razão, como a palavra que narra à palavra que demonstra. Logos e mito são as duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida do espírito. O logos, sendo uma argumentação, pretende convencer. O logos é verdadeiro, no caso de ser justo e conforme a 'lógica'; é falso quando dissimula alguma burla secreta (sofisma). Mas o mito tem por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou não nele, conforme a própria vontade, mediante um ato de fé, caso pareça 'belo' ou verossímil, ou simplesmente porque se quer acreditar. O mito, assim, atrai em torno de si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano; por sua própria natureza, é aparentado à arte, em todas as suas criações." (p. 89).

      A força da mensagem dos mitos reside, portanto, na capacidade que têm de sensibilizar estruturas profundas, inconscientes, do psiquismo humano. Conheçamos, então, um pouco da mitologia grega.


Mitologia grega
    Os gregos cultuavam uma série de deuses (Zeus, Hera, Ares, Atena etc.), além de heróis ou semideuses (Teseu, Hércules, Perseu etc.). Relatando a vida desses deuses e heróis e seu envolvimento com os humanos, criaram uma rica mitologia, isto é, um conjunto de lendas e crenças que, de modo simbólico, fornecem explicações para a realidade universal. Integra a mitologia grega grande número de "relatos maravilhosos" e de lendas que inspiraram e ainda inspiram diversas obras artísticas ocidentais.
      O mito de Édipo, rico em significados, é um exemplo disso. Na Antiguidade, foi utilizado pelo dramaturgo Sófocles (496-406 a.C.), na tragédia Édipo rei, para uma reflexão sobre as questões da culpa e da responsabilidade dos indivíduos perante as normas e os tabus (comportamento que, dentro dos costumes de uma comunidade, é considerado nocivo e perigoso, sendo por isso proibido a seus membros). Leia no boxe a seguir um resumo desse relato mítico.

Édipo e a Esfinge.



Pólis e razão
    Retomemos a nosso tema, o nascimento da filosofia. Segundo análise do historiador francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007), o momento histórico da Grécia antiga em que se afirma a utilização do logos (a razão) para resolver os problemas da vida estaria vinculado ao surgimento da pólis, cidade-Estado grega.
      A pólis foi uma nova forma de organização social e política desenvolvida entre os séculos VIII e VI a.C. Nela, eram os cidadãos que dirigiram os destinos da cidade. Como criação dos cidadãos, e não dos deuses, a pólis estava organizada e podia ser explicada de forma racional, isto é, de acordo com a razão.


Debate em praça pública
    A prática constante da discussão política em praça pública pelos cidadãos — especialmente em Atenas — contribuiu para que o raciocínio bem formulado e convincente se tornasse, com o tempo, o modo adotado para refletir sobre todas as coisas, não só as questões políticas. Por isso, para Vernant, a razão grega é filha da pólis, e o nascimento da filosofia relaciona-se de maneira direta com o universo espiritual que assim surgiu:

"O que implica o sistema da pólis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. [...] A palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação [...]. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, através de sua função política. [...]
Uma segunda característica da pólis é o cunho de plena publicidade dada às manifestações mais importantes da vida social. [...] A cultura grega constitui-se, dando a um círculo sempre mais amplo — finalmente ao demos [povo] todo — o acesso ao mundo espiritual, reservado no início a uma aristocracia [...]. Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levadas à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia.
[...] Doravante, a discussão, a argumentação, a polêmica tornam-se as regras do jogo intelectual, assim como do jogo político. Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida pública; é a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma completa divulgação de conhecimentos previamente reservados ou interditos." (Vernant, As origens do pensamento grego, p. 34-36).
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Da distinção entre conhecimento puro e empírico

As fontes do conhecimento    
    "Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência [...]. Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento de experiência seja um composto daquilo que recebemos por impressões e daquilo que a nossa própria faculdade de conhecimento (apenas provocada por impressões sensíveis) fornece de si mesma, cujo acréscimo não distinguimos daquela matéria-prima antes que um longo exercício nos tenha chamado a atenção para ele e nos tenha tornado aptos a abstraí-lo.

Os conhecimentos a priori a posteriori
    Portanto, é uma questão que requer pelo menos uma investigação mais pormenorizada e que não pode ser logo despachada devido aos ares que ostenta, a saber, se há um tal conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões dos sentidos. Tais conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a posteriori, isto é, por experiência."

Kant, Crítica da razão pura, Introdução; inter-títulos criados pelos autores.


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A luz da razão

A certeza de pensar
    "Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. [...] E, enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, percebi que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, seria necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava.


A substância pensante
      Depois, examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; [...] compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.


A ideia de Deus
    Mas o que leva muitos a se persuadirem de que há dificuldade em conhecer a Deus e mesmo também em conhecer o que é sua alma é o fato de nunca elevarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal modo acostumados a nada considerar senão imaginando, que é uma forma de pensar particular às coisas materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível. E isto é assaz manifesto pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima, nas escolas, que nada há no entendimento que não haja estado primeiramente nos sentidos, onde todavia é certo que as ideias de Deus e da alma jamais estiveram. E me parece que todos os que querem usar a imaginação para compreendê-las procedem do mesmo modo que se, para ouvir os sons ou sentir os odores, quisessem servir-se dos olhos; exceto com esta diferença ainda: que o sentido da vista não nos garante menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audição; ao passo que a nossa imaginação ou os nossos sentidos nunca poderiam assegurar-nos de qualquer coisa, se o nosso entendimento não interviesse."

Descartes, Discurso do método, quarta parte; inter-títulos criados pelos autores


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POSSIBILIDADES - O que podemos conhecer?

      Vejamos aqui uma das mais importantes questões da gnosiologia: somos capazes de conhecer a verdade? É possível ao sujeito apreender o objeto? Afinal, quais são as possibilidades do conhecimento humano?
      As respostas dadas a essas questões levaram ao surgimento de duas correntes básicas e antagônicas na história da filosofia. Uma é o ceticismo, que diagnostica a impossibilidade de conhecermos a verdade. A outra é o dogmatismo, que defende a possibilidade de conhecermos a verdade.
      Mas o que queremos dizer por verdade? Que verdade é essa da qual tratam tantos pensadores? A palavra verdade tem o sentido básico de uma correspondência entre o que se pensa ou se diz e a realidade que se quer conhecer ou expressar. É o mesmo que conhecimento verdadeiro.
      No entanto, quando os diversos filósofos que tratam da temática do conhecimento falam em "conhecer a verdade" estão se referindo não só a esse sentido básico, mas também — e principalmente — á ideia de conhecer como o objeto é em sua essência, ou seja, sua realidade intrínseca. Trata-se de conhecer o ser, a realidade essencial e metafísica das coisas.
      Se, por exemplo, um pássaro parece azul para algumas pessoas e verde-azulado para outras, qual será a cor verdadeira desse pássaro? Será possível conhecer a verdade?
      Vejamos, então, algumas das respostas dadas a essa pergunta. Destacaremos, além das correntes do ceticismo e do dogmatismo, uma terceira posição, o criticismo, que tenta superar o impasse criado por essas posições antagônicas.

O violinista verde (1923-1924) — Marc Chagall. A relatividade da experiência sensorial: como explicam diversos estudiosos, a percepção das cores não é apenas um fenômeno físico e neurológico, mas também cultural.


Dogmatismo
    Uma doutrina é dogmática quando, como dissemos, defende a possibilidade de atingirmos a verdade. Essa interpretação pode seguir duas variantes:
• dogmatismo ingênuo — tendência predominante no senso comum, confia plenamente nas possibilidades do nosso conhecimento. Não vê problema na relação sujeito conhecedor e objeto conhecido. Crê que, sem grandes dificuldades, percebemos o mundo tal qual ele é;
• dogmatismo crítico — tendência que defende nossa capacidade de conhecer a verdade mediante um esforço conjugado de nossos sentidos e de nossa inteligência. Assim, confia que, por meio de um trabalho metódico, racional e científico, o ser humano torna-se capaz de conhecer a realidade do mundo.


Ceticismo
    Uma doutrina é cética quando duvida ou nega a possibilidade de conhecermos a verdade. Essa interpretação também pode seguir duas vertentes básicas, uma absoluta e outra relativa. Vejamos cada uma.


Ceticismo absoluto
    Muitos consideram o filósofo grego Górgias (c. 485-380 a.C.) o pai do ceticismo absoluto. Ele defendia as seguintes ideias: o ser não existe; se existisse, não poderíamos conhecê-lo; e se pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos comunicá-lo aos outros. Outros estudiosos apontam o filósofo grego Pirro (365-275 a.C.) como o fundador do ceticismo absoluto. Por isso, chama-se muitas vezes o ceticismo de pirronismo.
      Pirro afirmava ser impossível ao ser humano conhecer a verdade devido a duas fontes principais de erro:
• os sentidos — dizia o filósofo que nossos conhecimentos são provenientes dos sentidos (visão, audição, olfato, tato, paladar), mas estes não são dignos de confiança, pois podem nos induzir ao erro;
• a razão — explicava Pirro que as diferenças e contraditórias opiniões manifestadas pelas pessoas sobre os mesmos assuntos revelam os limites de nossa inteligência. Jamais alcançaremos certeza de qualquer coisa.
      O ceticismo absoluto despertou muita oposição. Seus críticos consideram-no uma doutrina radical, estéril e contraditória. Radical porque nega totalmente a possibilidade de conhecer. Estéril porque não leva a nada. Contraditória porque, ao dizer que nada é verdadeiro, acaba afirmando que pelo menos existe algo de verdadeiro, isto é, o conhecimento de que nada é verdadeiro.


Ceticismo relativo
    O ceticismo relativo, como o próprio nome diz, consiste em negar apenas parcialmente nossa capacidade de conhecer a verdade. Ou seja, apresenta uma posição moderada em relação às possibilidades de conhecimento se comparado ao ceticismo absoluto.
      Entre as doutrinas que manifestam um ceticismo relativo, destacamos as seguintes:
• subjetivismo — considera o conhecimento uma relação puramente subjetiva e pessoal entre o sujeito e a realidade percebida. O conhecimento limita-se às ideias e representações elaboradas pelo sujeito pensante, sendo impossível alcançar a objetividade. O subjetivismo nasce com o pensamento do grego Protágoras, sofista do século V a C., que dizia que "o homem é a medida de todas as coisas", ou seja, a verdade é uma construção humana, ela não está nas coisas;
• relativismo — entende que não existem verdades absolutas, mas apenas verdades relativas, que têm uma validade limitada a um certo tempo, a um determinado espaço social, enfim, a um contexto histórico etc.;
• probabilismo — propõe que nosso conhecimento é incapaz de atingir a certeza plena; o que podemos alcançar é uma verdade provável. Essa probabilidade pode ser digna de maior ou menor credibilidade, mas nunca chegará ao nível da certeza completa, da verdade absoluta;
• pragmatismo — apresenta uma concepção dos humanos como seres práticos, ativos, e não apenas como seres pensantes. Por isso, abandonam a pretensão de alcançar a verdade, entendida como a correspondência entre o pensamento e a realidade. Para o pragmatismo, o conceito de verdade deve ser outro: verdadeiro é aquilo que é útil, que dá certo, que serve aos interesses das pessoas em sua vida prática. Nesse sentido, a verdade não seria a correspondência do pensamento com o objeto, mas a correspondência do pensamento com o objetivo a ser atingido.

Isto não é uma maçã (1964) — René Magritte (Coleção particular). Para os relativistas, a imagem da coisa não retrata a coisa em si.


Criticismo
    O criticismo — teoria filosófica desenvolvida por Kant — representa uma tentativa de superação do impasse criado entre o ceticismo e o dogmatismo, assim como foi entre o empirismo e o racionalismo. Tal como o dogmatismo, acredita na possibilidade do conhecimento, mas se indaga sobre as reais condições nas quais esse conhecimento seria possível. Trata-se de uma posição crítica diante da possibilidade de conhecer.
      O resultado dessa postura leva a uma distinção entre o que o nosso entendimento pode conhecer e o que não pode. Ou seja, o criticismo admite a possibilidade de conhecer, mas esse conhecimento é limitado e ocorre sob condições específicas, apresentadas por Kant na obra Crítica da razão pura.
      Depois de Kant, muitos outros pensadores se debruçaram sobre o problema do conhecimento, chegando a posições diversas. Como você pode perceber, a questão do conhecimento é mais um assunto que escapa a uma palavra final e definitiva.
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