Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

PÓLIS E FILOSOFIA - A passagem do mito ao logos

      Na história do pensamento ocidental, a filosofia nasce na Grécia entre os séculos VII e VI a.C., promovendo a passagem do saber mítico (alegórico) ao pensamento racional (logos). essa passagem ocorreu durante longo processo histórico, sem um rompimento brusco e imediato com as formas de conhecimentos utilizadas no passado.
      Durante muito tempo os primeiros filósofos gregos compartilharam de crenças míticas, enquanto desenvolviam o conhecimento racional que caracterizaria a filosofia. Essa transição do mito à razão "significa precisamente que já havia, de um lado, uma lógica do mito e que, do outro lado, na realidade filosófica ainda está incluído o poder do lendário" (Chátelet, História da filosofia: ideias, doutrinas, v. 1, p. 21).
      Conforme analisa o historiador francês Pierre Grimal (1912-1996) em A mitologia grega:

"O mito se opõe ao logos como a fantasia à razão, como a palavra que narra à palavra que demonstra. Logos e mito são as duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida do espírito. O logos, sendo uma argumentação, pretende convencer. O logos é verdadeiro, no caso de ser justo e conforme a 'lógica'; é falso quando dissimula alguma burla secreta (sofisma). Mas o mito tem por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou não nele, conforme a própria vontade, mediante um ato de fé, caso pareça 'belo' ou verossímil, ou simplesmente porque se quer acreditar. O mito, assim, atrai em torno de si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano; por sua própria natureza, é aparentado à arte, em todas as suas criações." (p. 89).

      A força da mensagem dos mitos reside, portanto, na capacidade que têm de sensibilizar estruturas profundas, inconscientes, do psiquismo humano. Conheçamos, então, um pouco da mitologia grega.


Mitologia grega
    Os gregos cultuavam uma série de deuses (Zeus, Hera, Ares, Atena etc.), além de heróis ou semideuses (Teseu, Hércules, Perseu etc.). Relatando a vida desses deuses e heróis e seu envolvimento com os humanos, criaram uma rica mitologia, isto é, um conjunto de lendas e crenças que, de modo simbólico, fornecem explicações para a realidade universal. Integra a mitologia grega grande número de "relatos maravilhosos" e de lendas que inspiraram e ainda inspiram diversas obras artísticas ocidentais.
      O mito de Édipo, rico em significados, é um exemplo disso. Na Antiguidade, foi utilizado pelo dramaturgo Sófocles (496-406 a.C.), na tragédia Édipo rei, para uma reflexão sobre as questões da culpa e da responsabilidade dos indivíduos perante as normas e os tabus (comportamento que, dentro dos costumes de uma comunidade, é considerado nocivo e perigoso, sendo por isso proibido a seus membros). Leia no boxe a seguir um resumo desse relato mítico.

Édipo e a Esfinge.



Pólis e razão
    Retomemos a nosso tema, o nascimento da filosofia. Segundo análise do historiador francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007), o momento histórico da Grécia antiga em que se afirma a utilização do logos (a razão) para resolver os problemas da vida estaria vinculado ao surgimento da pólis, cidade-Estado grega.
      A pólis foi uma nova forma de organização social e política desenvolvida entre os séculos VIII e VI a.C. Nela, eram os cidadãos que dirigiram os destinos da cidade. Como criação dos cidadãos, e não dos deuses, a pólis estava organizada e podia ser explicada de forma racional, isto é, de acordo com a razão.


Debate em praça pública
    A prática constante da discussão política em praça pública pelos cidadãos — especialmente em Atenas — contribuiu para que o raciocínio bem formulado e convincente se tornasse, com o tempo, o modo adotado para refletir sobre todas as coisas, não só as questões políticas. Por isso, para Vernant, a razão grega é filha da pólis, e o nascimento da filosofia relaciona-se de maneira direta com o universo espiritual que assim surgiu:

"O que implica o sistema da pólis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. [...] A palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação [...]. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, através de sua função política. [...]
Uma segunda característica da pólis é o cunho de plena publicidade dada às manifestações mais importantes da vida social. [...] A cultura grega constitui-se, dando a um círculo sempre mais amplo — finalmente ao demos [povo] todo — o acesso ao mundo espiritual, reservado no início a uma aristocracia [...]. Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levadas à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia.
[...] Doravante, a discussão, a argumentação, a polêmica tornam-se as regras do jogo intelectual, assim como do jogo político. Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida pública; é a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma completa divulgação de conhecimentos previamente reservados ou interditos." (Vernant, As origens do pensamento grego, p. 34-36).
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