Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO - A construção de sentidos e realidades

      Comecemos nossa investigação sobre o tema deste capítulo com a tradicional pergunta socrática: "O que é a linguagem?".
      Vejamos primeiramente o que queremos dizer com a palavra linguagem. Ela costuma ser usada em diversos contextos com sentidos relativamente distintos. Por exemplo: linguagem verbal (que usa palavras, isto é, as línguas), linguagem jurídica (do direito), linguagem popular, linguagem musical, linguagem matemática, linguagem artificial (informática), linguagem corporal ou gestual, linguagem dos golfinhos e por aí afora.

Bailarinas chinesas, deficientes auditivas, representam a dança da deusa das mil mãos, Kwan Yin. O corpo também tem uma linguagem, que se expressa artisticamente na dança.

      Apesar das diferenças semânticas entre essas expressões, podemos dizer que existe um sentido básico que permeia todas elas: é a ideia de um conjunto de signos, isto é, de sinais que indicam ou remetem a algo distinto deles, o que faz com que tenham um significado ou sentido para todo aquele que domine esse código.
      Um exemplo paradigmático de linguagem são as línguas e suas respectivas palavras, pois estas remetem a outras coisas (internas ou externas, psíquicas ou físicas), podendo ter um ou vários sentidos. E todos nós dominamos pelo menos uma língua: nossa própria língua nativa.
      Quando, por exemplo, uma pessoa que conhece o português lê (signo visual, escrito) ou escuta (signo sonoro) a palavra "árvore", supõe-se que ela forme em sua mente uma ideia, noção ou imagem que tem como referência uma coisa ou ser do mundo exterior. Se o termo é "tristeza", supõe-se a referência a uma ideia, noção ou imagem de algo — no caso, uma emoção — que se dá em seu mundo interior.
      Há também palavras que designam construções mentais ainda mais sofisticadas e abstratas, como "correção", "certeza", "qualidade". Finalmente, na gramática de uma língua, todas essas palavras são combinadas e articuladas de inúmeras maneiras — mas conforme certas regras — para formar significados complexos, tanto em relação ao mundo externo ou interno, como a nenhum deles (como no caso da ficção ou fantasia).
      Agora quando alguém escuta ou lê um termo e não consegue formar uma ideia ou relacioná-lo a algo — seja porque nunca o aprendeu, seja porque o termo remete a algo que a pessoa desconhece e não consegue conceber, ou ainda porque pertence a um idioma que ela não domina —, essa palavra não tem sentido, não tem significado para essa pessoa: é como se fosse nada. O mesmo ocorre com outras linguagens, sejam elas gestuais, artísticas, científicas etc.
      Existem várias teorias sobre a linguagem, suas origens e processos. Os ramos do conhecimento que se dedicam a esses estudos são basicamente a linguística e a semiótica. E a filosofia tem um campo de investigação que interage com essas duas ciências: a filosofia da linguagem.


Linguagem na história
    Avancemos um pouco mais em nossa investigação. Para isso, vamos pedir a ajuda da história:

"Costuma-se conceber a história como a sequência das marcas deixadas pelos acontecimentos do passado. No entanto, sabemos que nem todo acontecimento tem o mesmo impacto no futuro, nem todos os momentos foram igualmente fecundos na produção de novas possibilidades. Alguns foram mais importantes que outros e bem poucos tiveram o poder de abrir grandes períodos históricos para a humanidade." (Echeverría, Ontologia del lenguaje, p. 19).

      Quais seriam, portanto, os eventos mais marcantes da história da linguagem e da comunicação, aqueles que tiveram o poder de abrir novas possibilidades para a humanidade?
      O primeiro teria sido o processo de criação das línguas, porém não há conhecimentos históricos suficientes a esse respeito. Então supomos, como salientam alguns estudiosos, que possam ser destacados estes três acontecimentos: a criação do alfabeto, a invenção da imprensa e, em nossos dias, o desenvolvimento da linguagem eletrônica e de todas as suas mídias.
      Vejamos uma interpretação de seu impacto, partindo com o exemplo do caso grego, pois é aquele que mais afeta a cultura ocidental. Seguiremos, em linhas gerais, a análise do pensador chileno contemporâneo Rafael Echeverría, apresentada em sua obra Ontologia da linguagem (p. 19-28).


Criação do alfabeto
    Antes da criação e adoção do alfabeto na Grécia antiga, eram os poetas que transmitiam, oralmente, muitos aspectos da cultura. A juventude aprendia o que era piedade, amor, traição por meio de histórias míticas e épicas, isto é, de narrações sobre as aventuras e desventuras de seres humanos, heróis e deuses. Por exemplo: para se tornar sábio, o jovem tinha de agir como lhe contavam que Ulisses agia; para ser corajoso, devia fazer o que lhe diziam que Aquiles fazia. (Ulisses e Aquiles são dois personagens dos maiores poemas épicos da Antiguidade grega, atribuídos a Homero.)
      Desse modo, linguagem e ação estavam estreitamente ligadas. Podemos dizer que o falar, o pronunciar certas palavras tinha o poder de promover determinadas coisas, indicar modelos a serem atingidos. Era uma linguagem de ação, baseada no relato de acontecimentos reais ou imaginários.
      A partir do século IX a.C., desenvolveu-se o alfabeto grego (que tinha como base o fenício), o que facilitou a propagação da linguagem escrita na Grécia antiga, dando início a uma transformação de grandes consequências. O relato oral foi perdendo a relevância exclusiva de antes, pois o texto escrito, que lentamente se difundia, falava por si mesmo, e para "escutá-lo" não se necessitava mais do orador. Assim, como expressão do predomínio da linha na escrita — feita letra a letra, palavra por palavra, linha a linha —, a forma de pensar das pessoas também foi adotando cada vez mais a linearidade racional.
      Com isso, a linguagem de ação — característica do relato oral centrado nos acontecimentos — foi sendo gradativamente suplantada pela linguagem de ideias, de reflexão. Passou-se a a perguntar "O que é a sabedoria?", "O que é coragem?", sem recorrer mais aos exemplos dos personagens míticos e épicos.
      Assim, na tarefa de educar a juventude, os poetas, os declamadores e os oradores foram sendo substituídos por filósofos, preceptores e professores. A narrativa épica deixou de ser a fonte exclusiva dos exemplos e modelos, cedendo espaço para os tratados filosóficos e científicos. Valorizou-se cada vez mais o pensar, em detrimento de outras formar de ação, a teoria, em lugar da prática, o ser, em vez do devir. E o papel ativo da linguagem foi sendo aos poucos esquecido.


Invenção da imprensa
    A partir do século XV, outro invento — a imprensa de Gutenberg — provocou nova revolução. Os livros, antes manuscritos, passaram a ser impressos e tornaram-se produtos que podiam ser obtidos com mais facilidade, favorecendo a educação, a expansão da alfabetização e a divulgação das ideias filosóficas e científicas.

Luta de Aquiles (à esquerda) contra Escamandro, deus de rio de mesmo nome, que se revoltara contra o herói grego.

      Cada vez mais a linguagem oral foi sendo substituída pela escrita nas sociedades europeias, o que intensificou a mudança de mentalidade iniciada com o advento do alfabeto. Como assinalou um especialista no tema, o estadunidense Walter Ong (1912-2003), em Oralidade e cultura escrita:

"Um conhecimento mais profundo da oralidade primitiva ou primária permite-nos compreender melhor o novo mundo da escrita, o que ele verdadeiramente é e o que os seres humanos funcionalmente letrados realmente são: seres cujos processos de pensamento não nascem de capacidades meramente naturais, mas da estruturação dessas capacidades, direta ou indiretamente, pela tecnologia da escrita. Sem a escrita, a mente letrada não pensaria e não poderia pensar como pensa, não apenas quando se ocupa da escrita, mas normalmente, até mesmo quando está compondo seus pensamentos de forma oral. Mais do que qualquer outra invenção individual, a escrita transformou a consciência humana." (p. 93).

      Segundo Ong, a linguagem escrita também separou o autor do discurso (ou texto) de seus "ouvintes" (ou leitores), dificultando ou impossibilitando a interação e a interlocução — que antes era comum — entre os oradores e a comunidade.

No isolamento da leitura, todo um mundo de experiências interiores parece ser ativado.


Linguagem tecnológica
    Algo semelhante às duas revoluções anteriores está acontecendo nas últimas décadas, como resultado do desenvolvimento da linguagem eletrônica. Essa linguagem compreende grande quantidade de meios ou mídias, desde os antigos telégrafos e gramofones, até os atuais telefones, telex, fax, rádio, televisão, cinema, vídeo, fotocopiadora, computador, internet e correio eletrônico, telefone celular, livros eletrônicos e tantas outras tecnologias que surgem em curto espaço de tempo.
      O problema da distância para a comunicação praticamente acabou, ao menos em tese, para um grande público. Como resultado, o mundo transformou-se em uma "aldeia global", na expressão criada pelo comunicólogo canadense Marshall MacLuhan (1911-1980) na década de 1970.
      Cada vez mais diferentes culturas se interpenetram, convertendo as mudanças em um aspecto permanente da vida atual. Com o surgimento dos correios eletrônicos, blogs, redes de relacionamento social e telefones celulares com seus vários dispositivos (fotográfico, de vídeo, de mensagem de texto etc.), as notícias chegam às pessoas quase simultaneamente aos acontecimentos, e qualquer um pode ter acesso a elas, desde que disponha dessa tecnologia.
      O que implica tudo isso? O impacto das novas tecnologias comunicacionais tem sido muito discutido pelos estudiosos. Talvez esteja havendo, em certa medida, uma retomada da linguagem de ação dos primeiros tempos, só que agora de forma mais democrática, já que cada um pode se tornar um "orador", relatar os acontecimentos e interagir com a comunidade, recebendo de volta outras percepções.
      Paralelamente, a possibilidade do texto eletrônico também está ampliando o acesso às bibliotecas do mundo inteiro, promovendo ainda mais a linguagem de reflexão. Qual será o resultado dessa combinação? Ainda não sabemos. De todo modo:

"[...] a longa história da leitura mostra com firmeza que as mutações na ordem das práticas são geralmente mais lentas do que as revoluções das técnicas e sempre em defasagem em relação a elas. Da invenção da imprensa não decorreram imediatamente novas maneiras de ler. Do mesmo modo, as categorias intelectuais que associamos ao mundo dos textos perdurarão diante das novas formas do livro [os livros eletrônicos].
[...] Devemos ser bastante lúcidos para não tornarmos o virtual por um real já presente." (Chartier, Os desafios da escrita, p. 112-113).

Leitor de livros eletrônicos (e-books).
Pedra de roseta, bloco de granito com inscrições de um mesmo texto escrito em hieróglifos, egípcio demótico (popular, cotidiano) e grego clássico.


Seres linguísticos
    Esse breve retrospecto histórico nos leva a fazer agora a seguinte pergunta: "Por que a linguagem e suas transformações causam tanto impacto nas sociedades humanas?".
      Nossa explicação é a de que somos seres fundamentalmente linguísticos, como afirmam diversos estudiosos. De acordo com essa linha interpretativa, é por meio da linguagem que construímos boa parte do que somos e do mundo à nossa volta. Vejamos isso com mais detalhe.
      Podemos dizer, de maneira geral e bem simplificada, que quase tudo o que experimentamos, desde a infância, do mundo exterior e do contato com as outras pessoas à captado por nossos canais sensoriais, traduzido em termos linguísticos e armazenado em nossa mente, formando uma parte do repertório cognitivo de que dispomos. A outra parte desse repertório resulta de processos internos, como a percepção de nosso corpo e de nossas emoções, bem como das relações que estabelecemos entre os conteúdos linguísticos externos e internos, ou apenas internos.
      Nesse processo, a linguagem constitui um instrumento natural poderoso que filtra e confere sentido a nossas experiências.

"Toda forma de conferir sentido, toda forma de compreensão ou de entendimento pertence ao domínio da linguagem. Não há lugar fora da linguagem a partir do qual possamos observar nossa existência. É precisamente por meio do mecanismo de "reconstrução linguística" [...] que conseguimos ter acesso a fenômenos não linguísticos [das dimensões corporal e emocional]." (Echeverría, Ontologia del lenguaje, p. 33).

      Assim, é por intermédio da linguagem que:
      • identificamos, classificamos e entendemos nossas inumeráveis experiência do dia a dia — quando penso, por exemplo, "Este é um lince, aquela é uma onça", "Tenho frio (mas faz calor!)", "Sinto-me oprimido", "Que gostoso!";
      • expressamos essas experiências às outras pessoas — quando digo, por exemplo, "O lince me fascina mais que a onça", "Acho que estou com febre", "Ele é um ditador", "Chocolate é uma delícia";
      • reconhecemos as experiências alheias — quando digo ou penso, por exemplo, "Ele não consegue discernir entre um lince e uma onça", "Ela parece doente", "Lamento que você tenha sido injustiçada", "Chocolate lhe dá alergia";
      • estabelecemos vínculos e acordos sociais — quando, por exemplo, assino um contrato ou acordo ou digo "Sim", "Aceito", "Concordo", "Prometo";
      • nos transformamos — quando, por exemplo, compreendendo algo, digo "Basta!" para mim mesmo e prometo mudar minha maneira de ser, pensar ou agir;
      • promovemos transformações na sociedade — quando, por exemplo, digo "Basta!" para uma situação que envolve a coletividade, elaboro projetos que pretendem mudar essa situação ou dou meu voto favorável a eles;
      • conferimos sentido a nossa existência — quando, por exemplo, busco e vou encontrando respostas para perguntas clássicas como "Quem sou?", "De onde venho?", "Para onde vou?".
      Em resumo, vivemos quase o tempo todo na linguagem praticamente sem nos darmos conta disso.

Pichação em muro que separa o território palestino de israelense. Qual é a mensagem política contida no uso dessa linguagem de computador?


Linguagem como filtro
    Vejamos, agora, por que dizemos que a linguagem funciona como um filtro.
      Sem perceber, quando aprendemos a falar, isto é, quando nossos familiares e as pessoas mais próximas nos ensinam a língua dos pais ou da comunidade que pertencemos, estamos aprendendo, junto com as palavras, a classificar os seres e as coisas. Por exemplo, entra uma pessoa na casa e alguém diz a palavra "papai"; entra outra pessoa e pronunciam a palavra "vovó", você agarra um objeto e o nomeiam "bola"; você aponta outro parecido e lhe explicam "bola, mas essa aqui é azul, aquela lá é verde".
      De maneira semelhante, vamos ouvindo e aprendendo a fazer outras distinções (classificações ou categorizações) mais emocionais, psíquicas, éticas, abstratas, como "triste", "feio", "certo", "errado", "amor", "desejo" etc. E todas elas vão se articulando em estruturas linguísticas mais complexas, relacionadas com a gramática de cada língua. Por exemplo: "O céu é azul", "Fulano sentiu inveja", "Sou tímida".
      Desse modo, por meio de códigos e sistemas linguísticos ensinados pela comunidade — sendo, por isso, categorias socioculturais —, vamos aprendendo a organizar internamente as inumeráveis vivências que temos da realidade ou do que nos acontece durante a vida.


Limitando o real
    Uma característica desse processo é que as palavras sempre circunscrevem, abstraem, enfim, limitam a realidade que pretendem denominar. Por exemplo: uma mesma pessoa pode ser denominada, qualificada ou classificada, em diferentes momentos ou por diferentes indivíduos, de distintas maneiras — "mãe", "irmã", "filha", "chefe", "adorável", "horrível" etc. — embora ela possa "ser" tudo isso ao mesmo tempo.
      O que muda é o observador ou a — perspectiva distinta que o mesmo observador adote em relação à mesma pessoa em momentos diferentes. Se o observador é o filho dela, ele a vê como "mãe"; se é um empregado, ele a enxerga como "chefe", e assim por diante. E será a partir dessa observação ou perspectiva que cada um se relacionará com a pessoa em questão.
      Essa é uma das maneiras pelas quais a linguagem atua como filtro do real. A realidade será sempre muito mais ampla do que uma ou muitas palavras conseguem significar, e com frequência nos esquecemos disso.


Determinando o real
    Como produto sociocultural, a linguagem atua não apenas como um filtro que limita, mas também como um filtro que determina o que somos capazes de perceber e entender de nossas experiências da realidade.
      Um exemplo de como a linguagem incide sobre nossa capacidade de perceber as coisas é encontrado na língua falada pelos maidus, grupo indígena do oeste dos Estados Unidos. De acordo com alguns estudiosos, nesse idioma existem apenas três palavras para designar as cores. Uma delas, lak, refere-se ao que identificamos como vermelho; a segunda, tit, ao verde e ao azul; e a terceira, tulak, ao amarelo, ao laranja e ao marrom. Assim, enquanto nós, que falamos português, distinguimos uma blusa amarela de outra marrom como roupas de cores distintas, os maidus as percebem e classificam como da mesma cor (cf. Bandler e Grinder, La estrutura de la magia, p. 31).

Escritura visual "Atenção, cuidado com o vão entre o trem e a palavra" — Paulo Bruscky. Um alerta para o descompasso entre a linguagem e as coisas?

      Vemos, nesse caso, que a língua, ao estabelecer certo número de distinções cromáticas, determina o que é possível ver. Sem passar por um processo de reaprendizado e reclassificações das cores, os maidus conseguem distinguir "naturalmente" menos cores do que nós. Mas não fiquemos muito convencidos. Especialistas afirmam que o sistema visual humano é potencialmente capaz de estabelecer milhões de distinções cromáticas, e nosso vocabulário pessoal em relação às cores é imensamente inferior a isso.
      Carregando implicitamente categorizações e interpretações do real, a língua pode também nos confundir. Quando dizemos, por exemplo, "ele veste calça azul", "o leite é branco", "as árvores são verdes", somos levados a crer que as coisas "têm" cores ou "são" de determinada cor. Essa é uma crença do senso comum. Dizem os especialistas, no entanto, que a cor não é uma propriedade física dos objetos, mas sim uma sensação interna, que aprendemos a categorizar como cor. Desse modo, azul, branco, verde ou qualquer outra cor são apenas os nomes que damos a determinadas sensações visuais. Essas sensações estão vinculadas à maneira como nosso sistema nervoso funciona quando entra em contato com estímulos físicos externos, por meio de nosso sistema de visão.
      No entanto, mesmo quando sabemos de tudo isso, fica difícil acreditar no que dizem os cientistas, dada a força da experiência intuitiva, sacramentada pela linguagem.


Linguagem como ação
   
Os exemplos que você acabou de ver são uma pequena amostra de que a linguagem não é apenas um meio que nos permite descrever a realidade, como se o real estivesse aí, "pronto e acabado", e o papel da linguagem fosse unicamente o de refleti-lo — ou seja, um papel passivo.
      Se a linguagem, como produto sociocultural, impõe limites às nossas possibilidade de perceber as coisas e, às vezes, nos confunde fornecendo "pistas erradas" sobre nossas experiências, ela também é ação.
      Agora veremos que a linguagem é ativa não apenas no sentido negativo, restrito, de filtro. Ela também é ativa em um sentido positivo, gerativo, pois contribui para gerar "realidades".


Criando a si mesmo
    Dissemos antes que, por meio de códigos e sistemas linguísticos, aprendemos a organizar internamente as inumeráveis vivências do que nos acontece durante a vida. Quase sem notar, vamos dizendo a nós mesmos: "Isso é assim, isso é de outra maneira", "Isso eu sou, isso eu não sou", "Isso eu quero, isso eu não quero", "Isso eu posso fazer, isso eu não posso fazer", e assim por diante.
      Você pode perceber, portanto, que, a partir do domínio linguístico, cada um de nós é um observador que formula interpretações das experiências que tem (mesmo que de maneira pouco consciente) e com elas vai modelando a própria identidade, a forma particular de ser e de agir. Em outras palavras, as interpretações que cada observador dá a suas experiências geram, ao mesmo tempo, o tipo de observador em que ele se torna. E o tipo de observador em que ele se torna vai determinar o tipo de interpretações que será capaz de fazer.
      Vamos ilustrar essa ideia. Tomemos como exemplo uma pessoa que, após alguns "fracassos" ou frustrações (interpretações de sua experiência), passa a observar-se de determinado modo, repetindo para si mesma: "Sou tímida". Ao adotar esse discurso, estará forjando sua própria identidade e realidade futura. Se ela acredita que é tímida, não terá outra opção senão conduzir-se com timidez diante dos outros e repetir os "fracassos" anteriores.
      Isso significa que existe uma circularidade constante entre o que pensamos ou dizemos (nossas interpretações sobre as coisas e nós mesmos), a maneira como atuamos e a identidade que forjamos. É nessa circularidade linguística que, em grande parte, criamos e recriamos constantemente a nós mesmos, podendo tanto reforçar modelos antigos, como promover nossa própria transformação.


Intervindo no mundo
    Por meio da linguagem também comunicamos às outras pessoas nossos desejos, opiniões e decisões, podendo intervir no fluir dos acontecimentos. Quando você diz, por exemplo, "Abra a porta, por favor", "Vamos", "Sim", "Não", "Aceito", "Chega!", pode estar contribuindo para que ocorra desde uma simples ação coordenada até a criação de um futuro distinto para muitas pessoas. Essa é outra maneira em que a linguagem é ação.

Mãos que desenham (1948) — M. C. Escher.

      Observe essa ilustração do artista gráfico holandês M. C. Escher (1898-1972) e reflita. Em sua opinião, essa obra pode ser considerada uma metáfora da circularidade linguística humana? Justifique.

Metáfora — palavra ou imagem usada fora do seu sentido literal ou contexto original para expressar outra ideia, com a qual possui uma relação de semelhança.
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