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METAFÍSICAS DA MODERNIDADE - O debate entre materialistas e idealistas

      Vejamos agora algumas das principais teorias da realidade, formuladas desde a revolução espiritual iniciada com o Renascimento, que contribuíram para a matriz de valores e concepções de mundo da modernidade. Destacaremos três delas, com o propósito de apresentar uma parte do confronto — sempre atual — entre a interpretação materialista do real e a idealista. Comecemos pela doutrina dualista de René Descartes.


Dualismo cartesiano
    Durante o século XVII — época do chamado grande racionalismo —, Descartes concebeu uma metafísica de muita influência até nossos dias. Trata-se da concepção de mundo que separa radicalmente matéria e espírito, ou corpo e mente, conhecida como dualismo cartesiano.
      O filósofo francês decidiu romper com a herança cultural do passado (aristotélico-tomista) quando definiu que precisava "começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências" (que você pode reler neste post). Para alcançar esse objetivo, empregou o método da dúvida e chegou a questionar até mesmo o que parecia indubitável: a existência do mundo e de si mesmo. Ele buscava, desse modo, chegar a uma primeira certeza, que atuaria como um novo centro ou ponto fixo a partir do qual constituiria toda a sua filosofia.
      Você deve lembrar que a primeira certeza que Descartes alcançou em sua dúvida metódica foi o cogito, isto é, o "Penso, logo existo". Portanto, ele sabia que existia como "coisa pensante". A partir daí, tratou de alcançar outras certezas. Primeiro, precisou provar a existência de Deus, para depois demonstrar como se podia conhecer o mundo exterior. Nessa tarefa, foi construindo sua teoria da realidade, que ficou estruturada em três classes de substâncias ou coisas (que em latim se diz res):
substância infinita (res infinita), cuja propriedade essencial é a infinitude, trata-se de Deus, ser que criou todas as coisas;
substância pensante (res cogitans), ativa, cuja propriedade essencial é o entendimento; corresponde à esfera do eu (ou consciência), entendido como sujeito de toda atividade do intelecto;
substância extensa (res extensa), passiva, cuja propriedade essencial é a extensão no espaço (comprimento, largura e profundidade), com formas e movimento; trata-se do mundo corpóreo, material.

O dualismo cartesiano deu origem ao mito do "fantasma na máquina" — expressão cunhada pelo filósofo britânico Gilbert Ryle (1900-1976) —, isto é, a ideia de que existe uma mente que funciona paralelamente a um corpo, sem que se saiba como se dá sua interação.

      No entanto, coincidindo com a doutrina católica, o Deus cartesiano é transcendente (encontra-se fora, separado de sua criação). Desse modo, no mundo existiram apenas as duas substâncias finitas (res cogitans e res extensa), essencialmente distintas e separadas. Daí o conhecido dualismo da metafísica cartesiana.


Mecanicismo e determinismo natural
    A res cogitans seria exclusivamente humana. Portanto, todo o mundo exterior ao pensamento — os objetos corpóreos, a natureza — consistiria apenas em substância extensa, e esta, para Descartes, é incapaz de ação. Por causa dessa passividade, os corpos só se movem quando acionados por outro agente (ou causa eficiente), de forma mecânica. Assim, o mundo material é concebido pelo filósofo como uma grande máquina que recebeu seu primeiro impulso de Deus. E essa quantidade de movimento, imprimida pela substância infinita, permaneceria indefinidamente constante.
      Mesmo os animais são comparáveis com máquinas, para o filósofo. Segundo sua argumentação, apesar de, muitas vezes, alguns deles serem capazes de ações de que os humanos não são, isso nada prova além de que esses animais têm uma natureza "muito bem disposta". O mesmo ocorre com o relógio, cujo mecanismo preciso o torna capaz de contar melhor as horas do que nós (cf. Descartes, Meditações, p. 61).


Separação mente-corpo
    O ser humano, por sua vez, seria composto de corpo e alma, res extensa e res cogitans. Nosso corpo, como todos os corpos, estaria submetido às leis mecânicas naturais, de causa e efeito, predeterminadas. Nossa alma teria as faculdades do entendimento e da vontade, o que nos conferiria a capacidade de iniciativa própria e de liberdade. A alma, desse modo, teria a propriedade de interagir com o corpo e comandá-lo.
      Essa concepção trouxe dificuldades para Descartes, já que, segundo sua própria concepção, essas duas substâncias seriam radicalmente distintas e separadas. Surgiu, assim, a seguinte questão: como se relacionaria a mente com o corpo, tendo em vista que, de acordo com a teoria cartesiana, um corpo só poderia ser movido por outro corpo contíguo no espaço, mas a alma não é um corpo, uma substância extensa?
      Descartes supôs que a alma estivesse sediada em uma pequena glândula localizada no meio do cérebro e que, por meio dela, se comunicaria com o corpo. Mas como se relacionaria a alma com essa glândula? Desse modo, a concepção dualista do ser humano — e o que ela resulta: a questão sobre a relação entre o corpo e a alma — tornou-se um problema filosófico clássico (para não dizer, também, científico), discutido por seus contemporâneos e herdado pela posteridade. A tendência seria a volta ao monismo ontológico, seja materialista, seja idealista ou espiritualista.

Observação: Descartes entendia que a matéria era algo conhecível apenas a partir do que se sabia da mente. Desse modo, apesar do dualismo ontológico que defendeu, ele mostrou uma tendência idealista em termos epistemológicos, priorizando o papel do sujeito que conhece (o mundo interno à mente) em relação ao objeto conhecido (o mundo externo à mente).


Materialismo mecanicista
    Entre os que criticaram o dualismo cartesiano encontra-se o inglês Thomas Hobbes (1588-1679). Contemporâneo de Descartes e leitor de suas obras, Hobbes discordava da ideia de que a realidade pudesse estar constituída de duas substâncias, bem como de que o pensamento fosse uma delas. Para ele, nada era imaterial, de tal forma que desenvolveu uma concepção metafísica totalmente materialista.


Tudo é corpo
    Analisando as Meditações metafísicas de Descartes, Hobbes aceitou que da proposição "penso" se devia deduzir "existo", mas discordava da concepção de que o pensar fosse evidência de uma realidade separada e distinta do corpo, da existência de uma substância espiritual. É o que expressa a Descartes em uma de suas objeções:

"[...] não podemos conceber qualquer ato sem um sujeito, assim também não podemos conceber o pensamento sem uma coisa que pense, a ciência sem uma coisa que saiba, e o passeio sem uma coisa que passeie. [De onde se segue] que uma coisa que pensa é alguma coisa de corporal." (Citado em Monteiro, Vida e Obra, em Hobbes, p. XI).

      Em outras palavras, Hobbes concordava que pensar era uma evidência de que algo existia. Mas existia como corpo, pois, para esse filósofo, o que se chama "espírito" não seria outra coisa senão o resultado do movimento em certos órgão corporais.
      Como explica Hobbes em sua obra Sobre o corpo, quando os corpos exteriores afetam o corpo humano e agitam os sentidos, estes transmitem ao cérebro esse movimento ou agitação, que é então enviado ao coração. A partir do coração começaria um movimento inverso, em direção ao exterior, que produziria as sensações propriamente ditas e, delas, as ideias que constituem o conhecimento.
      Note que, para Hobbes, é pela sensação que se inicia todo processo de conhecimento (concepção que se denomina empirista. As ideias seriam imagens das coisas impressas na "fantasia corporal".
      Assim, a partir das noções de corpo e movimento, o filósofo inglês explicava toda a realidade. Todos os corpos — incluindo os pensamentos — estaria sujeitos, segundo ele, aos nexos causais que determinam seus movimentos. Nada se move por si próprio, seja por uma propensão natural de seguir sua natureza ou essência (como na física aristotélica), seja de forma aleatória (e livre). Tudo é movido, no sentido de que todo movimento é sempre uma reação ou efeito a um agente externo ao corpo (ou causa).
      O mecanicismo que Descartes havia adotado para compreender o mundo exterior (a res extensa) foi universalizado por Hobbes, abrangendo o material e o que geralmente se considera espiritual. Todo o real existiria no espaço e seria corpo — ou corpo em movimento. Até mesmo a vontade humana não seria livre, pois o querer algo não passaria de uma reação interna a uma ação (ou estímulo) do mundo externo.
      Desse modo, sem lugar para o acaso e a liberdade, o materialismo hobbesiano caracterizou-se por um profundo determinismo, isto é, pela noção de que todos os fenômenos — materiais e psíquicos — estão interligados e determinados por relações profundas de causa e efeito.


Idealismo absoluto
    No século XIX, o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831) concebeu uma ontologia radicalmente distinta, se não oposta ao materialismo hobbesiano. Para ele, o mundo não seria outra coisa a não ser o desdobramento de um espírito abrangente (ou absoluto), que se estaria realizando no tempo (ou história). Desse modo, Hegel identificou a ideia ou o espírito com toda a realidade. Trata-se de um idealismo absoluto.


O real é racional
    Hegel entendia a realidade como um processo análogo ao pensamento. Por isso dizia que "tudo que é real é racional, tudo que é racional é real". Com essa afirmação, ele sintetizava as seguintes noções:
a realidade possui racionalidade ou identifica-se com ela — o mundo é a atuação ou realização progressiva de uma razão (ou ideia, ou espírito, ou absoluto, ou Deus), presente tanto na natureza como no ser humano em suas construções culturais. Portanto, o mundo não é o reino do acaso, onde os fatos se dão de forma aleatória, mas sim o desdobramento do logos ou espiritualidade racional. Por isso, "o real é racional";
a razão possui realidade ou identifica-se com ela — inversamente, se o real é racional, a razão são seria apenas um processo abstrato no qual as ideias equivalem a puras representações ou imagens do mundo, como se costuma pensar. Elas fazem parte da estrutura profunda do real, de tal maneira que, quando maior a racionalidade, mais forte ou elevada a realidade (noção de que a quantidade se transforma em qualidade). Por isso, "o racional é real".
      Desse modo, Hegel rompeu a distinção tradicional entre consciência e mundo, sujeito e objeto, ideal e real, espírito e matéria. Para ele, a realidade se identificaria totalmente com o espírito (ou ideia, ou razão) e a racionalidade seria o fundamento de tudo o que existe, inclusive da natureza. O ser humano, por sua vez, constituiria a manifestação mais elevada dessa razão, que estaria dentro dele e, ao mesmo tempo, acima dele, pois a racionalidade cósmica movimentaria o mundo.


Movimento dialético do real
    E como seria esse movimento do real? Quando Hegel concebe a realidade como espírito, quer destacar que ela não é apenas uma substância (uma coisa permanente, rígida). É principalmente um sujeito, um ser com vida própria, que pode atuar. Portanto, entender a realidade como espírito é entendê-la nesse seu atuar constante, ou seja, como movimento ou processo, e não como coisa ou substância inerte. É entendê-la como devir.
      Mas como é esse movimento do real? De acordo com Hegel, esse movimento tem uma característica específica: ele se dá por contradições autossuperadoras contínuas. Isso quer dizer que cada momento surge do anterior e prepara o seguinte, em um processo de embate e superação em que sempre o anterior tem de ser negado.
      Em seu texto Fenomenologia do espírito, Hegel usa um exemplo da natureza para ilustrar esse processo:

"O botão desaparece no florescimento, podendo-se dizer que aquele é rejeitado por este; de modo semelhante, com o aparecimento do fruto, a flor é declarada falsa existência da planta, om o fruto entrando no lugar da flor como a sua verdade. Tais formas não somente se distinguem, mas cada uma delas se dispersa também sob o impulso da outra, porque são reciprocamente incompatíveis. Mas, ao mesmo tempo, a sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual elas não apenas não se rejeitam, mas, ao contrário, são necessária uma para a outra, e essa necessidade igual constitui afora a vida do inteiro." (p. 6).

      Vemos, assim, como a realidade não é estática, mas dinâmica. Os momentos se contradizem entre si, sem, no entanto, perderem a unidade do processo, que leva a um crescente auto-enriquecimento. Esse desenvolvimento, que se faz através do embate e da superação de contradições, Hegel denominou dialética. Não se trata aqui do método proposto por Platão para pensar e conhecer a realidade, mas sim de uma descrição do movimento real do mundo.
      O movimento dialético se processa em três momentos: o primeiro, do ser em si; o segundo, do ser outro ou fora de si; e o terceiro (que seria o retorno), do ser para si. Usando novamente o exemplo do reino vegetal: a semente seria o em-si da planta, mas ela deve morrer como semente para sair fora de si e poder se desdobrar na planta para si.
      Por motivos didáticos, esses três momentos do real são comumente chamados de tese, antítese e síntese (embora alguns estudiosos afirmem que Hegel nunca usou essa terminologia). Como o mover do mundo é contínuo, cada momento final, que seria a síntese, torna-se a tese de um movimento posterior, de caráter mais evoluído. Assim a dialética do mundo pode ser representada como uma espiral, ou seja, um movimento circular que não se fecha nunca, seguindo evolutivamente em direção ao infinito.

Metabiótica 16 (2004) — Alexandre Órion. Intervenção urbana (pintura sobre a parede) seguida de registro fotográfico. Imagem que traduz a ideia do movimento dialético do real.
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