Isso é aristocracia? Ora, não precisamos ter medo da palavra, se a realidade que ela exprime for boa: as palavras são as pedras do ábaco dos homens sábios, sem valor próprio; só são moedas para os tolos e os políticos. Queremos ser governados pelo que houver de melhor, que é o significado de aristocracia; não temos, à semelhança de Carlyle, ansiado e rezado para sermos governados pelos melhores? Mas passamos a pensar que as aristocracias são hereditárias: que se observe com cuidado que essa aristocracia platônica não é desse tipo; seria melhor chamá-la de aristocracia democrática. Porque o povo, em vez de eleger cegamente o menor de dois males a ele apresentados como candidatos por facções indicadoras, aqui será, ele próprio, o candidato; e cada indivíduo terá uma oportunidade igual de uma eleição educacional para o cargo público. Aqui, não há castas; não há herança de cargo ou privilégio; não há impedimento para o talento nascido sem recursos; o filho de um governante começa no mesmo nível e recebe o mesmo tratamento e a mesma oportunidade que o filho de um engraxate; se o filho do governante for um beócio, cairá na primeira triagem; se o filho do engraxate for um homem com capacidade, estará livre para o talento, onde quer que ele venha a nascer. Esta é a democracia das escolas ― cem vezes mais honesta e mais eficiente do que uma democracia das eleições.
E assim, "pondo de lado todas as outras atividades, os guardiães irão dedicar-se inteiramente à manutenção da liberdade no Estado, fazendo disso o seu ofício e não se dedicando a atividade alguma que não vise a esse fim". Eles serão legislativo, executivo e judiciário ao mesmo tempo; nem mesmo as leis irão prendê-los a um dogma diante de uma circunstância alterada; a regra dos guardiães será uma inteligência flexível sem as peias do precedente.
Mas, como podem homens de cinquenta anos ter uma inteligência flexível? Não estarão mentalmente engessados pela rotina? Adimanto (refletindo, sem dúvida, um acalorado debate fraternal em casa de Platão) objeta que os filósofos são beócios ou velhacos, que iriam governar de forma insensata ou egoísta, ou as duas ao mesmo tempo. "Os cultores da filosofia que se dedicam ao estudo não só na juventude com vistas a se instruírem, mas também em sua idade mais madura, como uma atividade ― estes homens, em sua maioria, transformam-se em seres muito estranhos, para não dizer rematados patifes; e o resultado, com aqueles que possam ser considerados os melhores dentre eles, é serem tornados inúteis para o mundo pelo próprio estudo que vós exaltais". Isso é uma descrição bem clara de alguns filósofos modernos que usam óculos; mas Platão responde que ele se preveniu contra essa dificuldade ao dar aos seus filósofos o treinamento da vida e a erudição das escolas; que eles, em consequência, serão homens de ação, em vez de homens de ideias ― homens acostumados a propósitos elevados e têmpera nobre por longa experiência e privações. Por filosofia, Platão entende uma cultura ativa, sabedoria que se mistura com a atividade concreta da vida; não entende um metafísico de gabinete e sem utilidade; Platão 'é o homem que menos se assemelha a Kant, o que é (com todo respeito) um grande mérito". (Faguet, p. 10).
Isso basta quanto à incompetência. Quanto à patifaria, podemos nos prevenis contra ela criando, entre os guardiães, um sistema de comunismo:
Em primeiro lugar, nenhum deles deve ter qualquer bem além do que for absolutamente necessário; tampouco deverão ter casa própria, com barras e trancas, fechadas para qualquer pessoa que pretenda entrar; suas providências deverão ser apenas as exigidas por guerreiros treinados, que são homens de moderação e coragem; concordarão em receber dos cidadãos uma quota fixa a título de ordenado, suficiente para cobrir as despesas durante o ano, e nada mais; e terão refeições comuns e viverão juntos, como soldados num acampamento. Ouro e prata, diremos a eles que recebem de Deus; o metal mais divino está dentro deles, e, portanto, não precisam do rebotalho terreno que atende pelo nome de ouro e não devem poluir o divino com a mistura do terreno, porque esse metal mais comum tem sido a fonte de muitas ações profanas; mas o deles é puro. E eles são os únicos, entre todos os cidadãos, que não poderão tocar ou manusear a prata ou o ouro, estar sob o mesmo teto que eles ou usá-los, ou ainda beber de recipientes feitos com eles. E isso será a sua salvação, e a salvação do Estado.
Mas se eles adquirirem casas, terras ou capital próprio, irão tornar-se donos de casa e agricultores em vez de guardiães; inimigos e tiranos, em vez de aliados dos outros cidadãos; odiando e sendo odiados, tramando e sendo objeto de tramas, terão uma vida de um terror dos inimigos internos maior do que o dos inimigos externos; e a hora da ruína, tanto deles como do resto do Estado, estará próxima.
Essas providências tornarão prejudicial e perigoso, para os guardiães, governar como uma panelinha em busca do bem de sua classe e não da comunidade como um todo. Porque eles estarão protegidos contra a carência; as necessidades e os luxos modestos de uma vida nobre ser-lhes-ão fornecidos com regularidade, sem o lancinante cuidado da preocupação econômica, que provoca rugas. Mas em compensação eles ficarão impossibilitados de sentirem cobiça e terem ambições sórdidas; terão, sempre, a quantidade exata de bens mundanos, e nada mais; serão como médicos prescrevendo, e eles mesmos aceitando, uma dieta para uma nação. Comerão juntos, como homens consagrados; dormirão juntos numa única barraca, como soldados que fizeram o juramento da simplicidade. "Os amigos devem ter todas as coisas em comum", como costumava dizer Pitágoras. Assim, a autoridade dos guardiães será esterilizada, e de seu poder será tirado o veneno; sua única recompensa será a honra e o senso de serviço para com o grupo. E serão homens que desde o início concordaram deliberadamente com uma carreira tão limitada assim do ponto de vista material; e homens que, ao final de seu rigoroso treinamento, terão aprendido o valor da elevada reputação do estadista acima dos crassos emolumentos dos políticos em busca de cargos ou do "homem econômico". Quando eles chegarem, acabarão as batalhas da política partidária.
Mas, o que dirão de tudo isso suas mulheres? Irão contentar-se em abrir mão dos luxos da vida e do consumo conspícuo de bens? Os guardiães não terão esposas. O comunismo deles será tanto de mulheres como de bens. Eles deverão estar livres não apenas do egoísmo próprio, como do egoísmo da família; não deverão ficar limitados à ansiosa cobiça do marido espicaçado; serão dedicados não a uma mulher, mas à comunidade. Nem mesmo seus filhos serão específica e distinguivelmente seus; todos os filhos de guardiães serão tirados de suas mães ao nascerem e criados em comum; sua paternidade se perderá na confusão. Todas as mães-guardiãs tomarão conta de todos os filhos-guardiães; a fraternidade do homem, dentro desses limites, irá passar da frase ao fato; todo menino será irmão de todos os ouros meninos, toda menina será irmã, todo homem será pai, e toda mulher será mãe.
Mas de onde virão essas mulheres? Algumas, sem dúvida, os guardiães irão atrair das classes industriais ou militares; outras ter-se-ão tornado, por direito, membros da classe guardiã. Porque não haverá barreira sexual de qualquer espécie nessa comunidade; muito menos na educação ― a menina terá as mesmas oportunidades intelectuais que o menino, a mesma chance de alçar-se às mais elevadas posições no Estado. Quando Glauco objeta que essa admissão da mulher a qualquer cargo, desde que ela tenha passado nos testes, viola o princípio da divisão do trabalho, recebe a ríspida resposta de que a divisão do trabalho deve ser por aptidão e capacidade, não por sexo; se uma mulher se mostra capaz de exercer a administração política, que ela governe; se um homem se mostra capaz apenas para lavar pratos, que exerça a função para a qual a Providência o destinou.
Comunidade de esposas não significa acasalamento indiscriminado; pelo contrário, deverá haver uma rigorosa supervisão eugênica de todas as relações reprodutoras. O argumento da criação de animais começa aqui, sua carreira sinuosa: se nós conseguimos resultados tão bons na criação de gado de forma selecionada para obter as qualidades desejadas, e de reprodução apenas dos melhores de cada geração, por que não aplicar princípios semelhantes ao acasalamento da Humanidade? Porque não basta educar a criança de forma adequada; ela deve nascer de forma adequada, de pais selecionados e saudáveis; "a educação deve começar antes do nascimento". Portanto, nenhum homem ou nenhuma mulher deve procriar a menos que goze da perfeita saúde; deverá ser exigido um atestado de saúde de todas as noivas e de todos os noivos. Os homens só poderão reproduzir-se quando tiverem mais de 30 e menos de 45 anos; as mulheres, só quando tiverem mais de 20 e menos de 40. Os homens solteiros até os 35 anos deverão ser levados, por meio de uma tributação, a optar pela felicidade. Os filhos nascidos de uniões não autorizadas, ou deformados, devem ser abandoados, e deve-se deixar que morram. Antes e depois das idades especificadas para a procriação, as uniões serão livres, sob a condição de o feto ser abortado. "Concedemos essa permissão com ordens rigorosas às partes no sentido de que façam tudo que estiver ao seu alcance para evitar que algum embrião veja a luz; e se algum deles persistir até o nascimento, elas deverão compreender que o resultado dessa união não pode ser sustentado, e tomar as providências que o caso requer". O casamento entre parentes está proibido, por induzir à degeneração. "O melhor de qualquer dos dois sexos deve ser unido ao melhor, sempre que possível, e o inferior ao inferior; e deverão criar os filhos daqueles, mas não os destes; porque esta é a sua única maneira de manter o rebanho em ótimas condições. Nossa juventude mais brava e melhor, além de suas outras honrarias e recompensas, deve ter permissão para ter maior variedade de parceiros; porque pais assim devem ter tantos filhos quanto for possível".
Mas a nossa sociedade eugênica deve ser protegida tanto da doença e da deterioração interna quanto dos inimigos externos. Deve estar pronta para, se necessário for, empenhar-se em guerras em que seja bem-sucedida. Nossa comunidade-modelo seria, é claro, pacífica, porque iria restringir a população aos meios de subsistência; mas os estados vizinhos, não administrados da mesma maneira, bem poderiam considerar a ordenada prosperidade de nossa Utopia um convite ao ataque e à pilhagem. Daí, embora deplorando a necessidade, teremos, em nossa classe intermediária, um número suficiente de soldados bem treinados, levando uma vida dura e simples como os guardiães, recebendo determinada porção de bens fornecida pelos seus "mantenedores e ancestrais", o povo. Ao mesmo tempo, deverão ser tomadas todas as precauções para evitar os motivos para uma guerra. O motivo primordial é o excesso de população; o segundo é o comércio exterior, com as inevitáveis disputas que o interrompem. Na verdade, o comércio competitivo é realmente uma forma de guerra; "paz é apenas um nome" (Leis, 622). Será bom, portanto, situar o nosso Estado ideal bem no interior, a fim de que fique isolado de qualquer grande desenvolvimento do comércio exterior. "O mar enche um país de mercadorias, oportunidades de ganhar dinheiro e barganhas; cria, na mente dos homens, hábitos de ganância e deslealdade financeiras, tanto em suas relações internas quanto nas exteriores" (Leis, 704-7). O comércio exterior exige uma grande força naval para protegê-lo, e o navalismo é tão prejudicial quanto o militarismo. "Em cada caso, a culpa pela guerra fica confinada a umas poucas pessoas, e a grande maioria é formada por amigos". As guerras mais frequentes são precisamente as mais torpes guerras civis, guerras de grego contra grego. que os gregos formem uma liga pan-helênica de nações, unindo-se "para que toda a raça grega não venha cair, um dia, sob o jugo de povos bárbaros".
Por isso, nossa estrutura política será encimada por uma pequena classe de guardiães; será protegida por uma grande classe de soldados e "auxiliares"; e irá apoiar-se sobre uma ampla base de uma população comercial, industrial e agrícola. Esta última classe, ou a classe econômica, irá manter a propriedade privada, parceiros privados e famílias privadas. Mas o comércio e a indústria serão regulados pelos guardiães, para evitar uma excessiva riqueza ou pobreza individual; todo aquele que adquirir mais de quatro vezes a posse média dos cidadãos terá de ceder o excesso ao Estado. Talvez o juro seja proibido, e os lucros, limitados. O comunismo dos guardiães é impraticável para a classe econômica; as características que distinguem essa classe sãos os poderosos instintos de aquisições e concorrência; algumas almas nobres entre eles estarão livres dessa febre de posse combativa, mas a maioria dos homens se preocupa com ela; eles têm fome e sede não de integridade, nem de honra, mas de posses infinitamente multiplicadas. Ora, os homens absorvidos na corrida atrás do dinheiro não estão aptos para governar um Estado; e todo o nosso plano se apoia na esperança de que, se os guardiães governarem bem e levarem uma vida simples, o homem econômico estará disposto a deixar que eles monopolizem a administração se permitirem que ele monopolize o luxo. Em resumo, a sociedade perfeita seria aquela em que cada classe e cada unidade estivesse fazendo o trabalho ao qual sua natureza e sua aptidão melhor se adaptassem; aquela em que nenhuma classe ou indivíduo iria interferir nos outros, mas todos iriam cooperar na diferença para produzir um todo eficiente harmonioso. Este seria um Estado justo.
A História da Filosofia, de Will Durant
Nenhum comentário:
Postar um comentário