Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

A ciência grega antes de Aristóteles

       "Sócrates", disse Renan, (Vida de Jesus, cap. 28) "deu a filosofia à Humanidade; Aristóteles deu à ciência. Havia filosofia antes de Sócrates, e ciência antes de Aristóteles; e depois de Sócrates e Aristóteles, a filosofia e a ciência tiveram enorme progresso. Mas tudo foi constituído sobre os alicerces que eles assentaram." Antes de Aristóteles, a ciência estava em embrião; com ele, ela nasceu.

      Civilizações anteriores à grega haviam feito tentativas com relação à ciência, mas até onde podemos perceber seu ideário através de uma ainda obscura escrita cuneiforme e hieroglífica, sua ciência não se diferenciava da teologia. Quer dizer, aqueles povos pré-helênicos explicavam todos os processos da natureza atribuindo-os a uma força sobrenatural; havia deuses por toda parte. Parece que foram os gregos jônicos os primeiros a ousarem dar explicações naturais de complexidades cósmicas e acontecimentos misteriosos: procuraram na física as causas naturais de determinados incidentes, e na filosofia uma teoria natural do todo. Tales (640-550 a.C.), o "Pai da Filosofia", era primordialmente um astrônomo, que assombrava os nativos de Mileto informando-os de que o Sol e as estrelas (que eles costumavam adorar como deuses) não passavam de bolas de fogo. Seu discípulo Anaximandro (610-540 a.C.), o primeiro grego a fazer mapas astronômicos e geográficos, acreditava que o universo havia começado como uma massa indiscriminada, da qual haviam surgido todas as coisas devido à separação dos opostos; que a história astronômica se repetia periodicamente na evolução e na dissolução de um número infinito de mundos; que a Terra era mantida no espaço por um equilíbrio de impulsões internas (como o burro de Buridan); que todos os nossos planetas tinham sido, a princípio, fluidos, mas haviam sido desidratados pelo Sol; que a vida se formara, a princípio no mar, mas que havia sido levada para a terra pela baixa do nível da água; que dentre os animais assim encalhados, alguns haviam desenvolvido a capacidade de respirar o ar e, assim, se tornaram os progenitores de toda a vida posterior sobre a terra; que o homem não podia, no início, ter sido o que era agora, pois se, ao aparecer pela primeira vez, tivesse ficado tão desamparado ao nascer e exigido uma adolescência tão longa, como nessa fase posterior, não teria tido condições de sobreviver. Anaxímenes, outro milésio (floresceu em 450 a.C.), descreveu a condição primitiva das coisas como uma massa muito rarefeita, condensando-se gradativamente em vento, nuvem, água, terra e pedra; os três estados da matéria ― gasoso, líquido e sólido ― eram estágios progressivos da condensação; o calor e o frio eram simples rarefação e condensação; os terremotos eram devidos à solidificação de uma terra originalmente fluida; a vida e a alma eram uma coisa só, uma força animadora e expansiva que estava presente em todas as coisas, por toda parte. Anaxágoras (500-428 a.C.), professor de Péricles, parece ter dado uma explicação correta dos eclipses solar e lunar; descobriu os processos de respiração nas plantas e nos peixes; e explicou a inteligência do homem, atribuindo-a ao poder de manipulação que veio quando os membros dianteiros ficaram liberados das tarefas de locomoção. A pouco e pouco, nesses homens, o conhecimento se transformou em ciência.

      Heráclito (530-470 a.C.), que deixou a riqueza e suas preocupações para levar uma vida de pobreza e estudo à sombra dos pórticos dos templos em Efeso, desviou a ciência da astronomia para preocupações mais terrenas. Todas as coisas fluem e se alteram sempre, disse ele; mesmo na mais imóvel existe um invisível fluxo e movimento. A história cósmica segue em ciclos repetitivos, cada qual começando e terminando em fogo (eis aqui uma fonte da doutrina estoica e cristã do juízo final e do inferno). "Através da luta", diz Heráclito, "todas as coisas nascem e se extinguem. é o pai e o rei de todos: alguns,ela tornou deuses; outros, homens; alguns, escravos, e outros, livres." Onde não há luta, há deterioração: "a mistura que não é sacudida se decompõe". Nesse fluxo de alteração, luta e seleção, só uma coisa é constante: a lei. "Essa ordem, a mesma para todas as coisas, não foi feita por nenhum dos deuses e dos homens; mas sempre existiu, existe e existirá." Empédocles (445 a.C., na Sicília) levou a um estágio mais avançado a ideia da evolução. (Osborn, From the Greeks to Darwin; e M. Arnold, Empedocles on Etna). Os órgãos não surgem intencionalmente, mas de uma seleção. A natureza faz muitas tentativas e experimentos com organismos, combinando órgãos de várias formas; quando a combinação atende às necessidades ambientais, o organismo sobrevive e perpetua suas características; quando a combinação fracassa, o organismo é eliminado; à medida que o tempo passa, os organismos se adaptam, de forma cada vez mais enredada e com um sucesso cada vez maior, ao seu ambiente. Finalmente, em Leucipo (445 a.C.) e Demócrito (460-360 a.C.), mestre e discípulo na Abdera Trácia, temos o último estágio da ciência pré-aristotélica ― o atomismo materialista e determinista. "Tudo", disse Leucipo, "é induzido pela necessidade." "Na verdade", disse Demócrito, "só existem átomos e o vácuo." A percepção se deve à expulsão de átomos do objeto para o órgão dos sentidos. Existe, ou existiu, ou existirá um número infinito de mundos; a todo instante, há planetas colidindo e morrendo, e novos mundos estão surgindo do caos, graças à agregação seletiva de átomos de tamanho e forma semelhantes. Não há um plano; o universo é uma máquina.

      Esta, num resumo estonteante e superficial, é a história da ciência grega antes de Aristóteles. Seus detalhes mais imperfeitos podem muito bem ser perdoados quando pensamos no círculo estreito de equipamento experimental e de observação dentro do qual aqueles pioneiros eram obrigados a trabalhar. A estagnação da indústria grega sob o incubo da escravidão impediu o pleno desenvolvimento daqueles magníficos princípios e a rápida complicação da vida política em Atenas desviou tanto os sofistas como Sócrates e Platão da pesquisa física e biológica para os caminhos da teoria ética e política. Uma das muitas glórias de Aristóteles foi ele ter sido suficientemente liberal e corajoso para compreender e combinar essas duas linhas do pensamento grego, a física e a moral; foi o fato de, ao recuar a uma época anterior à de seu mestre, ter retomado o fio do desenvolvimento científico nos gregos pré-socráticos, levando adiante o trabalho deles com um detalhe mais preciso e uma observação mais variada, e reunido todos os resultados acumulados em um magnífico corpo de ciência organizada.




A História da Filosofia, de Will Durant

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