Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

O problema político

      A justiça seria uma questão simples, diz Platão, se os homens fossem simples; um comunismo anarquista seria o bastante. Por um instante, ele deixa sua imaginação dominar:
      Primeiro, então, vamos considerar qual será o meio de vida deles. (...) Será que não irão produzir milho, vinho, roupas, calçados e construir casas para si mesmos? E quando estiverem em suas moradias, irão trabalhar no verão vulgarmente despidos e descalços, mas no inverno muito bem vestidos e calçados. Irão alimentar-se com cevada e trigo, cozendo o trigo e amassando a farinha, fazendo excelente pudins e pães; estes, eles irão servir numa esteira de palha ou em folhas limpas, enquanto se reclinam em leitos de ramos de teixo ou murta. E eles e seus filhos irão banquetear-se, bebendo do vinho que tiverem feito, usando guirlandas na cabeça e tendo nos lábios os louvores dos deuses, vivendo em doce sociedade e tendo o cuidado para que suas famílias não excedam seus recursos, porque terão em vista a pobreza ou a guerra. (...) E claro que terão um antepasto ― sal, azeitonas, queijo, cebolas e couves ou outras ervas do campo próprias para serem cozidas; e nós lhe daremos uma sobremesa de figos, legumes, feijão, murtinhos e nozes de faia, que eles irão assar no fogo, bebendo com moderação. E com uma dieta dessas pode-se esperar que vivam em paz até uma idade avançada e leguem uma vida semelhante aos filhos.
      Observe, aqui, a referência breve ao controle da população (é de se presumir que pelo infanticídio), ao vegetarianismo e a um "retorno à natureza", à primitiva simplicidade que a lenda hebraica descreve no Jardim do Éden. O trecho todo tem o som de Diógenes, o Cínico, que, como o epíteto dava a entender, achava que deveríamos "mudar e viver com os animais, pois eles são muito plácidos e autossuficientes"; e por um momento é provável que coloquemos Platão ao nível de Saint-Simon, Fourier William Morris e Tolstoi. Mas ele é um pouco mais cético do que esses homens de boa-fé; passa tranquilamente para a pergunta: Por que um paraíso simples como o que ele descreveu nunca chega? Por que essas Utopias nunca aparecem no mapa?
      Ele responde: devido à ganância e ao luxo. Os homens não se contentam com uma vida simples: são gananciosos, ambiciosos, competitivos e invejosos; logo se cansam do que possuem e anseiam por aquilo que não têm; e raramente desejam qualquer coisa, a menos que ela pertença a terceiros. O resultado é a invasão de um grupo sobre um território de outro, a rivalidade de grupos pelos recursos do solo, e depois a guerra. O comércio e as finanças se desenvolvem e trazem novas divisões de classes. "Qualquer cidade comum representa, na verdade, duas cidades, uma dos pobres e outra dos ricos, cada qual em guerra com a outra; e em qualquer das divisões existem outras menores ― seria um grande erro tratá-las como estados isolados". Nasce uma burguesia comerciante, cujos membros buscam a posição social através da riqueza e do consumo conspícuo: "eles gastam vultosas quantias com as esposas". Essas alterações na distribuição da riqueza produzem alterações políticas: quando a riqueza do comerciante ultrapassa a do proprietário de terras, a aristocracia cede lugar a uma oligarquia plutocrática ― comerciantes ricos e banqueiros governam o Estado. Então a estadística, que é a coordenação das forças sociais e o ajuste dos programas de governo ao crescimento, é substituída pela politicagem, que é a estratégia do partido e a sede pelos benefícios do cargo público.
      Toda forma de governo tende a se deteriorar devido ao excesso de seu princípio básico. A aristocracia se arruína por limitar com demasiado rigor o círculo dentro do qual se concentra o poder; a oligarquia se arruína pela irrefletida corrida em busca da riqueza imediata. Em qualquer dos dois casos, o fim é a revolução. Quando a revolução chega, pode parecer ter sido provocada por causas pequenas e caprichos fúteis; mas embora possa nascer por motivos insignificantes, ela é o resultado abrupto de erros graves e acumulados; quando um corpo fica enfraquecido por males não tratados, a mais leve exposição pode provocar uma doença grave. "Surge então a democracia: os pobres vencem seus adversários, matando alguns e banindo o resto; e dão ao povo uma quota igual de liberdade e poder".
      Mas até a democracia se arruína por excesso de... democracia. Seu princípio básico é o direito que todos têm de exercer um cargo público e determinar a política do governo. Isso, à primeira vista, é um sistema encantador; ele se torna desastroso porque o povo não está adequadamente preparado, pela educação, para selecionar os melhores governantes e os caminhos mais sensatos. "Quanto ao povo, não entende coisa alguma e só repete aquilo que seus governantes se comprazem em dizer-lhes" (Protágoras, 317); para ter uma doutrina aceita ou rejeitada, basta que a mandem elogiar ou ridicularizar numa peça popular (uma alfinetada, sem dúvida, em Aristófanes, cujas comédias atacavam quase todas as ideias novas). O governo da massa é um mar encapelado para a nau do Estado; cada lufada de oratória agita as éguas e desvia o curso. O desfecho de uma democracia dessas é a tirania ou a autocracia; a massa gosta tanto da lisonja, está com tanta "fome de mel", que por fim o maus astucioso e mais inescrupuloso lisonjeador, intitulando-se "protetor do povo", galga o poder supremo. (Tenha-se em conta a história de Roma).
      Quanto mais Platão pensa nisso, mais estupefato se sente diante da loucura de deixar ao capricho e à ingenuidade da massa a seleção dos dirigentes políticos ― para não falar em deixá-la aos escusos estrategistas que servem aos ricos e que mexem os cordões oligárquicos por detrás do palco democrático. Platão reclama que, enquanto em assuntos mais simples ― como a fabricação de sapatos ― achamos que só uma pessoa especialmente treinada atenderá à nossa finalidade, na política partimos do pressuposto de que todo aquele que sabe conseguir votos sabe administrar uma cidade ou um estado. Quando ficamos doente, chamamos um médico formado, cujo diploma é uma garantia de preparação específica e competência técnica. Não mandamos chamar o médico mais bonito ou o mais eloquente; muito bem, quando todo o Estado está doente, não deveríamos procurar o serviço e a orientação do mais sábio e do melhor? Criar um método de impedir que a incompetência e a velhacaria ocupem um cargo político e de selecionar e preparar os melhores para governarem para o bem comum ― este é o problema da filosofia política.




A História da Filosofia, de Will Durant
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