Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

FILOSOFIA ANTROPOLÓGICA - Algumas visões sobre o ser humano

      As interrogações sobre o que é o ser humano e o que significa ser um ente humano concentraram a atenção de pensadores de todas as épocas, o que permitiu que nosso tema fosse analisado sob diversos ângulos, além do biológico e do cultural.
      No entanto, como veremos, essa distinção ou contradição entre natureza e cultura voltará a surgir explícita ou implicitamente, de diferentes maneiras e em diversas épocas, conforme a ênfase que cada pensador tenha colocado no aspecto natural ou cultural. Estudaremos em seguida algumas abordagens consideradas referenciais dentro da história da filosofia.


Constituição essencial
    Vejamos primeiro três concepções clássicas sobre a natureza humana, isto é, sobre a constituição essencial do ser humano, conformando, portanto, uma espécie de "antropologia metafísica". Comecemos por duas delas, formuladas na Grécia antiga.


Concepção platônica
    No pensamento de Platão o ser humano é entendido como essencialmente alma, imortal e preexistente ao corpo. A união da alma com o corpo seria acidental, e o corpo iluminaria a alma humana como se fosse uma prisão. Platão também concebia a alma dividida em três partes distintas, que se relacionam entre si: alma concupiscente (vinculada aos desejos), alma irascível (vinculada às paixões) e alma racional (vinculada ao conhecimento).


Concepção aristotélica
    Aristóteles, por sua vez, entendia o ser humano como um animal racional, isto é, como um sistema único natureza-racionalidade. Como teria chegado a essa conclusão?
      Segundo sua doutrina, os seres humanos, como todos os seres, seriam constituídos de dois princípios inseparáveis: matéria e forma (conforme vimos aqui. A alma — que, para o filósofo, é o princípio da vida — seria a forma do corpo e, como qualquer forma, não poderia existir separadamente da matéria. A alma humana, segundo ele, se caracteriza fundamentalmente por ser intelectiva ou racional, mas englobaria também as virtudes da alma sensitiva (própria dos animais) e da alma vegetativa (própria das plantas). Daí, então, a ideia de animal racional.
      Por outro lado, Aristóteles também defendeu a concepção de que o ser humano é social por natureza, o que quer dizer que ele só se desenvolve plenamente vivendo em sociedade e atuando como animal político.


Concepção cartesiana
    No século XVII o filósofo francês René Descartes afirmou que o ser humano é corpo e alma, porém concebeu essas duas dimensões como radicalmente distintas e separadas (discordando, portanto, de Aristóteles). O corpo seria constituído pela substância denominada res extensa; a alma (ou mente, ou consciência) pela res cogitans. O filósofo também afirmou que a alma teria a faculdade de comandar o corpo, mas não conseguiu explicar como isso se daria, tendo em vista que, segundo sua doutrina, um corpo só poderia ser movido ou afetado por outro corpo, ou seja, haveria uma separação radical das substâncias.
      A concepção dualista de Descartes provocou grande impacto no mundo filosófico e científico nos séculos seguintes. E, de acordo com a interpretação de diversos estudiosos, sua dificuldade para explicar a relação mente-corpo acabou contribuindo para a abordagem compartimentada do ser humano que predomina nas ciências, especialmente na medicina, até nossos dias.


Estado de natureza
    Buscando explicar a formação das sociedades e dos Estados, alguns pensadores especularam sobre como seriam os seres humanos antes que esses fenômenos ocorressem, isto é, em situação pré-social, a qual se denomina estado de natureza. Vejamos as duas concepções mais destacadas a esse respeito, nas quais se formulam concepções praticamente contrárias sobre uma "essência natural" humana.
      No século XVII, o filósofo inglês Thomas Hobbes partiu do pressuposto de que os seres humanos são maus por natureza e não são naturalmente sociais, como defendia Aristóteles. Por isso, supõe-se que, no princípio, teriam vivido isolados e em luta permanente por seus interesses individuais. Como não havia as garantias de uma sociedade organizada, cada um fazia o que podia para se proteger, pois vigorava a lei do mais forte. Era, enfim, um estado de guerra de todos contra todos, em que "o homem era o lobo do próprio homem". Predominavam o egoísmo natural e o medo da morte. A vida nessas circunstâncias era bruta, desagradável e de curta duração, condição que só chegaria ao fim com a fundação do Estado. Assim, para Hobbes, é a sociedade que traz paz aos indivíduos.

De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? (1897) — Paul Gauguin (Museum of Fine Arts, Boston, EUA).

      No século XVIII, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau formulou uma tese bastante distinta, se não oposta à de Hobbes. Para ele, o ser humano em estado de natureza vivia isolado, livre e feliz, guiado por bons sentimentos e em harmonia com seu hábitat natural. Era o chamado bom selvagem. Segundo o filósofo, essa condição teria se modificado apenas no momento em que alguém cercou um terreno e disse que era seu, ou seja, quando surgiu a propriedade privada. Somente então teria surgido o estado de guerra mencionado por Hobbes. Com o surgimento da sociedade e de todas as suas instituições, desapareceu a bondade natural, própria dos selvagens. Portanto, a tese de Rousseau é a de que a sociedade corrompe os seres humanos.

      De acordo com sua observação, o ser humano é naturalmente mau e egoísta e a sociedade o melhora, ou o ser humano é naturalmente bom e generoso e a sociedade o corrompe? Fundamente sua opinião.


Relações sociais e existência
    Nos últimos dois séculos, diversos pensadores criticaram a busca de uma explicação metafísica para o ser humano, abstrata, rígida e universalista, passando a enfatizar a perspectiva da realidade concreta dos indivíduos. Vejamos dois exemplos de grande influência sobre o pensamento contemporâneo.
      No século XIX, Karl Marx afirmou que não existe o indivíduo formado fora da vida em sociedade, um ser isolado, abstrato e universal, como concebeu a maioria dos filósofos. Segundo Marx, para compreender e explicar os seres humanos é preciso partir das condições materiais em que cada indivíduo vive ou viveu, ou seja, com base em sua história concreta e existência social. Assim, se há alguma essência no ser humano, ela corresponde ao conjunto de suas relações sociais, e estas estão determinadas pelas relações produtivas e econômicas. É nesse pano de fundo que os seres humanos constroem o que são como indivíduos.
      No século XX, o filósofo francês Jean-Paul Sartre — um dos principais expoentes do existencialismo — abriu uma exceção à noção metafísica tradicional de que cada coisa tem um ser, uma essência, e que desta resulta sua forma de existir. Nesse sentido, a natureza humana (sua essência) determinaria sua existência. Sartre dirá que, no caso humano, a existência precede a essência. Isso significa que o ser humano é um nada quando nasce, isto é, quando passa a existir. Só depois, à medida que vai se definindo, é o que passa a ser (ser algo). O que há é esse nada, que confere ao ser humano a liberdade de escolha e a grande responsabilidade de construir a si mesmo dentro das condições encontradas desde seu nascimento.
      Sartre reconhecia, no entanto, que as pessoas devem enfrentar as condições a priori (anteriores, já existentes) de sua existência, isto é, sua situação histórica, aproximando-se das concepções de Marx. Por exemplo: nascer escravo não é o mesmo que nascer livre. Portanto, para Sartre, não é a natureza humana, mas sim a condição humana — sua situação no mundo — o que impõe limites à liberdade das pessoas.


Sugestões de filmes

• A guerra do fogo (1981, França/Canadá, direção de Jean-Jacques Annaud)
      Filme que aborda o processo de hominização (surgimento em certos primatas de características próprias do ser humano) e os primórdios da humanidade.

• Blade Runner, o caçador de androides (1982, EUA, direção de Ridley Scott)
      Ficção sobre a vida na Terra no século XXI. A semelhança entre os seres humanos e os androides coloca a questões sobre quem somos nós.

• Derzu Uzala (1975, Japão/URSS, direção de Akira Kurosawa)
      História sobre a amizade inabalável de dois homens aparentemente muito distintos, um humilde caçador nômade e um militar russo que mapeia a inóspita região da Sibéria, e os ensinamentos que este absorve sobre como relacionar-se com a natureza por meio do experiente caçador.

• Entre os muros da escola (2009, França, direção de Laurent Cantet)
      Filme baseado em livro homônimo de François Bégaudeau, que retrata o cotidiano de uma sala de aula em uma escola da periferia de Paris, onde se mesclam alunos que pertencem a distintos grupos sociais e diversas culturas e etnias (africana, árabe, asiática e europeia).
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