Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

Ideologia

      Vejamos agora um conceito que está intimamente ligado ao que estudamos neste postagem: o de ideologia. Criada pelo filósofo francês Destutt de Tracy (1754-1836), a palavra ideologia queria dizer originalmente "ciência das ideias", compreendendo o estudo de sua origem e desenvolvimento. Hoje, o uso do termo generalizou-se para referir-se ao conjunto das ideias que caracterizam determinado grupo social (político, econômico, religioso etc.). É o que queremos dizer quando falamos em "ideologia liberal", "ideologia de esquerda", "ideologia burguesa" etc.
      No entanto, no contexto da filosofia e das ciência sociais — por influência do pensamento de Karl Marx (filósofo alemão) —, a palavra ideologia possui também um significado bastante específico: trata-se não apenas de um conjunto de ideias que elaboram uma compreensão da realidade, mas também um conjunto de ideias que dissimulam essa realidade, porque mostram as coisas de forma apenas parcial ou distorcida em relação ao que realmente são.
      O que se buscaria ocultar ou dissimular na realidade poderia ser, como apontou Marx, o domínio de uma classe social sobre a outra. Nesse caso, a ideologia teria funções como a de preservar a dominação de classes apresentando uma explicação apaziguadora para as diferenças sociais. Seu objetivo seria evitar um conflito aberto entre opressores e oprimidos.
      A ideologia seria, portanto, uma forma de consciência da realidade, mas uma consciência parcial e ilusória, que se baseia na criação de conceitos e preconceitos como instrumentos de dominação.
      Para a filósofa brasileira Marilena Chauí (1941-), a noção de ideologia apresenta os seguintes traços gerais:
anterioridade — a ideologia funciona como um conjunto de ideias, normas e valores destinados a fixar e prescrever, de antemão, os modos de pensar, sentir e agir das pessoas. Em razão de sua anterioridade, predetermina o pensamento e a ação, desprezando a história e a prática na qual cada pessoa se insere, vive e produz;
generalização — a ideologia tem como finalidade produzir um consenso, um senso comum ou aceitação geral em torno de certas teses e valores. Com isso, generaliza para toda a sociedade aquilo que corresponde aos interesses específicos dos grupos ou classes dominantes. O "bem de alguns" é difundido como se fosse o "bem comum". Além disso, a generalização visa ocultar a origem dos interesses sociais específicos, que nascem da divisão da sociedade em classes;
lacuna — a ideologia desenvolve-se sobre uma lógica construída na base de lacunas, de omissões, de silêncios e de saltos. Uma lógica montada para ocultar em vez de revelar, falsear em vez de esclarecer, esconder em vez de descobrir. A eficiência de uma ideologia depende de sua capacidade para ocultar sua origem, sua lacuna e sua finalidade. Suas "verdades" devem parecer naturais, plenamente justificadas, válidas para todos os seres humanos e para todo o sempre.

"A lógica ideológica só pode manter-se pela ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois sendo missão das ideologias dissimular a existência dessa divisão, uma ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria. (Chauí, Ideologia e educação, em Revista Educação e Sociedade, p. 25).

      De outro lado, de acordo com a análise feita pelo filósofo marxista húngaro György Lukács (1885-1971), a característica fundamental da ideologia seria o fato de ela se prestar à orientação da vida prática dos indivíduos, isto é, de fornecer a base para a resolução dos problemas práticos da vida em sociedade. Nesse sentido, teria uma função operativa e existiria desde o momento em que os seres humanos começaram a viver em coletividade. Ou seja, Lukács destaca que a ideologia não tem necessariamente o caráter dissimulador da luta de classes, pois não seria um fenômeno apenas das sociedades divididas em classes. Segundo ele, apenas quando o conflito social passa a fazer parte da realidade é que a ideologia se volta à resolução dos problemas gerados por esse conflito, manifestando então como instrumento de classe.
      O fato de que, por exemplo, a ideologia burguesa oculte ou mostre parcialmente a realidade se originaria, de um lado, da própria incapacidade da burguesia de ver a realidade em sua totalidade e, de outro, da necessidade, comum a todas as classes dominantes, de tornar universais seus valores particulares a fim de garantir a estabilidade da ordem social que lhes interessa. Por isso, outro pensador marxista, o italiano Antônio Gramsci (1891-1937), refere-se à ideologia como sendo o "cimento" que garante a coesão social.
      Como podemos, então, identificar e "desmascarar" a ideologia? Propomos que a crítica de uma ideologia pode ser feita pelo exercício do estranhamento. Nesse exercício, os elementos que explicam ou fundamentam determinada realidade (o conjunto de ideias, crenças, valores, enfim, a ideologia) devem deixar de ser vistos como dados naturais, óbvios, eterna ou universalmente válidos. Devem ser analisados, relativizados, examinados com senso crítico e compreendidos como construções culturais e, portanto, histórico-sociais. Como expressou o poeta e dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956):

"Nós pedimos com insistência:
Não digam nunca: isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia.
Numa época em que
reina a confusão.
Em que corre sangue,
Em que se ordena a desordem,
Em que o arbitrário tem
força de lei,
Em que a humanidade
se desumaniza.
Não digam nunca:
isso é natural!"
(Citado em Peixoto, Brecht: vida e obra, p. 126).

Retirantes (1944) — Candido Portinari. A banalização da miséria e da violência pelos meios de comunicação de massa dessensibiliza as pessoas e promove o cinismo, servindo à ideologia dominante. Já a obra de arte — como este trágico retrato de família de excluídos, vítima da seca nordestina — sensibiliza e emociona.

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