Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

CULTURA - As respostas ao desafio da existência

      Falamos aqui sobre a distinção entre natureza e cultura. Mas o que queremos dizer exatamente quando usamos a palavra cultura? Para responder a essa pergunta, investiguemos primeiro o uso desse vocábulo em alguns contextos distintos:
• Os biólogos, por exemplo, referem-se à criação de certos animais como cultura: cultura de micro-organismos, cultura de carpas e assim por diante.
• Na linguagem cotidiana, dizemos que uma pessoa tem cultura quando frequentou boas escolas e/ou leu bons livros, dominando diversos tipos de conhecimentos (científicos, humanísticos, artísticos etc.).
• Na Grécia antiga, o termo cultura adquiriu uma significação toda especial, ligada à formação individual do cidadão. Correspondia à chamada paideia, processo pelo qual o ser humano realizava o que os gregos consideravam sua verdadeira natureza, isto é, desenvolver a filosofia (o conhecimento de si e do mundo) e a consciência da vida em comunidade.
      Apesar dessas diferentes acepções, podemos perceber em todas a existência de três ideias básicas, articuladas entre si: desenvolvimento, formação e realização. Essas ideias básicas estão também presentes no uso que damos à palavra cultura. Empregada por antropólogos, historiadores e sociólogos, cultura designa o conjunto dos modos de vida criados e transmitidos de uma geração a outra, entre os membros de uma sociedade. Abrange conhecimentos, crenças, artes, normas, costumes e muitos outros elementos desenvolvidos e consolidados pelas coletividades humanas.
      A cultura pode ser considerada um amplo conjunto de conceitos, símbolos, valores e atitudes que modelam e caracterizam uma sociedade. Envolve o que pensamos, fazemos e temos como membros de um grupo social. Nesse sentido, todas as sociedades humanas, da pré-história aos dias atuais, possuem uma cultura. E cada cultura tem seus próprios valores, suas próprias "verdades".

O que estaria pensando esse grupo de africanos de etnia massai diante desse inusitado equipamento da assim dita "civilização"?

      Assim, podemos falar em cultura ocidental ou oriental (própria de um conjunto de povos com determinadas características comuns), cultura chinesa ou brasileira (própria de uma nação ou civilização), cultura tupi ou africana (própria de um grupo étnico), cultura cristã ou muçulmana (própria de um grupo religioso), cultura familiar ou empresarial (própria do conjunto de pessoas que constituem uma instituição) etc.
      Em uma abordagem mais filosófica, cultura é, enfim, a resposta oferecida pelos grupos humanos ao desafio da existência. Essa resposta manifesta-se em termos de conhecimento (logos), paixão (pathos) e comportamento (ethos) — isto é, em termos de razão, sentimento e ação.


Características gerais
    O arqueólogo norte-americano Robert Braidwood procurou indicar os principais elementos que caracterizam a cultura:

"A cultura é duradoura embora os indivíduos que compõem um determinado grupo desapareçam. No entanto, a cultura também se modifica conforme mudam as normas e entendimentos.
Quase se pode dizer que a cultura vive nas mentes das pessoas que a possuem. Mas as pessoas não nascem com ela; adquirem-na à medida que crescem. Suponha que um bebê húngaro recém-nascido seja adotado por uma família residente nos Estados Unidos, e que nunca digam a essa criança que ela é húngara. Ela crescerá tão alheia à cultura húngara quanto qualquer outro americano. Assim, quando falo da antiga cultura egípcia, refiro-me a todo o conjunto de entendimentos, crenças e conhecimentos pertencentes aos antigos egípcios. Significa, por exemplo, tanto suas crenças sobre o que faz o trigo crescer, quanto sua habilidade para fazer os implementos necessários à colheita. Ou seja, suas crenças a respeito da vida e da morte. Quando falo de cultura, estou pensando em algo que perdurou através do tempo. Se qualquer egípcio morresse, mesmo que fosse o faraó, isso não afetaria a cultura egípcia daquele momento determinado." (Homens pré-históricos, p. 41-42).

      Vários estudiosos concordam com os elementos apontados por Braidwood, caracterizando a cultura como:
• adquirida pela aprendizagem, e não herdada pelos instintos;
• transmitida de geração a geração, por meio da linguagem, nas diferentes sociedades;
• criação exclusiva dos seres humanos, incluindo a produção material e não material;
• múltipla e variável, no tempo e no espaço, de sociedade para sociedade.


Cultura e cotidiano
    Pensemos agora sobre a vida cotidiana de cada pessoa e sua relação com o universo cultural de que ela participa.
      Vimos que a cultura abrange um conjunto de conceitos, valores e atitudes que modelam uma comunidade. Assim, podemos dizer que todo indivíduo vive sob a influência de diversas culturas, não só de uma, pois participa de distintos grupos sociais e cada um deles lhe imprime sua marca particular.
      Vejamos um exemplo. Um brasileiro ou uma brasileira que tenha uma família, frequente uma igreja e trabalhe em uma empresa recebe influência de, pelo menos, quatro fontes culturais: a cultura popular brasileira (ampla e expressiva, porém não homogênea, pode ser dividida em diversas subculturas); a cultura familiar, basicamente transmitida por seus pais e avós; a cultura de seu grupo religioso; e a cultura organizacional desenvolvida em seu local de trabalho.
      Cada universo cultural de que uma pessoa participa influi de forma específica em sua maneira de pensar, sentir e agir, ou seja, em sua forma de ser e perceber a realidade no dia a dia. Ilustremos um pouco essa ideia:
• Uma jovem criada em um país distante, de cultura muçulmana ortodoxa e que para sair à rua deve usar burca (traje que cobre todo o corpo e o rosto da mulher, deixando descobertos apenas os olhos), provavelmente terá uma vivência social com seu corpo bem diferente da experiência de outra mulher que cresceu brincando seminua nas praias de Copacabana.
• Também é possível que um menino que viveu no meio rural possa ver e distinguir muitas plantas em um jardim, ao passo que um garoto criado em um apartamento urbano não identificaria nesse mesmo jardim mais que uma massa de vegetação.
      Então, se de um lado a cultura é uma criação coletiva dos grupos humanos através do tempo, de outro, cada pessoa também é, em grande medida, uma criação diária e constante da cultura em que vive, desde o instante de seu nascimento. O curioso é que quase não nos damos conta disso, pois a cultura à qual pertencemos é praticamente invisível para nós em nosso cotidiano.

Nos grandes centros urbanos nos defrontamos com uma grande diversidade de personagens, comportamentos, crenças e valores. Seu estilo de vida pode nos parecer exótico ou estranhos, se desconhecemos sua lógica.


Presença invisível
    Em geral, vivemos dentro de nossa cultura num fluir contínuo, como se nosso modo de ser fosse igual para todas as pessoas e as diversas coisas do mundo fossem sempre vividas assim, da forma com que nós as experimentamos. Somos como um peixe que nasceu dentro de um aquário e que toma esse ambiente como o mundo e seu modo "aquático" de ser como o único existente.
      Esse estado habitual de nossas vidas vê-se confrontado, no entanto, quando viajamos para outros estados ou para fora do país. Percebemos, no contato com os habitantes locais, uma série de diferenças no modo de falar, comer, vestir e relacionar-se. Nesse instante, ocorre em nós um estranhamento (observe que as palavras estranho e estrangeiro têm a mesma origem latina: "o que é de fora").
      A percepção desses elementos culturais distintos, que estão "fora de nós", quebra a transparência e invisibilidade de nossa própria cultura. Temos, então, a possibilidade de "ver" nossas próprias características culturais: como nos vestimos, comemos, pensamos nos relacionamentos etc. Mas, depois que voltamos ao nosso cotidiano, nossa cultura tende a tornar-se novamente transparente e invisível para nós. E retomamos assim a "normalidade" de nossas vivências.
      A dificuldade de estar consciente da própria cultura é análoga à dificuldade que qualquer pessoa tem para reconhecer o próprio sotaque. Para o brasileiro, quem tem sotaque é o português; para o português, quem tem sotaque é o brasileiro. Não conseguimos perceber nosso próprio sotaque, só o do outro, porque foi essa maneira de pronunciar as palavras que cada um escutou e repetiu desde a mais tenra idade. Como consequência, o indivíduo pensa, mesmo que não de forma consciente: "Eu falo normal. Os outros é que falam esquisito".
      Na cultura em geral ocorre algo semelhante: a pessoa percebe e aprende do grupo cultural do qual participa, por imitação e de forma quase inconsciente, boa parte de como deve pensar e agir nas mínimas coisas: o que é bonito ou feio, o que é adequado ou inadequado, o que é possível ou impossível, como é a vida, como são as pessoas, que coisas são importantes, entre tantas outras. Em geral, isso ocorre primeiro dentro da própria família e, depois, no contato com a vizinhança, na escola em que estuda, na igreja que frequenta, na empresa em que trabalha, e assim por diante.
      Essa assimilação cultural ocorre de forma tão "transparente" que dificilmente percebemos que estamos aprendendo algo com alguém ou em dada situação. E aqueles que nos transmitem esse ensinamento nem sempre se dão conta de que nos estão transmitindo sua maneira de ser e viver, seu modelo de mundo, seu "filtro" da realidade. Assim, de modo geral, vivemos nossa própria cultura sem vê-la e, muitas vezes, sem questioná-la.

Jovem come espetinho de escorpião, iguaria típica da China, em um mercado de Pequim. Você comeria esse e outros pratos preparados com ingredientes estranhos para nós, como larvas de alguns insetos ou carne de cachorro?

     Essa característica não constitui um problema em si, já que nos é bastante conveniente e útil: cada pessoa não precisa percorrer toda a trajetória realizada por seus ancestrais ou antecessores para enfrentar os desafios da existência, pois já domina "respostas" ou "soluções" que lhe satisfazem, ou à sua comunidade. O problema dessa invisibilidade está em que, como os integrantes de uma cultura compartilham entre si a mesma maneira de ver e viver as coisas, comumente acreditamos que essa visão compartilhada constitui a única realidade ou a verdade absoluta.
      Em virtude disso, corremos o risco de atuar de maneira equivocada e preconceituosa, nos tornar arrogantes e intolerantes em relação à diferença, desprezar indivíduos ou grupos culturais com visões distintas das nossas ou entrar em confronto com eles, e assim por diante. E mais, podemos ter dificuldades para enfrentar os novos desafios que surjam no interior de nosso grupo social (seja ele a família, a escola, o trabalho etc.), quando as "respostas prontas" de que dispomos (nossa cultura) não servem para lidar com eles, quando nosso modelo de mundo impede um atuar transformador e criativo.
      É hora, então, de colocar em ação a consciência crítica, abrir espaço para o estranhamento e a dúvida e voltar a analisar criticamente as ideias e crenças, os valores, as normas e as condutas que caracterizam nossa cultura. A humanidade manifesta-se de diversas formas. Portanto, é importante — como apontam estudiosos e educadores — viver a identidade de nossa própria cultura, mas também saber conviver com a pluralidade cultural existente em nosso planeta.
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