Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

O mundo como vontade: A vontade de viver


      Quase sem exceção, os filósofos colocaram a essência da mente no pensamento e na consciência; o homem era o animal consciente, o animal rationale. "Este antigo e universal erro radical, este enorme proton pseudos (Primeira mentira, erro inicial)., [...] deve ser, antes de qualquer coisa, posto de lado." (11, 409. Schopenhauer se esquece da enfática declaração [ou será que se baseia nela?] de Spinoza: "O desejo é a própria essência do homem". ― Ética, parte IV, prop. 18. Fichte também enfatizara a vontade.) "A consciência é a simples superfície de nossa mente, da qual, como em relação à Terra, não sabemos o que há dentro, mas só conhecemos a crosta." (II, 328) Sob o intelecto consciente está a vontade cônscia ou inconsciente, uma força vital esforçada, persistente, pode parecer que o intelecto dirija a vontade, mas só como um guia conduz o seu mestre; a vontade "é o forte homem cego que carrega nos ombros o homem manco que enxergava" (II, 421). Nós não queremos uma coisa porque encontramos motivos para ela, encontramos motivos para ela porque a queremos; chegamos até a elaborar filosofias e teologia para disfarças os nossos desejos (Uma fonte de Freud).
      Daí Schopenhauer chamar o homem de "animal metafísico": outros animais desejam sem metafísica. "Nada é mais provocante, quando estamos discutindo com um homem usando razões e explicações e fazendo todos os esforços para convencê-lo, do que descobrir, no final das contas, que ele não quer  compreender, que temos que nos entender com a vontade dele." (III, 443). Daí a inutilidade da lógica: ninguém jamais convenceu alguém usando a lógica; e até mesmo os lógicos só a usam como fonte de renda. Para convencer um homem, é preciso apelar para o seu interesse pessoal, seus desejos, sua vontade. Observem o tempo que costumamos gastar com lembranças de nossas vitórias, e como logo esquecemos as derrotas; a memória é a criada da vontade. (Ensaios, "Conselhos e Máximas", p. 126) "Ao fazer contas, é mais frequente errarmos a nosso favor do que contra nós; e isso sem a menor intenção desonesta." (II, 433). "Por outro lado, a compreensão do mais estúpido dos homens, se torna aguçada quando se trata de objetos que interessam de perto aos seus desejos (II, 437); em geral, o intelecto é desenvolvido pelo perigo, como na raposa, ou pela necessidade, como no criminoso. Mas ele sempre parece subordinado ao desejo, e a este subordinado; quando ele tenta tirar o lugar da vontade, dá-se a confusão. Ninguém está mais sujeito a erros do que aquele que só age por reflexo (11, 251).
      Pensem na agitada luta do homem por alimentos, companheiras ou filhos; poderá isso ser obra do reflexo? Claro que não; a causa é a semiconsciente vontade de viver, e de viver plenamente. "Só aparentemente é que os homens são puxados pela frente; na realidade, são empurrados por trás" (III, 118); eles pensam que são conduzidos pelo que veem, quando na verdade são levados adiante por aquilo que sentem ― por instintos cujo funcionamento ignoram a metade das vezes. O intelecto é meramente o ministro das relações exteriores; "a natureza criou-o para servir à vontade individual. Portanto, está projetado para saber coisas apenas na medida em que elas ofereçam motivos à vontade, mas não para sondá-las ou para compreender sua verdadeira essência" (II, 463 e 326; uma fonte de Bergson). "A vontade é o único elemento permanente e imutável da mente; (...) é a vontade que", através da continuidade do propósito, "dá unidade à consciência e mantém em conexão todas as ideias e todos os pensamentos, acompanhando-os como uma harmonia contínua." (II, 333). E o pedal de tônica do pensamento.
      O caráter está na vontade, e não no intelecto; o caráter também é continuidade de propósito e atitude: e estes são a vontade. A linguagem popular está certa quando prefere "coração" a "cabeça"; ela sabe (porque não raciocinou sobre o assunto) que uma "boa vontade" é mais profunda e mais confiável do que uma mente lúcida; e quando ela chama um homem de "perspicaz", "inteligente" ou "esperto", insinua a sua suspeita e o seu desagrado. "As brilhantes qualidades mentais conquistam admiração, mas nunca afeição"; e "todas as religiões prometem uma recompensa (...) por excelências da vontade ou do coração, mas nenhuma pelas excelências da cabeça ou da compreensão" (II, 450 e 449).
      Até o corpo é um produto da vontade. O sangue, empurrado por aquela vontade a que vagamente chamamos de vida, constrói seus próprios vasos abrindo sulcos no corpo do embrião; os sulcos se alargam e se fecham, tornando-se artérias e veias (II, 479). A vontade de saber constrói o cérebro, assim como a vontade de agarrar constrói a mão, ou como a vontade de comer desenvolve o aparelho digestivo (II, 486. Esta é a teoria lamarckiana de crescimento e evolução devidos a desejos e funções compelindo estruturas e gerando órgãos). De fato, esses pares ― essas formas de vontade e essas formas de carne ― não passam de dois lados de um processo e uma realidade. Vê-se melhor a relação na emoção, em que o sentimento e as alterações corpóreas internas formam uma unidade complexa (I, 132. Uma fonte para a teoria da emoção e James e Lange?).
      O ato da vontade e o movimento do corpo não são duas coisas diferentes conhecidas de forma objetiva, que o elo da causalidade une; eles não se encontram na relação de causa e efeito; são uma coisa só, mas são dados de maneira inteiramente diferentes ― imediatamente e de novo na percepção. (...) A ação do corpo nada mais é do que o ato da vontade objetivado. O mesmo acontece com todos os movimentos do corpo; (...) o corpo todo não passa de vontade objetivada. (...) As partes do corpo devem, portanto, corresponder inteiramente aos desejos principais através dos quais a vontade se manifesta; elas devem ser a expressão visível desses desejos. Os dentes, a garganta e os intestinos são a fome objetivada; os órgãos reprodutores são o desejo sexual objetivado. (...) Todo o sistema nervoso constitui as antenas da vontade, que ela estende dentro e fora (...) Como o corpo humano corresponde em geral à vontade humana em geral, a estrutura corpórea individual corresponde à vontade individualmente modificada, o caráter do indivíduo (I, 130-141; 11, 482. Cf. Spinoza, Ética, III, 2).
      O intelecto se cansa, a vontade, nunca; o intelecto precisa de sono, mas a vontade trabalha até mesmo durante o sono. A fadiga, como a dor, tem a sua sede no cérebro; os músculos não ligados com o cérebro (como o coração) nunca se cansam (II, 424. Mas não haverá essa coisa de saciação ou exaustão do desejo? Numa fadiga profunda ou numa doença grave, até a vontade de viver vai desaparecendo). No sono, o cérebro se alimenta; mas a vontade não requer alimento algum. Daí a necessidade de dormir ser maior nos que trabalham com o cérebro. [Este fato, porém, "não nos deve levar erradamente a estender o sono de forma indevida; porque aí ele perde a intensidade (...) e se torna mera perda de tempo"]. Durante o sono, a vida do homem mergulha para o nível vegetativo, e então "a vontade funciona segundo a sua natureza original e essencial, sem receber perturbações do exterior, sem diminuição de poder através da atividade do cérebro e do empenho do saber, que é a mais pesada nas funções orgânicas; (...) portanto, durante o sono todo o poder da vontade é direcionado para a manutenção e a melhoria do organismo. Daí todas as curas, todas as crises favoráveis, terem lugar durante o sono". Burdach estava certo quando declarou que o sono era o estado original. O embrião dorme quase que continuamente, e o bebê, a maior parte do tempo. A vida é "uma luta contra o sono: a princípio, ganhamos terreno sobre ele, mas no fim esse terreno é reconquistado. O sono é um pedaço de morte tomado emprestado para manter e renovar a parte da vida que foi exaurida pelo dia" ("Conselhos e Máximas", ensaio "Sobre Nossas Relações com Nós Mesmos"). É o nosso eterno inimigo; mesmo quando estamos acordados, ele nos possui em parte. Afinal de contas, o que se pode esperar de cabeças, mesmo as mais inteligentes, que todas as noites se tornam o cenário dos mais estranhos e mais absurdos sonhos e que ao despertar têm que retomar a sua meditação? (II, 333).
      A vontade, então, é a essência do homem. E não o será da vida em todas as suas formas e até da matéria "inanimada"? Não será a longamente procurada, e já desesperada, "coisa em si mesma" ― a realidade íntima, a essência última de todas as coisas?
      Vamos tentar, então, interpretar o mundo exterior em termos da vontade. E vamos logo ao fundo; onde outros disseram que a vontade é uma forma de força, digamos que a força é uma forma de vontade. A pergunta de Hume ― "O que é a causalidade?" ―, responderemos: a Vontade. Assim como a vontade é a causa universal em nós mesmos, assim é nas coisas; e, a menos que compreendamos a causa como vontade, a causalidade continuará sendo apenas uma fórmula mágica e mística, sem significar realmente coisa alguma. Sem esse segredo, somos levados a meras qualidades ocultas como "força", ou "gravidade", ou "afinidade"; não sabemos o que essas forças são, mas sabemos ― pelo menos um pouco mais claramente ― o que é a vontade; digamos, então, que a repulsão e atração, combinação e decomposição, magnetismo e eletricidade, gravidade e cristalização são Vontade. Goethe expressou essa ideia no título de um de seus romances, quando chamou à irresistível atração de amantes die Wahlver wandschaften ― "afinidades eletivas". A força que atrai o amante e a força que atrai o planeta é a mesma.
      O mesmo acontece na vida das plantas. Quanto mais descemos entre as formas de vida, verificamos que menor é o papel do intelecto; mas não é isso o que acontece com a vontade.
      Aquilo que em nós persegue seus fins à luz do conhecimento, mas aqui (...) apenas luta cega e silenciosamente de maneira unilateral e imutável, deve, em ambos os casos, ser classificada sob o nome da Vontade. (...) A inconsciência é a condição original e natural de todas as coisas, e portanto também a base a partir da qual, em determinadas espécies de seres, a consciência resulta como sua mais alta eflorescência; por isso, mesmo então a inconsciência sempre continua a predominar. Em consequência, a maior parte das existências não tem consciência; mas ainda assim age segundo as leis da natureza ― isto é, de sua vontade. As plantas têm, no máximo, um análogo muito fraco de consciência; a espécie mais inferior de animais tem só um princípio. Mas, mesmo depois de a consciência subir por toda a série de animais até chegar ao homem e sua razão, a inconsciência das plantas, na qual ela começou, ainda continua sendo a fundação e pode ser detectada na necessidade de dormir.
      Aristóteles tinha razão: existe uma força Interna que modela todas as formas, nas plantas e nos planetas, nos animais e nos homens. "O instinto dos animais em geral nos oferece a melhor ilustração do que resta de teologia na natureza. Porque, assim como o instinto é uma ação semelhante àquela que é guiada pela concepção de um fim e, no entanto, não tem essa concepção, toda a construção na natureza se assemelha àquela que é guiada pela concepção de um fim e, no entanto, não a tem". A maravilhosa habilidade mecânica dos animais mostra quanto a vontade antecede o intelecto. Um elefante que tenha sido conduzido por toda a Europa e atravessara centenas de pontes recusou-se a avançar sobre uma ponte fraca, embora tivesse visto muitos cavalos e homens atravessá-la. Um cachorro novo tem medo de pular de cima de uma mesa; ele prevê o efeito da queda não pelo raciocínio (porque não tem experiência alguma de uma queda daquelas), mas por instinto. Orangotangos se aquecem junto a uma fogueira que encontram, mas não alimentam o fogo; é óbvio, então, que tais ações são instintivas, e não o resultado de raciocínio; são a expressão não do intelecto, mas da vontade.
      A vontade, claro, é uma vontade de viver, e de viver ao máximo. Como a vida é cara a todas as coisas vivas! E com que paciência silenciosa ela irá esperar o momento propício! "Durante milhares de anos, o galvanismo ficou inativo no cobre e no zinco, e os dois ficaram tranquilamente ao lado da prata, que é consumida em chamas assim que os três são unidos nas condições necessárias. Mesmo no reino orgânico vemos uma semente seca preservar a força inativa da vida durante três mil anos e, quando finalmente ocorrem as circunstâncias favoráveis, desenvolver-se numa planta." Sapos vivos encontrados em calcário levam à conclusão de que mesmo a vida animal é capaz de suspensão durante milhares de anos. A vontade é vontade de viver; e o seu eterno inimigo é a morte.
      Não será ela capaz de derrotar até mesmo a morte?


A História da Filosofia, de Will Durant
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