Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

IDEALISMO ALEMÃO - A busca de um sistema unificador do real

      Uma doutrina é idealista quando concebe a noção de que o sujeito tem um papel mais determinante que o objeto no processo de conhecimento.
      Há vários tipos de idealismo. Platão pode ser considerado o principal idealista da Antiguidade, por sua teoria das ideias. Descartes, por meio do cogito, expressou plenamente seu idealismo, bem como Kant, na Crítica da razão pura, em que afirma que das coisas só conhecemos a priori aquilo que nós mesmos colocamos nelas. Este último filósofo assentaria as bases do que seria conhecido como idealismo alemão, movimento desenvolvido no início do século XIX, cujas principais características estudaremos a seguir.


Johan Gottlieb Fichte
    Johan Gottlieb Fichte (1726-1814), nascido em Rammenau, Alemanha, é considerado um dos filósofos pioneiros desse movimento. Para entender um conceito fundamental de seu pensamento e do idealismo alemão, retomemos Kant.
      Kant considerava que das coisas só podemos conhecer a priori aquilo que nós mesmos colocamos nelas. Isso quer dizer que só podemos conhecer o pensamento ou a consciência que temos das coisas. Para esse filósofo, portanto, a condição última do processo de conhecer é a existência do eu como princípio da consciência. Em outras palavras, é a existência do sujeito como centro (o eu) que torna possível o conhecimento e lhe dá forma, pois é o sujeito que organiza o conhecimento do objeto, ao passo que este apenas se encaixa nos "moldes" da percepção humana.
      Assim, Fichte tomou esse eu de Kant e transformou-o de princípio da consciência em princípio criador de toda a realidade. Dessa forma, levou o idealismo a seu apogeu, fundando uma doutrina segundo a qual a realidade objetiva seria produto do espírito humano. Isso porque, segundo ele, trazemos em nós concepções lógicas das coisas do universo e este, necessariamente, reflete essas concepções lógica. Fichte chegou a se referir às coisas da realidade, ao que é exterior ao ser humano, como o não eu criado pelo eu.


Friedrich Schelling
    Essa mesma ideia, que pode parecer um tanto estranha para o entendimento comum das pessoas, é retomada e amadurecida por outro pensador alemão, Friedrich Schelling (1775-1854), natural da cidade alemã de Leonberg.

Retrato de Friedrich Schelling (c. 1850). Aos 23 anoss de idade, Schelling tornou-se assistente de Fichte. Um ano depois, foi nomeado seu sucessor, conseguindo então grande fama.

      Schelling procurou explicar como se dá a existência do mundo real, das coisas, a partir do eu, discordando de Fichte no que se refere à determinação do mundo puro como não eu, ou seja, à ideia de que a realidade exterior seria produto da concepção do eu. Para Schelling, existe um único princípio, uma inteligência exterior ao próprio eu que rege todas as coisas. Essa inteligência se manifestaria de forma visível em todos os níveis da natureza até alcançar o nível mais alto, isto é, o ser humano ou, mais geralmente, o que chamamos de razão.
      Trata-se, portanto, de uma noção mais compreensível ao senso comum, uma vez que guarda afinidade com a ideia de Deus. A ideia de uma inteligência, ou espírito, que se manifesta e se concretiza no mundo sensível será o ponto de partida da filosofia de Hegel, conforme veremos em seguida.


Friedrich Hegel
    Georg Rilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), nascido em Stuttgart, Alemanha, foi o principal expoente do idealismo alemão. Sua obra costuma ser apontada como o ponto culminante do racionalismo. Talvez nenhum outro pensador tenha conseguido elaborar, como ele, um sistema filosófico tão abrangente.

Retrato de Friedrich Hegel (1825) — Jacob Schtesinger. Na obra Princípios da filosofia do direito, Hegel afirmou a racionalidade do mundo ao dizer que o racional é o real e o real é racional. A frase foi muito utilizada pelo conservadorismo político, oferecendo justificativa

      Buscando respostas para o maior número de questões, Hegel tentou reconciliar a filosofia com a realidade. Segundo o filósofo alemão Herbert Marcuse (1898-1979), o sistema hegeliano constitui "a última grande expressão desse idealismo cultural, a última grande tentativa para fazer do pensamento o refúgio da razão e da liberdade". Entre as principais obras de Hegel estão Fenomenologia do espírito, Princípios da filosofia do direito e Lições sobre a história da filosofia.


Idealismo absoluto
    Hegel entendia a realidade como um processo análogo ao pensamento. Ele dizia que o real é racional e o racional é real. Em outras palavras: a) a realidade possui racionalidade ou identifica-se com ela; b) a razão possui realidade ou identifica-se com ela.
      Assim, Hegel rompeu com a distinção tradicional entre consciência e mundo, sujeito e objeto. Para ele, a realidade se identificaria totalmente com o espírito (ou ideia, ou razão) e a racionalidade seria o fundamento de tudo o que existe, inclusive da natureza. O ser humano, por sua vez, constituiria a manifestação mais elevada dessa razão.


Movimento dialético
    Ao conceber a realidade como espírito, Hegel queria destacar que ela não é apenas uma substância (uma coisa permanente, rígida), mas um sujeito com vida própria que pode atuar. Portanto, entender a realidade como espírito é entendê-la nesse seu atuar constante, ou seja, como movimento ou processo. É entendê-la como devir.
      O movimento da realidade apresentaria, segundo o filósofo, momentos que se contradizem, sem, no entanto, perderem a unidade do processo, que leva a um crescente auto-enriquecimento. Trata-se do movimento dialético do real, que se processaria em três momentos:
• o primeiro, do ser em si, seria, por exemplo, o momento de uma planta como semente (tese);
• o segundo, do ser outro ou fora de si, seria o momento em que essa semente sai fora de si, desdobra-se em algo distinto (antítese);
• e o terceiro, do ser para si, seria o momento em que surge a planta (síntese dos momentos anteriores).
      Esses momentos se sucedem com um movimento em espiral, ou seja, um movimento circular que não se fecha. Assim, cada momento final, que seria a síntese, torna-se a tese de um movimento posterior, de caráter mais avançado.

Hegel pretende captar em sua filosofia o movimento da realidade. Assim como um botão precisa desaparecer para que a flor surja, e a flor desaparece para dar lugar ao fruto, da mesma forma todas as coisas passam por um processo dinâmico de transformações que leva a uma síntese superior.


Saber absoluto
    Para compreender a dialética da realidade, segundo Hegel, é necessário que a razão se afaste do entendimento comum e se coloque no ponto de vista do absoluto. E a consciência alcança razão ou saber absoluto, ou seja, supera o entendimento finito, adquirindo a certeza de ser toda a realidade. Desse modo, a razão alcançaria a consciência da unidade entre ser e pensar, harmonizando subjetividade e objetividade.
      O pensamento de Hegel apresenta-se, desse modo, como um grande sistema, que permite pensar tanto a natureza, a realidade física, quanto o espírito. O fio condutor dessa reflexão totalizante é a relação entre finito e infinito.
      Assim, o trabalho da filosofia seria o de superar o entendimento finito e limitado das coisas finitas e limitadas para alcançar o saber absoluto, que é o saber da coisa em si. Seria o caminhar da consciência rumo ao infinito, a busca da infinidade a partir da finitude.
      Hegel procurou apresentar, em sua obra, o caminho do conhecimento finito ao conhecimento absoluto, o qual se daria em vários campos do saber, tanto em relação à natureza como ao espírito.
      No que concerne à natureza, rompeu com a visão romântica, que a divinizava, proclamando a absoluta superioridade do espírito, que se realiza na história dos seres humanos por meio de sua liberdade.
      Em relação ao espírito, Hegel distinguiu três instâncias:
o espírito subjetivo, que se refere ao indivíduo e à consciência individual;
o espírito objetivo, que se refere às instituições e costumes historicamente produzidos pelos seres humanos, expressão da liberdade humana;
o espírito absoluto, que se manifesta na arte, na religião e na filosofia como espírito que se compreende a si mesmo.


Filosofia e história
    A história, para Hegel, é o desdobramento do espírito objetivo. Vejamos por quê. O espírito objetivo é a realização da liberdade humana na sociedade. Manifesta-se no direito, na moralidade e na "eticidade", englobando a família, sociedade e Estado. O Estado político é o momento mais elevado do espírito objetivo, de forma tal que o indivíduo só existe como membro do Estado, conforme afirme o filósofo em Princípios da filosofia do direito.
      A história seria, portanto, o desdobramento do espírito no tempo. A filosofia da história deve captar o movimento histórico não como momentos estanques, mas do ponto de vista da razão, do absoluto. Desse ponto de vista, a história é uma contínua evolução da ideia de liberdade, que se desenvolve segundo um plano racional.
      Assim, para Hegel, os conflitos, as guerras, as injustiças, as dominações de um povo sobre outro deveriam ser compreendidos como contradições, como momentos negativos que funcionam como mola dialética que move a história. Nos termos da dialética hegeliana, esses momentos seriam a antítese, que se contrapõe à tese, fazendo surgir uma etapa superior, que seria a síntese.
      Assim, para Hegel, como vimos antes, tudo que é real é racional, e tudo que é racional é real, todas as coisas existentes, mesmo as piores, fazem parte de um plano racional e, portanto, têm um sentido dentro do processo histórico.
      Esse conceito hegeliano recebeu inúmeras críticas, já que pode levar a um certo conformismo ou a uma passividade diante das injustiças sociais.


Contestação do sistema hegeliano
    Vários filósofos contestaram a filosofia de Hegel, de forma parcial ou em seu conjunto. Mesmo entre seus seguidores, temos os neo-hegelianos de direita e os neo-hegelianos de esquerda, que modificaram aspectos de sua filosofia de modo a adequá-la a seus projetos políticos. Veremos em seguida alguns deles.


Ludwig Feuerbach
    Entre esses contestadores, o que mais se destacou na crítica à filosofia hegeliana foi o pensador alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872), nascido na cidade alemã de Landshut. Recusando o idealismo de Hegel, Feuerbach qualificou-o de "especulação vazia", que não trata do ser real, das coisas reais e dos indivíduos concretos.
      Ao contrário do idealismo hegeliano, que se baseia em noções tão abstratas como as de ideia, espírito e razão, Feuerbach propôs que a filosofia deveria partir do concreto, do ser humano considerado como um ser natural e social. Essa sua posição filosófica, que tem como ponto de partida o ser concreto, é chamada de materialismo. Feuerbach influenciaria o pensamento inicial de Karl Marx.


Arthur Schopenhauer
    O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi o que atacou com maior veemência o pensamento hegeliano. Em sua opinião, Hegel seria um verdadeiro "charlatão", ao construir sua filosofia segundo os interesses do Estado prussiano. Isso se compreende se levarmos em conta que Hegel, ao englobar as situações históricas como desdobramento do espírito objetivo, terminava por legitimar todas as formas de governo e instituições, mesmo as mais nefastas. Desse modo, Schopenhauer se referirá a Hegel como um "acadêmico mercenário".
      Como filósofo, Schopenhauer, apesar de sua grande cultura, só teria reconhecido muito tardiamente, nos últimos anos de sua vida.
      Na obra O mundo como vontade e representação, sustenta que, como o conhecimento é uma relação na qual o objeto é percebido pelo sujeito, o ser humano não conhece as coisas como elas são, mas como podem ser percebidas e interpretadas. Nesse aspecto, faz um retorno a Kant e opõe-se à possibilidade do saber absoluto que Hegel preconizava.

Schopenhauer desenvolveu uma visão pessimista da vida, encarada como uma história de sofrimentos. Por isso, aconselhava: "é mais feliz aquele que consegue viver sem grandes sofrimentos do que o outro que vive cercado de alegrias e prazeres. [...] O tolo vive perseguindo a alegria da vida e acaba ludibriado, enquanto o sábio procura evitar o mal".

      Para Schopenhauer, porém, tudo o que o mundo inclui ou pode incluir é inevitavelmente dependente do sujeito, não existe senão para o sujeito. O mundo é representação. Isso quer dizer que, para ele, não existe uma realidade exterior absoluta e que, para existir o conhecimento do mundo, é preciso existir o sujeito.
      Dessa forma, Schopenhauer afastava-se da reflexão de Kant e iniciava sua própria filosofia. A representação do mundo seria para ele como uma "ilusão", pois o objeto conhecido é condicionado pelo sujeito. Mas, também diferentemente de Kant, admite ser possível alcançar a essência das coisas por meio do insight intuitivo, uma espécie de iluminação. Nesse processo, a arte teria grande relevância, pois a atividade estética permitiria ao ser humano a compreensão da verdade. Pela arte, o sujeito se desprenderia de sua individualidade para fundir-se no objeto, em uma entrega pura e plena. Nesse ponto, Schopenhauer seria um romântico.
      Sua filosofia, de outro ângulo, caracteriza-se por uma visão pessimista do indivíduo e da vida. Para ele, o ser humano seria essencialmente vontade, o que o levaria a desejar sempre mais, resultando em uma insatisfação constante. Essa vontade, que se expressa nas ações humanas, seria parte de uma vontade que anima todas as coisas da natureza. E, se a essência do ser humano e do mundo é essa vontade insaciável, Schopenhauer identifica aí a origem das lutas entre os indivíduos, da dor e do sofrimento.
      A história é, para esse filósofo, a história de lutas, em que a infelicidade é a norma. Temos, portanto, a recusa da concepção racionalista de história elaborada por Hegel, segundo a qual ela possui um sentimento e progride em direção a uma liberdade maior.
      Para Schopenhauer, apenas pela arte e ascese — ou seja, o abandono de si — pode o ser humano libertar-se da dor. A filosofia Schopenhaueriana inspirará as chamadas filosofias da existência.


Sören Kierkegaard
    O filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) contestou a supremacia da razão como único instrumento capaz de estabelecer a verdade, tal como Hegel havia proposto. Como pensador cristão, defendeu o conhecimento que se origina da .

Sören Kierkegaard (1838) — Desenho de Niels Kierkgaard. De acordo com Kierkegaard, a filosofia hegeliana não consegue compreender a existência do ser humano, sua angústia e seu desespero.

      Kierkegaard afirmava que a existência humana possui três dimensões:
• a dimensão estética, na qual se procura o prazer;
• a dimensão ética, na qual se vivencia o problema da liberdade e da contradição entre o prazer e o dever;
• a dimensão religiosa, marcada pela fé.
      De acordo com o filósofo, cabe ao ser humano escolher em que dimensão quer viver, já que se trata de dimensões excludentes entre si. Essas dimensões podem ser entendidas, também, como etapas pelas quais o ser humano passa durante sua existência: primeiro viria a estética, depois a ética e, por último, a religiosa, que seria a mais elevada.
      Os escritos do autor possuem grande beleza literária e tratam de temas estranhos à objetividade científica de sua época, tais como amor, sofrimento, angústia e desespero, que segundo ele não podem ser entendidos pela razão. Sua principal crítica à filosofia hegeliana deve-se ao fato de ela não levar em consideração a subjetividade humana.
      É nesse sentido que Kierkegaard influenciará as chamadas correntes irracionalistas e existencialistas, que recolocam a questão da verdade a partir do processo da existência. Para ele, nenhum sistema de pensamento consegue dar conta da experiência ampla e única da vida individual.
      Opondo-se à filosofia sistemática de Hegel e a seu caráter abstrato, Kierkegaard procurou destacar as condições específicas da existência humana e incorporá-la às reflexões filosóficas. Por isso, é normalmente considerado o "pai do existencialismo".
      Em sua obra, Kierkegaard procurou analisar os problemas da relação existencial do ser humano com o mundo, consigo mesmo e com Deus.
• A relação do ser humano com o mundo (outros seres humanos e a natureza) é denominada pela angústia. A angústia é entendida como o sentimento profundo que temos ao perceber a instabilidade de viver em um mundo de acontecimentos possíveis, sem garantia de que nossas expectativas sejam realizadas. "No possível, tudo é possível", escreve Kierkegaard. Assim, vivemos em um mundo onde são possíveis tanto a dor como o prazer, o bem como o mal, o amor como o ódio, o favorável como o desfavorável.
• A relação do ser humano consigo mesmo é marcada pela inquietação e pelo desespero. Isso ocorre por duas razões fundamentais: ou porque o ser humano nunca está plenamente satisfeito com as possibilidades que realizou, ou porque não conseguiu realizar o que pretendia, esgotando os limites do possível e fracassando diante de suas expectativas.
• A relação do ser humano com Deus seria talvez a única via para a superação da angústia e do desespero. Contudo, é marcada pelo paradoxo de ter de compreender pela fé o que é incompreensível pela razão.
Compartilhar:
← Anterior Proxima → Inicio

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens mais lidas

O QUE É CIÊNCIA - Do método científico às leis científicas

      Comecemos nossa investigação sobre a ciência buscando o significado básico dessa palavra. O termo ciência vem do latim scientia , que...