Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

EMPIRISMO - O conhecimento parte da experiência

      O desenvolvimento da ciência moderna inseriu-se em um contexto de questionamento sobre os critérios e métodos para a elaboração de um conhecimento verdadeiro.
      Por essa razão, o processo de conhecer em si mesmo passou a ser investigado e discutido intensamente por boa parte dos principais filósofos. Essa discussão concentrou-se entre os séculos XVII e XVIII. Em consequência, a Idade Moderna tornou-se o período em que se formularam algumas das principais gnosiologias, ou teorias a respeito do conhecimento, da história da filosofia.


Processo de conhecer
    As duas principais vertentes que se destacaram no início dessa discussão foram:
• a racionalista, que defendia a tese de que o conhecimento obtido pela razão (lógico-dedutivo) é mais confiável do que aquele que se obtém pela experiência sensível, desqualificando totalmente o valor da experiência no processo de conhecer a verdade;
• a empirista, que considerava que desqualificar totalmente a experiência era um erro, com base na tese de que qualquer conhecimento se origina, em última análise, da experiência.
      Algum tempo depois, em pleno Iluminismo, o filósofo alemão Immanuel Kant entraria nesse debate, realizando uma espécie de síntese das duas correntes em sua doutrina apriorista. Veremos com mais detalhe como foi o processo dessa discussão.

A menina com chapéu vermelho (1666-1667) — Jan Vermeer. Valorização da percepção dos sentidos. O pintor teria traçado a imagem projetada na câmara escura e depois copiado o padrão de luzes e sombras, de forma a alcançar uma imagem "fotográfica", fiel à impressão fornecida pela visão do próprio objeto.



Ideias inatas
    O início do debate esteve vinculado ao pensamento de René Descartes, o primeiro e principal expoente do racionalismo moderno.
      O filósofo francês dizia que o verdadeiro conhecimento das coisas externas devia ser seguido através do trabalho lógico da mente. Um de seus principais argumentos para justificar essa posição era a suposição da existência de ideias fundadoras do conhecimento, as ideias inatas.
      Trata-se de ideias que teriam nascido com o sujeito pensante e que, por isso, dispensariam a percepção de um objeto exterior para que se formassem no pensamento. Os conceitos matemáticos e a noção de Deus seriam exemplos de ideias inatas, para Descartes.
      Entre os principais defensores do inatismo no processo de conhecimento encontram-se Platão, na Antiguidade, e Santo Agostinho, na Idade Média, além do próprio Descartes, na filosofia moderna.


Reação empirista
    A filosofia cartesiana, principalmente a tese da existência de ideias inatas, provocou forte reação de vários pensadores. Estes passaram a defender a tese oposta, isto é, de que o processo de conhecimento depende sempre da experiência e dos sentidos, pelo menos como ponto de partida, em sua origem última.
      Assim surgiram diversas doutrinas modernas empiristas (essa palavra vem do grego empeiria, que significa "experiência"). Entre os principais defensores de gnosiologias empiristas encontram-se Aristóteles, na Antiguidade, e Santo Tomás de Aquino, na Idade Média, além dos pensadores que estudaremos em seguida.
      O palco inicial do empirismo moderno foi a Inglaterra. Nesse país, grande parte da burguesia, a partir do século XVII, conquistou não apenas poder econômico, mas também poder político e ideológico, impondo o fim do absolutismo monárquico, durante a Revolução Gloriosa.

Revolução Gloriosa — revolução burguesa que insistiu o parlamentarismo na Inglaterra, estabelecendo a superioridade das leis sobre as vontades dos reis e acabando com o absolutismo.

      Alguns estudiosos relacionam essa ascensão da burguesia, no plano epistemológico, ao empirismo (valorização da experiência concreta, da investigação natural) e, no plano sociopolítico, ao liberalismo (respeito à liberdade individual; fim do arbítrio dos monarcas, impondo-se limites constitucionais aos seus poderes).
      Entre os principais representantes do empirismo britânico destacam-se Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke, George Berkeley e David Hume.


Thomas Hobbes
    Thomas Hobbes (1588-1679) nasceu em Westport, Inglaterra. No período da revolução liberal inglesa, defendeu o rei Carlos I, depois decapitado, e foi obrigado a exilar-se na França, entrando em contato com o pensamento de Descartes.


Thomas Hobbes (1669) — John Michael Wright. Hobbes desenvolveu uma compreensão materialista-mecanicista da realidade. Tudo se explicaria pela relação de causa e efeito.

      O pensamento de Hobbes foi muito influenciado pelas ideias de Bacon e Galileu. Como estes, abandonou as grandes pretensões metafísicas (a busca da essência do ser) e procurou investigar as causas e propriedades das coisas. Para Hobbes, a filosofia seria a ciência dos corpos, isto é, de tudo que tem existência material. Os corpos naturais seriam estudados pela filosofia da natureza; os corpos artificiais ou Estado, pela filosofia política. E o que não é corpóreo deveria ser excluído da reflexão filosófica.


Materialismo e empirismo
    Para o filósofo inglês, toda a realidade poderia ser explicada a partir de dois elementos: o corpo, entendido como o elemento material que existe independentemente do nosso pensamento, e o movimento, que pode ser determinado matemática e geometricamente. Trata-se, portanto, de uma concepção materialista e mecanicista da realidade.
      As ideias ou pensamentos não seriam nada mais que imagens das coisas impressas na "fantasia corporal". Isso quer dizer que, para Hobbes, o processo de conhecimento inicia-se pela sensação — uma concepção empirista, como você pode perceber.
      Uma consequência dessa metafísica é que, no pensamento de Hobbes, não há lugar para o acaso e a liberdade (mudanças não condicionadas), porque os movimentos resultam necessariamente dos nexos causais que lhe dão origem.


Ética e política
    Da mesma forma, não há espaço na filosofia hobbesiana para o bem e o mal como valores universais a serem introjetados nas pessoas. Para Hobbes, o que chamamos de bem é tão-somente o que desejamos alcançar, enquanto o mal é apenas aquilo de que fugimos.
      Isso se explicaria pelo fato de que o valor fundamental para cada indivíduo seria a conservação da vida, isto é, a afirmação e o crescimento de si mesmo. Assim, segundo o filósofo, cada pessoa sempre tenderá a considerar como bem o que lhe agrada e como mal o que lhe desagrada ou ameaça.
      A pergunta que pode surgir então é a seguinte: se o bem e o mal são relativos, isto é, são determinados pelos indivíduos, como será possível a convivência entre as pessoas?
      Hobbes responde a essa questão nos livros Leviatã e Do cidadão, nos quais defende a necessidade de um poder absoluto que mantenha os indivíduos em sociedade e impeça que eles se destruam mutuamente.


John Locke
    O filósofo John Locke (1632-1704) nasceu em Wrington, Inglaterra. Durante os tempos de universidade, decepcionou-se com o aristotelismo e com a escolástica medieval, enquanto tomava contato com o pensamento de Francis Bacon e René Descartes. Problemas políticos obrigaram-no a sair de seu país, em 1975, e exilar-se na França e, posteriormente, na Holanda. Regressou à Inglaterra somente em 1688, durante a Revolução Gloriosa, que levou Guilherme de Orange ao trono da Inglaterra, e a partir de então pôde dedicar-se livremente às atividades intelectuais.

Retrato de John Locke — Sir Godfrey Kneller. Locker, um dos maiores representantes do empirismo, estudou na Universidade de Oxford. Manifestou interesse por diversos campos de estudo, como química, teologia, filosofia, mas formou-se em medicina.


Tábula rasa
    Em sua obra Ensaio acerca do entendimento humano, Locke combateu duramente a doutrina cartesiana segundo a qual o ser humano possui ideias inatas. Ao contrário de Descartes, defendeu que nossa mente, no instante do nascimento, é como uma tábula rasa.
      O substantivo tábula significa "tábua" ou "placa de madeira" ou de outro material; o adjetivo rasa quer dizer "plana, lisa". Assim, a expressão tábula rasa usada por Locke tem o significado de "tábula lisa", isto é, tábua na qual nada foi escrito nem gravado. Ao nascer, nossa mente seria como um papel em branco, sem nenhuma ideia previamente escrita.
      Locke retomava, assim, a tese empirista segundo a qual nada existe em nossa mente que não tenha sua origem nos sentidos. O filósofo defendeu que as ideias que possuímos são adquiridas ao longo da vida mediante a experiência sensível imediata e seu processamento interno. Desse modo, o conhecimento seria constituído basicamente por dois tipos de ideias:
ideias da sensação — são nossas primeiras ideias, aquelas que chegam à mente através dos sentidos, isto é, quando temos uma experiência sensorial, constituindo as sensações. Essas ideias seriam moldadas pelas qualidades próprias dos objetos externos. Por sensação Locke entende, por exemplo, as ideias de amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo, doce, etc.
ideias da reflexão — são aquelas que resultam da combinação e associação das sensações por um processo de reflexão, de tal maneira que a mente vai desenvolvendo outra série de ideias que não poderiam ser obtidas das coisas externas. Seriam ideias como "a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o raciocinar" (Locke, Ensaio acerca do entendimento humano, p. 160).
      Assim, a reflexão seria nosso "sentido interno", que se desenvolve quando a mente se debruça sobre si mesma, analisando suas próprias operações. Das ideias simples, a mente avança em direção a ideias cada vez mais complexas. Porém, para Locke, de qualquer maneira a mente sempre tem "as coisas materiais externas, como objeto de sensação, e as operações de nossas próprias mentes, como objeto da reflexão" (Ensaio acerca do entendimento humano, p. 160).
      O filósofo admitia, no entanto, que nem todo conhecimento limita-se, exclusivamente, à experiência sensível. Considerava, por exemplo, o conhecimento matemático válido em termos lógicos, embora não tivesse como base a experiência sensível. Nesse sentido, Locke não era um empirista radical.


Crítica ao absolutismo
    Analisando o filósofo e o homem político, podemos dizer que Locke, de certa maneira, "transportou" suas teorias sobre o conhecimento humano para o campo sociopolítico. Para ele, assim como não existem ideias inatas, também não deveria existir poder inato (ou de origem divina), como defendiam os adeptos do absolutismo monárquico.
      Revelando sua preocupação em proteger a liberdade do cidadão, defendia que o poder social deveria nascer de um pacto entre as pessoas. Por sua vez, as leis deveriam expressar as normas estabelecidas pela própria comunidade, que, através do mútuo consentimento dos indivíduos, escolheria a forma de governo considerada mais conveniente ao bem comum.

"A única maneira pela qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se numa comunidade para viverem com segurança, conforto e paz." (Locke, Segundo tratado sobre o governo, p. 71).

      Adversário da tirania, do abuso do poder, Locke, em razão de suas ideias políticas, é apontado por muitos historiadores como o "pai do Iluminismo". Seu pensamento exerceu profunda influência na fundamentação ideológica da democracia liberal burguesa, contribuindo para a difusão de valores iluministas como a tolerância religiosa, o respeito pela liberdade individual, a expansão do sistema educacional e a livre-iniciativa econômica.


George Berkeley
    George Berkeley (1685-1753) nasceu em Kilkenny, Irlanda do Sul. Despertou para a filosofia bastante jovem, impressionado pela leitura de pensadores como Locke, Newton e Descartes. Em 1710, aos 25 anos, publicou o Tratado sobre os princípios do conhecimento humano.

George Berkeley — Artista anônimo. Berkeley desenvolveu um empirismo radical: afirmou não só que todo conhecimento provém dos sentidos, como os demais empiristas, mas também que todos os seres existentes reduzem-se à percepção que temos deles.

      Nessa obra, defende a tese de que todo o nosso conhecimento do mundo exterior resume-se àquilo que captamos pelos sentidos. Pode parecer, portanto, mais uma tese empirista como as anteriores. Sua originalidade consiste, porém, em afirmar também que a existência das coisas nada mais é do que a percepção que temos dessa existência. Ou, em suas próprias palavras: "Ser é perceber e ser percebido".


Imaterialidade do mundo
    Isso significa que toda a realidade depende da ideia que fazemos dela. Desse modo, Berkeley nega a existência da matéria como algo independente da mente: "O que os olhos veem e as mãos tocam existe; existe realmente, não o nego. Só nego o que os filósofos chamam matéria ou substância corpórea" (Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, p. 19).
      Ou seja, apesar de seu empirismo em termos gnosiológicos, Berkeley, como homem religioso que era (foi bispo da Igreja anglicana), defendeu a imaterialidade do mundo em termos ontológicos.
      Ao levar seu empirismo às últimas consequências, deslizou para um idealismo imaterialista, defendendo a concepção de que tudo o que existe consiste nos sujeitos com suas experiências e percepções.
      Para evitar cair no solipsismo (que é a concepção segundo a qual tudo o que existe no mundo resume-se ao eu e sua própria consciência) e no total subjetivismo, defendeu a existência de uma mente cósmica, representada por Deus.
      Segundo o filósofo, Deus percebe, de modo absoluto, a existência de todos os seres, coordenando as distintas percepções elaboradas pelos sujeitos. Essa mente cósmica de Deus garante e sustenta a existência dos seres que experimentamos como "seres percebidos". Assim, o mundo nada mais seria do que uma relação entre Deus e os espíritos humanos.


David Hume
    David Hume (1711-1776) nasceu em Edimburgo, Escócia. Estudou filosofia, direito e comércio, ocupando importante posição na diplomacia inglesa. Realizou diversas viagens a países europeus, como França e Áustria, estabelecendo contato com grandes pensadores da época, entre eles Adam Smith e Jean-Jacques Rousseau.

David Hume (1766) — Allan Ramsay. Apesar de viver em um ambiente caracterizado pela religiosidade, Hume era ateu. E, curiosamente, talvez por seu acentuado ceticismo e espírito investigador, escreveu História natural da religião (1757), considerada por alguns estudiosos a primeira obra científica sobre a sociologia da religião.

      Na obra Investigação acerca do entendimento humano, Hume formulou outra teoria empirista. Dividiu, primeiramente, tudo aquilo que percebemos em:
impressões — referem-se aos dados fornecidos pelos sentidos, como as impressões visuais, auditivas, táteis;
ideias — referem-se às representações mentais (memória, imaginação etc). derivadas das impressões.
      Assim, toda ideia é uma re(a)presentação de alguma impressão. Essa representação pode possuir diferentes graus de fidelidade. E alguém que nunca teve uma impressão visual — um cego de nascença, por exemplo — jamais poderá ter uma ideia de cor, nem mesmo uma ideia pouco fiel.


Crítica à indução
    A indução ou raciocínio indutivo vai do particular para o geral. As conclusões indutivas são produzidas, assim, pelo seguinte processo mental: partindo de percepções repetidas que nos chegam da experiência sensorial, saltamos para uma conclusão geral, da qual não temos experiência sensorial.
      Hume argumentou que a conclusão indutiva, por maior que seja o número de percepções repetidas do mesmo fato, não possui fundamento lógico. Será sempre um salto do raciocínio impulsionado pela crença ou hábito, isto é, as reiteradas percepções de um fato nos levam a confiar em aquilo que se repetiu até hoje irá se repetir amanhã. Assim, por exemplo, cremos que o Sol nascerá amanhã porque até hoje ele sempre nasceu. Mas, em termos lógicos, nada pode garantir essa certeza.
      Para Hume, somente o raciocínio indutivo utilizado na matemática fundamenta-se em uma lógica racional:

"As proposições deste gênero podem descobrir-se pela simples operação do pensamento e não dependem de algo existente em alguma parte do universo. Embora nunca tenha havido na natureza um círculo ou um triângulo, as verdades demonstradas por Euclides conservarão sempre sua certeza e evidência." (Investigação do entendimento humano, p. 77).


Legado epistemológico
    Ao questionar a verdade lógica do raciocínio indutivo, a obra de Hume legou um importante problema para os teóricos do conhecimento (epistemologistas). Afinal, é ou não possível partir de experiências particulares para chegar a conclusões gerais, representadas pelas leis científicas?
      Enquanto o senso comum acredita que por meio de observações repetidas, realizadas no passado, podemos justificar nossas expectativas futuras, Hume sustentou que a repetição de um fato não nos permite concluir, em termos lógicos, que ele continuará a se repetir da mesma forma, indefinidamente.
      Desse modo, o filósofo revelou um ceticismo teórico, pois, para ele, o conhecimento científico — que ostenta a bandeira da mais pura racionalidade — também está ancorado em bases não racionais, como a crença e o hábito intelectual.
      Isso significa que, desconfiando das posições arraigadas pela força do hábito, o cientista deveria apresentar suas teses como probabilidades, e não como certezas irrefutáveis. Tal atitude epistemológica, estendida ao convívio social, tornaria os indivíduos mais tolerantes, democráticos e abertos.
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