Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

ILUMINISMO - A razão em busca de liberdade

    A expansão capitalista dos séculos XVII e XVIII foi acompanhada pela crescente ascensão social da burguesia e sua tomada de consciência como classe social. Paralelamente, o racionalismo imperava na Europa, transmitindo a confiança de que a razão era o principal instrumento do ser humano para enfrentar os desafios da vida e equacionar os problemas que o rodeavam.
     O desenvolvimento da Revolução Industrial e o sucesso da ciência em campos como a química, a física e a matemática inspiravam filósofos de todas as partes. Foi assim que surgiu talvez um novo mito: a ideia de progresso.

Revolução Industrial — complexo de transformações socioeconômicas que alterou a vida de sociedades da Europa ocidental e outras regiões do mundo a partir de meados do século XVIII e ao longo do século XIX.


Aquarela de Carmontelle. Durante o século XVIII, as ciências experimentais eram uma das paixões de nobres e burgueses franceses.

      Desse modo, disseminou-se a crença de que a razão, a ciência e a tecnologia tinham condições de impulsionar o trem da história em uma marcha contínua em direção à verdade e ao progresso humano.

      Paralelamente, desenvolveu-se um pensamento que culminaria no movimento cultural do século XVIII denominado Iluminismo, Ilustração ou Filosofia das luzes.

A família burguesa, nascida no século XVIII, rompeu com os padrões familiares da época e estabeleceu novos papéis para seus membros, entre eles a autoridade indiscutível do pai de família.

Filosofia nas ruas e salões
    O Iluminismo não foi um movimento coeso e uniforme. Por isso, não podemos rotular todos os pensadores iluministas como "ideólogos da burguesia". Muitos dentre eles defendiam a aristocracia. No entanto, em meio a essa pluralidade de pensadores, havia um traço comum: a busca pelo convencimento racional das pessoas.
      A própria postura de muitos filósofos modificou-se no século XVIII. Abandonando os círculos fechados de seus antecessores, os iluministas circulavam pelas ruas e salões, exibindo e exercitando a razão. Para esses filósofos propagandistas, como escreveu o pensador alemão Ernst Cassirer (1874-1945), "a razão não era o cofre da alma, mas era a força espiritual, a energia, capaz de nos conduzir ao caminho da verdade" (Filosofia de la ilustración, p. 21).
      O iluminismo enfatizou a capacidade humana de, pelo uso da razão, conhecer a realidade e intervir nela, no sentido de organizá-la racionalmente, de modo a assegurar uma vida melhor para as pessoas. O processo de ilustração, isto é, o desenvolvimento da capacidade intelectual, trazia a proposta de libertar o ser humano dos medos irracionais, superstições e crendices, levando-o a questionar as tradições vulgares e a construir uma nova ordem racional para a sociedade.
      Podemos dizer, enfim, que o grande mérito dos iluministas teria sido o esforço de generalizar e aplicar as doutrinas críticas e analíticas aos diversos campos da atividade humana, bem como os ideais de conhecimento forjados no grande racionalismo (o racionalismo do século XVII).
      Vejamos alguns indicadores dessa nova mentalidade (cf. Fortes, O iluminismo e os reis filósofos, p. 20):
 estudo da natureza e ser humano — a atenção dos intelectuais volta-se para o mundo terreno, concreto, e, dentro dele, para o estudo do próprio ser humano;
história — os estudos históricos ganham expressão. Percebe-se que o conjunto dos conhecimentos adquiridos no passado pode ser colocado a serviço do bem-estar social;
progresso — o entusiamo pelas novas descobertas tem como consequência a crença em um novo ideal, a ideia de progresso.
      A seguir, veremos alguns pensadores representativos do Iluminismo.


Montesquieu
    O jurista francês Charles-Louis de Secondat, mais conhecido como barão de Montesquieu (1689-1755), escreveu O espírito das leis. Nessa obra, formula a teoria da separação dos poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judiciário, como forma de evitar abusos dos governantes e de proteger as liberdades individuais.

Detalhe do retrato de Montesquieu, 1728 — Escola Francesa. Para o filósofo, todo indivíduo investido de poder é tentado a abusar dele.

      Montesquieu não defendia a implantação de uma república burguesa. Suas simpatias políticas inclinavam-se para um liberalismo aristocrático, uma monarquia constitucional. Dizia que "a lei é uma relação necessária que decorre da natureza das coisas". E ainda que haveria grandes riscos de tirania "se uma mesma pessoa — ou uma mesma instituição do Estado — exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de ordenar a sua execução e o de julgar os conflitos entre os cidadãos" (O espírito das leis, p. 168).


Voltaire
    O poeta, dramaturgo e filósofo francês François-Marie Arouet, de pseudônimo Voltaire (1694-1778), foi um dos mais famosos pensadores do Iluminismo. Com seu estilo literário irônico e vibrante, destacou-se pelas críticas que fez à prepotência dos poderosos, ao clero católico e à intolerância religiosa. Concordava, entretanto, com certa necessidade social da crença em Deus, chegando a dizer que se Deus não existisse seria preciso inventá-lo.

Detalhe de retrato de Voltaire (1728) — Maurice Quentin de la Tour. Segundo Voltaire, um indivíduo deve ser julgado mais por suas perguntas do que por suas respostas. Como bom filósofo, ele valoriza, nessa afirmação, o ato de perguntar.

      Em termos políticos, não foi propriamente um democrata, mas sim defensor de uma monarquia respeitadora das liberdades individuais, governada por um soberano esclarecido.
      Tornou-se marcante sua posição em defesa da liberdade de pensamento, expressa na célebre frase: "Posso não concordar com nenhuma das palavras que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-las".


Diderot e D'Alembert
    Os pensadores franceses Denis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond D'Alembert (1717-1783) foram os organizadores de uma enciclopédia de 33 volumes, que pretendia resumir os principais conhecimentos da época nos campos científico e filosófico. Essa obra contou com a colaboração de numerosos autores, entre os quais se destacam Buffon, Montesquieu, Turgot, Condorcet, Voltaire, Holbach e Rousseau.
      A Enciclopédia exerceu grande influência sobre o pensamento político burguês. Defendia, em linhas gerais, o racionalismo, a independência do Estado em relação à Igreja e a confiança no progresso humano por meio das realizações científicas e tecnológicas.
      Diderot é considerado por muitos a principal figura da Enciclopédia. Rompeu com a teologia tradicional, assumindo-se como ateu e materialista. No texto seguinte, expressa esse materialista:

"Se é que podemos acreditar que veremos quando não tivermos olhos;
Que ouviremos quando não tivermos mais ouvidos;
Que pensaremos quando não tivermos mais cabeça;
Que sentiremos quando não tivermos mais coração;
Que existiremos quando não estivermos em parte alguma,
Então consisto."
Ou seja, se é possível acreditar em tamanhos absurdos, então consisto que há algo além da matéria. Tudo é matéria, pensa Diderot, e a matéria é a existência do real. (Diderot, A entrevista do filósofo com a marechala de..., citado em Fortes, O iluminismo e os reis filósofos, p. 56).


Rousseau
    O filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi uma figura de transição do Iluminismo. Apesar de defender a liberdade e combater os vícios sociais, criticava os excessos racionalistas, sendo um precursor do Romantismo.

Detalhe do retrato de Jean-Jacques Rousseau (século XVIII) — Escola Francesa. Para Rousseau, a razão forma o ser humano e o sentido o conduz.

      Foi na França, para onde se transferiu em 1742, que escreveu suas grandes obras. Entre elas podemos destacar Do contrato social, na qual expõe a tese de que o soberano deve conduzir o Estado segundo a vontade geral de seu povo, sempre tendo em vista o atendimento do bem comum. Somente esse Estado, de bases democráticas, teria condições de oferecer a todos os cidadãos um regime de igualdade jurídica.
      Em outra de suas importantes obras, Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, Rousseau glorifica os valores da vida natural e ataca a corrupção, a avareza e os vícios da sociedade civilizada. Faz inúmeros elogios à liberdade de que desfrutava o selvagem, na pureza do seu estado natural, contrapondo-o à falsidade e ao artificialismo do indivíduo civilizado. Foi dessas ideias que nasceu o mito do bom selvagem.
      Rousseau tornou-se célebre como defensor da pequena burguesia e inspirador dos ideais que estariam presentes na Revolução Francesa.


Adam Smith
    O economista e filósofo escocês Adam Smith (1723-1790) foi um dos maiores expoentes da economia clássica e o principal teórico do liberalismo econômico. Em sua obra Ensaio sobre a riqueza das nações, criticou a política mercantilista, baseada na intervenção e regulamentação excessiva do Estado na vida econômica.

Adam Smith (1790). Para o filósofo, a riqueza de uma nação mede-se pela riqueza do povo, não pela dos príncipes.

      Para ele, a economia deveria ser dirigida pelo jogo livre da oferta e da procura de mercado. O mercado se autorregularia, dando conta das necessidades sociais, desde que deixado em paz consigo mesmo, sem intervenções dos governantes.
      Adam Smith também defendeu a tese de que o trabalho em geral representa a verdadeira fonte de riqueza para as nações, devendo ser conduzido pela livre iniciativa dos particulares.
      De certo modo, suas teses são também produto da crença geral iluminista no triunfo da racionalidade e da ordem sobre o arbítrio e o caos, desde que as pessoas possam agir com liberdade social — no caso, liberdade econômica.


Immanuel Kant
    Nascido em Königsberg, pequena cidade da Alemanha, Immanuel Kant (1724-1804) teve uma vida longa e tranquila, dedicada ao ensino e à investigação filosófica. Homem metódico e de hábitos arraigados, lecionou durante 40 anos na Univeridade de Königsberg. Morreu aos 80 anos, sem nunca ter se afastado das imediações de sua pequena cidade natal.

Retrato de Immanuel Kant (c. 1790) — Artista anônimo. Parece que Kant foi em sua vida prática um homem tão metódico como em sua vida intelectual. Conta-se que se deitava e se levantava rigorosamente no mesmo horário, além de seguir sempre o mesmo itinerário entre sua casa e a universidade.

      Kant é considerado o maior filósofo do Iluminismo alemão. Para ele, a filosofia deveria responder a quatro questões fundamentais: O que posso saber? Como devo agir? O que posso esperar? E, por fim, o que é o ser humano? Esta última questão engloba as três anteriores.


Maioridade humana
    Em sua obra O que é ilustração, Kant sintetiza seu otimismo iluminista em relação à possibilidade de o ser humano guiar-se por sua própria razão, sem se deixar enganar pelas crenças, tradições e opiniões alheias.
      Nela, descreve o processo de ilustração como sendo a saída do ser humano de sua "menoridade", ou seja, um momento em que o indivíduo, como uma criança que cresce e amadurece, torna-se consciente da força e independência (autonomia) de sua inteligência para fundamentar sua própria maneira de agir, sem a doutrinação ou tutela de outrem.
      Portanto, o ser humano, como ser dotado de razão e liberdade, é o centro da filosofia kantiana. Seus estudos partem da investigação sobre as condições nas quais se dá o conhecimento, realizando um exame crítico da razão, contido em sua obra mais célebre, Crítica da razão pura. Nela confessa que Hume o havia despertado, pela primeira vez, de seu "sonho dogmático" e institui o que ficou conhecido como "tribunal da razão".
      Depois, seu exame do agir humano (ética) daria origem aos textos Crítica da razão prática, Fundamentação da metafísica dos costumes e Metafísica dos costumes. Outro aspecto importante da obra de Kant são suas reflexões a respeito da estética, presentes na Crítica do juízo.


Tipos de conhecimento
    Como já dissemos, uma das questões mais importantes do pensamento de Kant é o problema do conhecimento, a questão do saber. Na Crítica da razão pura, ele distingue duas formas básicas do ato de conhecer:
conhecimento empírico (a posteriori) — aquele que se refere aos dados fornecidos pelos sentidos, isto é, que é posterior à experiência. Por exemplo, para fazer a afirmação "Este livro tem a capa verde", foi necessário ter primeiro a experiência de ver o livro e assim conhecer a sua cor; portanto, trata-se de um conhecimento posterior à experiência;
conhecimento puro (a priori) — aquele que não depende de quaisquer dados dos sentidos, ou seja, que é anterior à experiência, nascendo puramente de uma operação racional. Exemplo: a afirmação (juízo) "Duas linhas paralelas jamais se encontram no espaço" não se refere a esta ou àquela linha paralela, mas a todas. Constitui, assim, um conhecimento universal. Além disso, é uma afirmação que, para ser válida, não depende de nenhuma condição específica. Trata-se, portanto, de um conhecimento necessário.


Tipos de juízo
    O conhecimento puro, por conseguinte, conduz a juízos universais e necessários, enquanto o conhecimento empírico não possui essa característica. Os juízos, por sua vez, são classificados por Kant em dois tipos:
juízo analítico — aquele em que o predicado já está contido no conceito do sujeito. Ou seja, basta analisar o sujeito para deduzir o predicado. Tomemos, por exemplo, a afirmação "O quadrado tem quatro lados". Analisando o sujeito dessa afirmação, quadrado, deduzimos necessariamente o predicado: tem quatro lados. Kant também chamava os juízos analíticos de juízos de elucidação, pois o predicado simplesmente elucida algo que já estava contido no conceito do sujeito.
juízo sintético — aquele em que o predicado não está contido no conceito do sujeito. Nesses juízos, acrescenta-se ao sujeito algo de novo, que é o predicado. Assim, os juízos sintéticos enriquecem nossas informações e ampliam o conhecimento. Por isso, Kant também os denominava juízos de ampliação. Por exemplo, na afirmação "Os corpos se movimentam", por mais que analisemos o conceito corpo (sujeito), não extrairemos dele a informação representada pelo predicado se movimentam.
      Por fim, analisando o valor de cada juízo, Kant distingue três categorias:
juízo analítico — como no exemplo da afirmação "O quadrado tem quatro lados", é um juízo universal e necessário, mas serve apenas para elucidar ou explicitar aquilo que já se conhece do sujeito. Ou seja, a rigor, é apenas importante para se chegar à clareza do conceito já existente, mas não conduz a conhecimentos novos;
juízo sintético a posteriori — como no exemplo da afirmação "Este livro tem a capa verde", amplia o conhecimento sobre o sujeito, mas sua validade está sempre condicionada ao tempo e ao espaço em que se dá a experiência e, portanto, não constitui um juízo universal e necessário;
juízo sintético a priori — como no exemplo da afirmação "Duas linhas paralelas jamais se encontram no espaço", e em outras da matemática e da geometria, acrescenta informações novas ao sujeito, possibilitando uma ampliação do conhecimento. E como não está limitado pela experiência, é um juízo universal e necessário. Por isso, segundo Kant, é o juízo mais importante. Para o filósofo, a matemática e a física seriam disciplinas científicas por trabalharem com juízos sintéticos a priori.


Estruturas do sentir e conhecer
    Kant buscou saber como é o sujeito a priori, isto é, o sujeito antes de qualquer experiência. Concluiu que existem no ser humano certas estruturas que possibilitam a experiência (as formas a priori da sensibilidade) e determinam o entendimento (as formas a priori do entendimento). Trata-se do chamado apriorismo. Vejamos:
formas a priori da sensibilidade — são o tempo e o espaço. Kant dirá que percebemos e representamos a realidade sempre no tempo e no espaço. Essas noções são "intuições puras", existem como estruturas básicas na nossa sensibilidade e são elas que permitem a experiência sensorial.
formas a priori do entendimento — de modo semelhante, os dados captados pela nossa sensibilidade são organizados pelo entendimento de acordo com certas categorias. As categorias são "conceitos puros" existentes a priori no entendimento, tais como causa, necessidade, relação e outros, que servirão de base para a emissão de juízos sobre a realidade.


Limites do entendimento
    O conhecimento, portanto, seria o resultado de uma interação entre o sujeito que conhece (de acordo com suas próprias estruturas a priori) e o objeto conhecido. Isso significa que não conhecemos as coisas em si mesmas (o ser em si), isto é, como elas são, de forma independente de nós. Só conhecemos as coisas tal como as percebemos (o ser para nós). Em outras palavras, as coisas são conhecidas de acordo com nossas próprias estruturas mentais.
      Para Kant, sua filosofia representava uma superação do racionalismo e do empirismo, pois argumentava que o conhecimento é o resultado de dois grandes ramos: a sensibilidade, que nos oferece dados dos objetos, e o entendimento, que determina as condições pelas quais o objeto é pensado.


Nova revolução copernicana
    No prefácio da Crítica da razão pura, o próprio Kant comparou seu papel na filosofia ao de Copérnico na astronomia.
      Quando a teoria geocêntrica não mais conseguia explicar o conjunto de movimentos dos atros, Copérnico vislumbrou a necessidade de tirar a Terra do centro do Universo e fazer-nos, como espectadores, girar em torno dos astros. Assim, lançando o modelo heliocêntrico, resolveu os impasses da astronomia da época.
      Algo semelhante realizou o filósofo alemão, ao inverter a questão tradicional do conhecimento: antes se propunha que todo o conhecimento era regulado pelos objetos; com Kant, os objetos passaram a ser regulados pelas formas a priori de nosso conhecimento.

Perspicácia (Autoretrato, 1936) — René Magritte (Coleção particular). De acordo com a teoria kantiana, as coisas existem para nós não como são, mas como as percebemos.


Sugestões de filmes

Amadeus (1984, EUA, direção de Milos Forman)
      Filme que retrata a vida do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) nas cortes europeias do século XVIII.

Danton — O processo da revolução (1982, França/Polônia, direção de Andrzej Wajda)
      Visão da Revolução Francesa a partir da ótica liberalizante de Danton contra as posições mais radicais de Robespierre.
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