Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

O projeto político de Platão

      Neste texto teremos a interpretação do especialista brasileiro em literatura grega Donaldo Schüller sobre as ideias centrais do filósofo aplicadas à vida política.

      "Inimigo da democracia foi Platão, o maior dos discípulos de Sócrates. Em A República, apresenta-nos um Estado ideal desenvolvido a partir da constituição militarista de Esparta.


A organização social e política
    Divide o Estado em três classes: os governantes, o exército e o povo.
      Esta última classe (formada por artesãos, agricultores, comerciantes, profissionais liberais e escravos) não lhe merece o menor respeito. Totalmente excluídos do governo, devem curvar-se às leis que lhe são impostas. Nem lhes cabe buscar consolo na região dos antepassados. Criada pelo Estado, a religião comparece como poderoso instrumento de domínio bem como a literatura e as artes. Embora duramente reprimido, compete ao povo suprir o Estado da produção pastoril, agrícola e industrial.
      Aos incorporados no exército são negados quaisquer direitos privados. Não podem ser proprietários, não podem constituir família e o Estado controla as horas de lazer. A união sexual tem como finalidade única a procriação, sendo os casais e a data das conjunções determinadas pelo Estado por critérios políticos e de eugenia. A educação começa desde a infância e é, em todas as etapas, controlada pelo Estado para os interesses deste e não do indivíduo. Também o exército permanece excluído do governo. Velar pela segurança externa e interna é a sua única função. A admissão da mulher no exército e na educação, que poderia ser considerada um progresso, visa, contudo, aos exclusivos interesses do Estado.
      A classe dos governantes é constituída pelos filósofos, recrutados entre os militares, depois dos cinquenta anos. Únicos detentores da verdade, compete-lhes legislar autoritariamente o Estado sem vigilância de outra classe. Já que os conteúdos metafísicos aos quais devem adequar as leis lhes são minuciosamente prescritos, suspeitamos que já não lhes cabe o nome de filósofos a eles atribuído. Se tomamos Sócrates como protótipo de filósofo, os governantes da República, presos a um sistema preconcebido e rígido, não se parecem nada com ele. Assemelham-se antes a sacerdotes de uma religião secreta, dogmaticamente elaborada pelo fundador.


Analogia entre a psique e o Estado
    Platão localiza na psique três seções correspondentes à divisão do Estado: a razão, a vontade e as paixões. Cabe à razão descobrir as leis que regem o homem, a tarefa da vontade é executá-las, espera-se que as paixões as cumpram. A vontade regida pelas paixões leva a desmandos semelhantes aos que ocorrem no Estado governado pelo povo.
      Como se vê, os mesmos motivos que requerem um Estado autoritário submetem o corpo ao imperativo da razão. O homem é cópia do Estado a que está subordinado.
      Esta política e esta psicologia expelem da República os poetas, cultores dos sentimentos. Como poderia tolerá-los quem organiza um Estado aristocrático que recorre à razão para dominar? Não adira que as simpatias caiam sobre a poesia marcial de Tirteu.

Tirteu — poeta lírico grego que viveu no século VII a.C. Segundo a tradição, incentivou com seus cânticos de guerra os soldados espartanos, influenciando sua vitória nas lutas contra os mecênios.


O mito da caverna
    Boa ilustração do sistema platônico vê-se no 'mito da caverna'. Imaginem-se escravos algemados desde sempre com o rosto voltado para o fundo da caverna. O sol que brilha fora projeta sobre a superfície rochosa as sombras dos que passam pela abertura. Os escravos, por não terem tido outro contato com a realidade senão as sombras moventes, não admitem a existência de outros seres além destes. Ocorre que um dos escravos se liberta e busca a luminosidade exterior. No primeiro instante, os raios do sol o cegam. Habituando-se, porém, à luz, percebe o mundo verdadeiro de quem apenas conhecia as sombras, tidas como reais. A alegria da descoberta o faz retornar à prisão para denunciar o mundo de ilusões em que todos vivem. Os companheiros, tomando-o como insolente, o matam ofendidos.
      Na alegoria platônica, a caverna sombria é o nosso mundo cotidiano percebido pelos sentidos. O sol é a luz da verdade a iluminar essências eternas (as ideias) de que apenas percebemos sombras móveis. Libertar-nos das impressões sensoriais, para vermos as coisas como realmente são, é tarefa dos filósofos. A turba ignara e revoltada, preferindo a ilusão dos sentidos à luz da verdade, silencia os arautos da suprema sabedoria.

      A imagem do homem comum não poderia ser mais negra."


Schüller, Literatura grega, p. 77-79; intertítulos criados pelos autores.


1. Platão, em A República, divide o Estado em três classes: os governantes, o exército e o povo. Caracterize o papel de cada uma dessas classes, segundo a interpretação de Donaldo Schüller.

2. Conforme a teoria política de Platão, os elementos psíquicos razão, vontade e paixão correspondem, respectivamente, a que classes sociais? Em sua opinião, é possível estabelecer alguma correlação com a sociedade atual?

3. No mito da caverna, qual a imagem que Platão faz do povo em geral, na interpretação de Schüller? Discuta se essa concepção poderia ser aplicada à atualidade.
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