Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

As ideias e a realidade histórica

      Neste texto faremos uma interpretação da filósofa brasileira Marilena Chauí sobre o conteúdo ideológico da teoria das quatro causas, de Aristóteles.


As quatro causas
    "A teoria aristotélica das quatro causas, tal como foi recolhida e conservada pelos pensadores medievais, é uma das explicações encontradas pelos filósofos para dar conta do problema do movimento. [...] Haveria, então, uma causa material (a matéria de que um corpo é constituído, como, por exemplo, a madeira, que seria a causa material da mesa), a causa formal (a forma que a matéria possui para constituir um corpo determinado, como, por exemplo, a forma da mesa, que seria a causa formal da madeira), a causa motriz ou eficiente (a ação ou operação que faz com que uma matéria passe a ter uma determinada forma, como, por exemplo, quando o marceneiro fabrica a mesa) e, por último, a causa final (o motivo ou a razão pela qual uma determinada matéria passou a ter uma determinada forma, como, por exemplo, a mesa feita para servir como altar em um templo). Assim, as diferentes relações entre as quatro causas explicam tudo que existe, o modo como existe e se altera, e  fim ou motivo para o qual existe.


Hierarquia das causas
    Um aspecto fundamental dessa teoria da causalidade consiste no fato de que as quatro causas não possuem o mesmo valor, isto é, são concebidas como hierarquizadas, indo da causa mais inferior à causa superior. Nessa hierarquia, a causa menos valiosa ou menos importante é a causa eficiente (a operação de fazer a causa material receber a causa formal, ou seja, o fabricar natural ou humano) e a causa mais valiosa ou mais importante é a causa final (o motivo ou finalidade da existência de alguma coisa).
      À primeira vista, essa teoria é uma pura concepção metafísica que serve para explicar de modo coerente e objetivo os fenômenos naturais (física) e os fenômenos humanos (ética, política e técnica). Nada parece indicar a menor relação entre a explicação causal do universo e a realidade social grega. Sabemos, porém, que a sociedade grega é escravagista e que a sociedade medieval se baseia na servidão, isto é, são sociedades que distinguem radicalmente os homens em superiores — os homens livres, que são cidadãos, na Grécia, e senhores feudais, na Europa medieval — e inferiores — os escravos, na Grécia, e os servos da gleba, na Idade Média.


Relação das causas com a divisão social
    Mas, o que teria a concepção da causalidade a ver com tal divisão social? Muita coisa. Se tomarmos o cidadão ou o senhor e indagarmos a qual das causas ele corresponde, veremos que corresponde à causa final, isto é, o fim ou o motivo pelo qual alguma coisa existe é o usuário dessa coisa, aquele que ordenou sua fabricação (por isso, na teologia cristã, Deus é considerado a causa final do universo, que existe "para Sua maior glória e honra"). Em outras palavras, a causa final está vinculada à ideia do uso e este depende da vontade de quem ordena a produção de alguma coisa. Se, por outro lado, indagarmos a que causa corresponde o escravo ou o servo, veremos que corresponde à causa motriz ou eficiente, isto é, ao trabalho graças ao qual uma certa matéria receberá uma certa forma para servir ao uso ou ao desejo do senhor. Compreende-se, então, por que a metafísica das quatro causas considera a causa final superior à eficiente, que se encontra inteiramente subordinada à primeira. Não só no plano da Natureza e do sobrenatural, mas também no plano humano ou social o trabalho aparece como elemento secundário ou inferior, a fabricação sendo menos importante do que seu fim. A causa eficiente é um simples meio ou instrumento.


Conteúdo ideológico da teoria da causalidade
    Temos, portanto, uma teoria geral para a explicação da realidade e de suas transformações que, na verdade, é a transposição involuntária para o plano das ideias de relações sociais muito determinadas. Quando o teórico elabora sua teoria, evidentemente não pensa estar realizando essa transposição, mas julga estar produzindo ideias verdadeiras que nada devem à existência histórica e social do pensador. Até pelo contrário, o pensador julga que com essas ideias poderá explicar a própria sociedade em que vive. Um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as ideias como independentes da realidade histórica e social, de modo a fazer com que tais ideias expliquem aquela realidade, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as ideias elaboradas."

Chauí, O que é ideologia, p. 8-10; inter-títulos criados pelos autores.


Os reis filósofos
    "Sócrates — Aliás, Glauco, nota que não seremos culpados de injustiça para com os filósofos que se formarem entre nós, mas teremos justas razões a apresentar-lhes, forçando-os a encarregar-se da orientação e da guarda dos outros. Diremos a eles: 'Nas outras cidades, é natural que aqueles que se tornaram filósofos não participem nos trabalhos da vida pública, visto que se formaram a si mesmos, apesar do governo dessas cidades; ora, é justo que aquele que se forma a si mesmo e não deve seu sustento a ninguém não queira pagar o preço disso a quem quer que seja. Mas vós fostes formados por nós, tanto no interesse do Estado como no vosso, para serdes o que são: os reis nas colmeias; demos-vos uma educação melhor e mais perfeita que a desses filósofos e tornamo-vos mais capazes de aliar a condução dos negócios ao estudo da filosofia. Por isso, é preciso que desçais, cada um por sua vez, à morada comum e vos acostumeis às trevas que aí reinam; quando vos tiverdes familiarizando com elas, vereis mil vezes melhor que os habitantes desse lugar e conhecereis a natureza de cada imagem e de que objeto ela é a imagem, porque tereis contemplando verdadeiramente o belo, o justo e o bem. Assim, o governo desta cidade, que é a vossa e a nossa, será uma realidade, e não apenas um sonho, como o das cidades atuais, onde os chefes se batem por sombras e disputam a autoridade, que consideram um grande bem; a verdade é esta: a cidade onde os que devem mandar são os menos apressados na busca do poder é a mais bem governada e a menos sujeita à sedição, e aquela onde os chefes revelam disposições contrárias está ela mesma numa situação contrária'."

Platão, A República, p. 231-232.


1. Caracterize a vinculação apontada no primeiro texto, de Marilena Chauí, entre a teoria da causalidade aristotélica e as relações sociais preponderantes na Grécia antiga.

2. Por que, segundo essa autora, a teoria aristotélica da causalidade é ideológica? Comente.


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