A seguir, temos o trecho de um artigo, publicado em um jornal paulista, no qual o autor relaciona um aspecto da fala informal com um tema tratado nesta postagem. Leia-o com atenção e responda às questões propostas.
"— Davi-ê, vem ver eu jogar no computador! Agora eu já consigo passar para a fase duas.
— Ian-(h)ê, a mamãe tá chamando para almoçar!
Essas são frases típicas de meus filhos gêmeos, Ian e David, agora com quatro anos e meio. Já há alguns meses venho prestando atenção no 'ê' que eles pospõem aos próprios nomes quando chamam um ao outro. Até procurei hipóteses alternativas, mas estou cada vez mais convicto de que esse 'ê' por eles utilizado marca um vocativo, um caso de declinação que se perdeu no português. Prova-o o fato de que a intrigante letrinha desaparece em estruturas nas quais o nome próprio se torna sujeito ou objeto, como: — O David me mordeu. Ou — Papai-ê, briga com o Ian que ele me bateu.
O que me chama a atenção aqui é que eles não deveriam ter a menor noção do que seja uma declinação. Eu juro que nunca tentei ensinar-lhes latim ou grego clássico, línguas que preservam a característica de alterar a 'terminação' dos nomes dependendo da função sintática que desempenhem na sentença [...].
Ainda que não o saibam, os meninos não só estão pensando gramaticalmente como ainda resgataram de forma intuitiva uma distinção da qual no português só ficaram resquícios. Tal experiência reforçou ainda mais minhas simpatias pela teoria da Gramática Universal, segundo a qual seres humanos já nascem equipados com um 'software' linguístico em seus cérebros, isto é, dotados de alguns princípios gramaticais comuns a todos os idiomas. Essa ideia não é exatamente nova. Ela existe pelo menos desde Roger Bacon (c. 1214-1294), e 'pai' do empirismo e 'avô' do método científico, mas foi desenvolvida e popularizada pelo linguista norte-americano Noam Chomsky. Embora ainda seja objeto de acres disputas, vem ganhando apoio da neurociência.
Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem é um universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma, diferentemente da escrita, que foi 'criada' de forma independente não mais do que meia dúzia de vezes em toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que precisa ser ensinada, basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o aprenda quase sozinha. Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas expostas a pídgins [jargões comerciais normalmente falados em portos e que misturam vários idiomas] acabam desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática para essa nova linguagem. Outra prova curiosa é a constatação de que bebês surdos-mudos "balbuciam" com as mãos exatamente como o fazem com a voz as crianças falantes.
[...]
E, se a linguagem como a compreendemos é essencialmente humana, iniciativas como a do Seti (busca por inteligência Extraterrestre, na sigla inglesa) são um desperdício de recursos. Seria como se os elefantes lançassem uma procura por outros seres dotados de tromba no universo e descartassem como inferiores toda e qualquer espécie sem o apêndice.
Outro ponto curioso e que me interessa particularmente é o que diz respeito ao domínio da gramática. Se ela é inata e todos a possuímos, não faz muito sentido classificar como 'pobre' a sintaxe alheia. Na verdade, aquilo que nos habituamos a chamar de gramática, isto é, as prescrições estilísticas que aprendemos na escola são o que há de menos essencial no complexo fenômeno da linguagem. Não me parece exagero afirmar que sua função é precipuamente social, isto é, distinguir dentre aqueles que dominam ou não um conjunto de normas mais ou menos arbitrárias que se convencionou chamar de culta. Nada contra o registro formal, do qual, aliás, tiro meu ganha-pão. Mas, sob esse prisma, não faz tanta diferença dizer 'nós vai' ou 'nós vamos'. Se a linguagem é a resposta evolucionária à necessidade de comunicação entre humanos, o único critério possível para julgar entre o linguisticamente certo e o errado é a compreensão ou não da mensagem transmitida. Uma frase ambígua seria mais 'errada' do que ma que ferisse as caprichosas regras de colocação prenominal, por exemplo."
"— Davi-ê, vem ver eu jogar no computador! Agora eu já consigo passar para a fase duas.
— Ian-(h)ê, a mamãe tá chamando para almoçar!
Essas são frases típicas de meus filhos gêmeos, Ian e David, agora com quatro anos e meio. Já há alguns meses venho prestando atenção no 'ê' que eles pospõem aos próprios nomes quando chamam um ao outro. Até procurei hipóteses alternativas, mas estou cada vez mais convicto de que esse 'ê' por eles utilizado marca um vocativo, um caso de declinação que se perdeu no português. Prova-o o fato de que a intrigante letrinha desaparece em estruturas nas quais o nome próprio se torna sujeito ou objeto, como: — O David me mordeu. Ou — Papai-ê, briga com o Ian que ele me bateu.
O que me chama a atenção aqui é que eles não deveriam ter a menor noção do que seja uma declinação. Eu juro que nunca tentei ensinar-lhes latim ou grego clássico, línguas que preservam a característica de alterar a 'terminação' dos nomes dependendo da função sintática que desempenhem na sentença [...].
Ainda que não o saibam, os meninos não só estão pensando gramaticalmente como ainda resgataram de forma intuitiva uma distinção da qual no português só ficaram resquícios. Tal experiência reforçou ainda mais minhas simpatias pela teoria da Gramática Universal, segundo a qual seres humanos já nascem equipados com um 'software' linguístico em seus cérebros, isto é, dotados de alguns princípios gramaticais comuns a todos os idiomas. Essa ideia não é exatamente nova. Ela existe pelo menos desde Roger Bacon (c. 1214-1294), e 'pai' do empirismo e 'avô' do método científico, mas foi desenvolvida e popularizada pelo linguista norte-americano Noam Chomsky. Embora ainda seja objeto de acres disputas, vem ganhando apoio da neurociência.
Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem é um universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma, diferentemente da escrita, que foi 'criada' de forma independente não mais do que meia dúzia de vezes em toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que precisa ser ensinada, basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o aprenda quase sozinha. Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas expostas a pídgins [jargões comerciais normalmente falados em portos e que misturam vários idiomas] acabam desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática para essa nova linguagem. Outra prova curiosa é a constatação de que bebês surdos-mudos "balbuciam" com as mãos exatamente como o fazem com a voz as crianças falantes.
[...]
E, se a linguagem como a compreendemos é essencialmente humana, iniciativas como a do Seti (busca por inteligência Extraterrestre, na sigla inglesa) são um desperdício de recursos. Seria como se os elefantes lançassem uma procura por outros seres dotados de tromba no universo e descartassem como inferiores toda e qualquer espécie sem o apêndice.
Outro ponto curioso e que me interessa particularmente é o que diz respeito ao domínio da gramática. Se ela é inata e todos a possuímos, não faz muito sentido classificar como 'pobre' a sintaxe alheia. Na verdade, aquilo que nos habituamos a chamar de gramática, isto é, as prescrições estilísticas que aprendemos na escola são o que há de menos essencial no complexo fenômeno da linguagem. Não me parece exagero afirmar que sua função é precipuamente social, isto é, distinguir dentre aqueles que dominam ou não um conjunto de normas mais ou menos arbitrárias que se convencionou chamar de culta. Nada contra o registro formal, do qual, aliás, tiro meu ganha-pão. Mas, sob esse prisma, não faz tanta diferença dizer 'nós vai' ou 'nós vamos'. Se a linguagem é a resposta evolucionária à necessidade de comunicação entre humanos, o único critério possível para julgar entre o linguisticamente certo e o errado é a compreensão ou não da mensagem transmitida. Uma frase ambígua seria mais 'errada' do que ma que ferisse as caprichosas regras de colocação prenominal, por exemplo."
Schwartsman, Hélio. Gramática universal. Folha de S. Paulo, 3 ago. 2006.
1. Que fato cotidiano surpreendeu o autor do artigo? Por quê?
2. Que suposição faz o autor e que hipótese explicativa relaciona com ela?
3. Cite alguns argumentos usados pelo autor do artigo para sustentar essa hipótese.
Cite alguns argumentos usados pelo autor do artigo para sustentar essa hipotese
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