Humanos e outros animais
Se compararmos o corpo humano com o de outros animais, veremos que o nosso não é tão capacitado quanto o deles para enfrentar uma série de dificuldades. Como ilustra o arqueólogo australiano Gordon Childe (1892-1957), não temos, por exemplo, um couro peludo como o de um urso para manter o calor corporal em um ambiente frio. O corpo humano também não é excepcionalmente bem-adaptado, como o de alguns animais, à fuga, à autodefesa ou à caça. Por isso, não temos a capacidade do tigre ou a armadura defensiva da tartaruga ou da lagosta. Não temos asas para voar e poder localizar mais facilmente uma caça. Faltam-nos o bico, as garras e a acuidade visual do gavião. No entanto, conclui Gordon Childe:
"O ser humano pode ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se infinitamente mais depressa do que qualquer manifesto superior, e derrotar o urso polar, a lebre, o gavião e o tigre, em seus recursos especiais. Pelo controle do fogo e pela habilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde os polos da Terra até o equador. Nos trens e automóveis que constrói, pode superar a mais rápida lebre e avestruz. Nos aviões e foguetes pode subir mais alto do que a águia, e, com os telescópios, ver mais longe do que o gavião. Com armas de fogo pode derrubar animais que nenhum tigre ousaria atacar.
Mas fogo, roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios e armas de fogo não são parte do corpo do homem. Eles não são herdados no sentido biológico. O conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso legado social. Resulta de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da linguagem (fala e escrita).
A compreensão que o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente pobres é o cérebro grande e complexo, centro de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvolver sua própria cultura." (A evolução cultural do homem, p. 40-41).
Assim, diferentemente dos outros animais, os humanos não são apenas seres biológicos produzidos pela natureza. São também seres que modificam o estado de natureza, isto é, a condição natural das coisas, definida pela natureza. Isso significa que os humanos são também seres culturais. Esmiucemos um pouco mais o que acabamos de afirmar.
Interior de um iglu — habitação construída com blocos de neve ou gelo — em uma cidade norte do Canadá. Exemplo marcante da inventividade e adaptabilidade humana. |
Condutas inatas e aprendidas
Aprendemos em biologia que boa parte do comportamento dos animais está vinculada a reflexos e instintos (padrões inatos, não aprendidos, de conduta), relacionados a estruturas biológicas hereditárias. Assim, o comportamento de um inseto é praticamente igual ao de qualquer outro de sua espécie, hoje e sempre. É o que observamos, por exemplo, na atividade das abelhas nas colmeias ou das aranhas tecendo suas teias.
No entanto, algumas espécies animais apresentam, além dos modelos comportamentais considerados inatos, algumas reações mais flexíveis, imprevisíveis ou maleáveis, de acordo com as circunstâncias ambientais. É o caso, por exemplo, de cães e gatos, nos quais distinguimos muitas vezes o que se poderia chamar de "personalidade". Em chimpanzés e gorilas, é possível encontrar atos inteligentes e uma capacidade elementar de raciocínio.
Agora, se colocamos o ser humano nessa comparação, podemos dizer que existe uma grande diferença entre seu comportamento e o dos animais em geral, no que diz respeito a certas habilidades. Para dar um só exemplo, mesmo o chimpanzé mais evoluído possui apenas rudimentos daquilo que lhe permitiria desenvolver a linguagem simbólica — como qualquer humano saudável é capaz de fazer — e tudo o que dela resulta: aprender, reelaborar o conteúdo aprendido e promover o novo (invenção).
Isso quer dizer que a vida de cada animal é, em grande medida, semelhante ao padrão básico vivido por sua espécie. Por sua vez, o ser humano tem, individualmente e como espécie, a capacidade de romper com boa parte de seu passado, questionar o presente e criar a novidade futura.
Linguagem simbólica — sistema de símbolos, isto é, signos que, por convenção (acordo entre as pessoas), representam alguma coisa. Por exemplo, as línguas portuguesa, inglesa, etc.
Não há dúvidas de que todo ser humano apresenta também reflexos e instintos vinculados a estruturas biológicas hereditárias próprias da nossa espécie. Paralelamente, elementos genéticos limitam certas mudanças, e fatores socioeconômicos dificultam a realização de determinados desenvolvimentos humanos. Além disso, vários tipos de crenças, ideologias e condicionamentos impedem as pessoas de sequer desejar uma transformação em si mesmas ou à sua volta.
Mesmo assim, podemos dizer que o ser humano não nasce pronto pelas "mãos da natureza", como parece ocorrer no reino animal. Como defendem alguns pensadores, a vida de cada indivíduo humano seria um "parto" constante, um processo permanente de nascimento e construção de si mesmo.
O que determina, então, essa diferença entre o animal humano e todos os outros animais?
Síntese humana
Continuando nossa análise do ponto de vista biológico, essa característica humana de aprender e inventar, de perceber, interpretar e comunicar o que percebeu, de transformar a si mesmo e o que está ao seu redor parece estar intimamente ligada a propriedades de seu sistema nervoso e, especificamente, do cérebro humano, como assinala Gordon Childe no final do texto citado e confirmam outros estudiosos.
Graças à grande plasticidade (capacidade de modelar-se e ser modelado) de seu sistema nervoso, o ser humano constitui-se em um organismo cuja estrutura é capaz de apresentar condutas inatas e aprendidas, de desenvolver a linguagem, manifestar consciência e socializar-se (cf. Maturana e Varela, El árbol del conocimento).
O ser humano revela-se, assim, um ser ao mesmo tempo biológico e cultural. Mediante a cultura, criou para si um "mundo novo", diferente do cenário natural originalmente encontrado. Em outras palavras, dentro da biosfera (a parte do planeta que reúne condições para o desenvolvimento da vida), os humanos foram construindo a antroposfera (a parte do mundo que resulta do ajustamento da natureza às necessidades humanas). Essa antroposfera, criada pelas diferentes culturas, é a morada do ser humano no mundo. Constitui o cosmo humano, um espaço construído pelos conhecimentos e realizações desenvolvidos e compartilhados pelos diferentes grupos sociais através da história.
Isso significa que no ser humano ocorre uma síntese, isto é, uma integração de características hereditárias e adquiridas, inatas e aprendidas, aspectos individuais e sociais, elementos do estado de natureza e de cultura.
Não há dúvidas de que todo ser humano apresenta também reflexos e instintos vinculados a estruturas biológicas hereditárias próprias da nossa espécie. Paralelamente, elementos genéticos limitam certas mudanças, e fatores socioeconômicos dificultam a realização de determinados desenvolvimentos humanos. Além disso, vários tipos de crenças, ideologias e condicionamentos impedem as pessoas de sequer desejar uma transformação em si mesmas ou à sua volta.
Mesmo assim, podemos dizer que o ser humano não nasce pronto pelas "mãos da natureza", como parece ocorrer no reino animal. Como defendem alguns pensadores, a vida de cada indivíduo humano seria um "parto" constante, um processo permanente de nascimento e construção de si mesmo.
O que determina, então, essa diferença entre o animal humano e todos os outros animais?
Síntese humana
Continuando nossa análise do ponto de vista biológico, essa característica humana de aprender e inventar, de perceber, interpretar e comunicar o que percebeu, de transformar a si mesmo e o que está ao seu redor parece estar intimamente ligada a propriedades de seu sistema nervoso e, especificamente, do cérebro humano, como assinala Gordon Childe no final do texto citado e confirmam outros estudiosos.
Graças à grande plasticidade (capacidade de modelar-se e ser modelado) de seu sistema nervoso, o ser humano constitui-se em um organismo cuja estrutura é capaz de apresentar condutas inatas e aprendidas, de desenvolver a linguagem, manifestar consciência e socializar-se (cf. Maturana e Varela, El árbol del conocimento).
O ser humano revela-se, assim, um ser ao mesmo tempo biológico e cultural. Mediante a cultura, criou para si um "mundo novo", diferente do cenário natural originalmente encontrado. Em outras palavras, dentro da biosfera (a parte do planeta que reúne condições para o desenvolvimento da vida), os humanos foram construindo a antroposfera (a parte do mundo que resulta do ajustamento da natureza às necessidades humanas). Essa antroposfera, criada pelas diferentes culturas, é a morada do ser humano no mundo. Constitui o cosmo humano, um espaço construído pelos conhecimentos e realizações desenvolvidos e compartilhados pelos diferentes grupos sociais através da história.
Isso significa que no ser humano ocorre uma síntese, isto é, uma integração de características hereditárias e adquiridas, inatas e aprendidas, aspectos individuais e sociais, elementos do estado de natureza e de cultura.
O enigma sem fim (1928) — Salvador Dalí (Museo Nacional Reina Sofía, Madri, Espanha). A existência humana parece ser um enigma indecifrável, ao mesmo tempo fascinante e assustador. |
Essa condição parece fazer dos humanos seres ambíguos, contraditórios, instáveis e dinâmicos. Um produto da natureza e da cultura e, ao mesmo tempo, um transformador da natureza e da cultura.
Criatura e criador do mundo em que vive. Um ser capaz de dominar a natureza em muitos aspectos, mesmo fazendo parte dela. Capaz não só de criar coisas extraordinárias, mas também de destruir de modo devastador. Capaz de acumular um saber imenso e, no entanto, permanecer angustiado por dúvidas profundas que o fazem sempre propor novas perguntas e novos problemas a si próprio.
Ponto de transição
Podemos fazer agora as seguintes perguntas: Onde acaba, no ser humano, a natureza e começa a cultura? Em que ponto, em que momento, a partir de que fato ocorreu essa transição ou essa síntese?
O tema é polêmico. Alguns estudiosos afirmam que não há uma fronteira rígida entre natureza e cultura, enquanto, para outros, um provável indicador dessa transição teria sido, em termos históricos, a construção das primeiras ferramentas pelos seres humanos.
O tema é polêmico. Alguns estudiosos afirmam que não há uma fronteira rígida entre natureza e cultura, enquanto, para outros, um provável indicador dessa transição teria sido, em termos históricos, a construção das primeiras ferramentas pelos seres humanos.
Mesmo assim, podemos seguir perguntando: que fator, que elemento, que aspecto fundamentalmente humano permitiu essa transição? Vejamos as respostas de duas correntes interpretativas que consideramos as mais relevantes para nossa investigação.
Linguagem e comunicação
De acordo com alguns estudos, o fator determinante da transição natureza-cultura é a linguagem. Trata-se de uma corrente que entende o ser humano fundamentalmente como um ser linguístico. Para ilustrar essa concepção, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) faz o seguinte exercício de imaginação:
"Suponhamos que num planeta desconhecido encontremos seres vivos que fabricam utensílios. Isso não nos dará a certeza de que eles se incluem na ordem humana. Imaginemos, agora, esbarramos com seres vivos que possuam uma linguagem que, por mais diferente que seja da nossa, possa ser traduzida para nossa linguagem — seres, portanto, com os quais poderíamos nos comunicar. Estaríamos, então, na ordem da cultura e não mais da natureza. (Citado em Cuvillier, p. 2).
Assim, segundo esse antropólogo, o que teria distanciado definitivamente o ser humano da ordem comum dos animais — animais que somos também e nunca deixaremos de ser — e permitido a sua entrada no universo da cultura seria o desenvolvimento da linguagem e da comunicação.
Não se pode negar que a linguagem constitui uma das dimensões mais importantes da existência humana, pois é ela que permite o intercâmbio das experiências e as aquisições culturais. É pela linguagem, por exemplo, que pais e mães comunicam a seus filhos e filhas não apenas suas experiências pessoais, mas algo mais amplo: as experiência acumuladas e compartilhadas pela sociedade. De modo inverso, é também por meio da linguagem que o conhecimento individual pode incorporar-se ao patrimônio social.
Trabalho
Outra vertente interpretativa, fundada pelo filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), entende que é o trabalho que possibilita a distinção entre ser humano e animais, portanto, entre cultura e natureza. Segundo essa perspectiva, seria a partir do trabalho — e da forma como se dá o processo de produção da vida material das comunidades humanas — que se desenvolveriam todas as outras formas de manifestação humana:
"Pode-se considerar a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém esta distinção só começa a efetivar-se quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida." (Marx e Engels, A ideologia alemã, p. 19).
De acordo com essa interpretação, portanto, é o modo como os seres humanos constroem sua vida material que dá origem à elaboração da vida espiritual e das relações sociais, formando um conjunto que constitui a cultura. Isso quer dizer também que não podemos falar de cultura no singular, mas sim de culturas, pois elas são múltiplas e variáveis, de acordo com a diversidade dos modos de ser e viver das coletividades humanas.
Direitos dos animais
Leia estes dois artigos da Declaração Universal dos Direitos dos Animais.
"Artigo 11. - O ato que leva à morte de um animal sem necessidade é um biocídio, ou seja, um crime contra a vida.
Artigo 12. - a) Cada ato que leva à morte um grande número de animais selvagens é genocídio, ou seja, um delito contra a espécie. Disponível aqui
Você conhece os conceitos destacados acima? Sabia que eles podem ser aplicados tanto aos animais humanos como aos animais não humanos? Concorda que os animais não humanos possam ter direitos e que seja um crime matá-los, mesmo de forma indireta, pela poluição de seu habitat? Você aprova o chamado especismo, isto é, a crença na superioridade de uma espécie (a espécie humana) sobre as outras? Há semelhanças do especismo com o racismo (crença na superioridade de uma raça) e o sexismo (crença na superioridade de um gênero, comumente o masculino)? Discuta essas questões.
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