E agora, o que vamos dizer de toda essa Utopia? Ela é factível? Se não for, será que possui quaisquer aspectos praticáveis que possamos aproveitar no presente? Já foi posta em prática em algum lugar ou até certo ponto?
Pelo menos a última pergunta deve ser respondida a favor de Platão. Durante mil anos, a Europa foi governada por uma ordem de guardiães consideravelmente parecida com aquela imaginada pelo nosso filósofo. Na Idade Média, era costume classificar a população da Cristandade em laboratores (trabalhadores), bellatores (soldados) e oratores (clero). O último grupo, embora pequeno em número, monopolizava os instrumentos e as oportunidades de cultura e governava com um poder quase ilimitado metade do continente mais poderoso do globo. Os membros do clero, como os guardiães de Platão, eram colocados em postos de mando não para sufrágio do povo, mas pelo talento demonstrado nos estudos e na administração eclesiásticos pela sua tendência a uma vida de meditação e simplicidade, e (talvez se deva acrescentar) pela influência de parentes seus junto aos poderes do Estado e da Igreja. Na segunda metade do período em que governaram, os membros do clero se achavam tão livres das preocupações familiares quanto o próprio Platão podia desejar; e, em certos casos, parece não ter sido pouco o uso que faziam da liberdade de reprodução concedida aos guardiães. O celibato fazia parte da estrutura psicológica do poder do clero; porque de um lado seus componentes ficavam livres do egoísmo estreito da família, e, do outro, sua aparente superioridade diante dos apelos da carne aumentava a admiração reverente que os pecadores leigos lhe dedicavam e a disposição destes em desnudarem suas vidas ao confessionário.
Grande parte da política do catolicismo derivou das "mentiras reais" de Platão ou foi por elas influenciada: as ideias do céu, do purgatório e do inferno, em sua forma medieval, têm sua origem detectada no último livro de A República; a cosmologia da escolástica vem, em sua maior parte, do Timeu; a doutrina do realismo (a realidade objetiva das ideias gerais) foi uma interpretação da doutrina das Ideias; até o quadrivium educacional (aritmética, geometria, astronomia e música) foi modelado no currículo esboçado em Platão. Com esse corpo de doutrina, os povos da Europa foram governados praticamente sem necessidade de apelar para a força; e aceitavam tanto esse governo, que durante mil anos contribuíram com abundante apoio material para os seus governantes e não pediram o direito de opinar no governo. E essa aquiescência não se limitava à população em geral; mercadores e soldados, senhores feudais e poderes civis ajoelhavam-se, todos, diante de Roma. Era uma aristocracia de invulgar sagacidade política; criou, provavelmente, a mais maravilhosa e poderosa organização que o mundo já conheceu.
Os jesuítas que durante algum tempo governaram o Paraguai eram guardiães semi-platônicos, uma oligarquia clerical cujo poder derivava da posse de conhecimento e de capacidade em meio a uma população de bárbaros. E, por algum tempo, o Partido Comunista que governou a Rússia após a revolução de novembro de 1917 tomou uma força estranhamente parecida com A República. Constituíram uma pequena minoria, mantida unida quase que devido à convicção religiosa, brandindo as armas da ortodoxia e da excomunhão, devotados à sua causa com o mesmo ardor com que qualquer santo se dedica à sua e levando uma existência frugal enquanto governavam metade do território da Europa.
Esses exemplos indicam que, dentro de limites e com modificações, o plano de Platão é exequível; e, realmente, ele mesmo o baseara, em grande parte, na prática observada em viagens que fizera. Ele ficara impressionado com a teocracia egípcia: ali estava uma grande e antiga civilização governada por uma pequena classe sacerdotal; e, em comparação com as brigas, a tirania e a incompetência da Eclesia ateniense, Platão achou que o governo egípcio representava uma forma de Estado muito mais elevada. Na Itália, ele ficara algum tempo com uma comunidade pitagórica, vegetariana e comunista, que durante gerações havia controlado a colônia grega na qual vivia. Em Esparta, havia visto uma pequena classe governante levando uma vida dura e simples em comum, em meio a uma população submissa; comendo juntos, restringindo as uniões sexuais para fins eugênicos e dando aos bravos o privilégio de várias mulheres. Sem dúvida, ouvira Eurípides defender uma comunidade de esposas, a liberação dos escravos e a pacificação do mundo grego por uma liga helênica (Medeia, 230; Fragm., 655); sem dúvida, também, conhecera alguns dos cínicos que haviam criado um forte movimento comunista entre o que agora chamaríamos de Esquerda Socrática. Em suma, Platão deve ter sentido que, ao propor seu plano, não estava fazendo uma melhoria impossível das realidades que seus olhos haviam contemplado.
No entanto, críticos desde a época de Aristóteles até a nossa têm encontrado em A República inúmeras oportunidades para objeções e dúvidas. "Essas coisas e muitas outras", diz o Estagirita com cínica concisão, "foram reinventadas várias vezes ao longo dos tempos." E muito bonito planejar uma sociedade em que todos os homens sejam irmãos; mas estender esse termo a todos os nossos contemporâneos do sexo masculino é tirar dele todo o calor e significado. O mesmo acontece com a propriedade comum: significaria uma diluição da responsabilidade; quando tudo pertence a todos, ninguém cuidará de coisa alguma. E, por fim, alega o grande conservados, o comunismo lançaria as pessoas numa intolerável continuidade de contato; não deixaria espaço algum para a privacidade ou individualidade; e iria presumir a existência de virtudes como a paciência e a cooperação, que só uma minoria santa possui. "Não devemos presumir um padrão de virtude que esteja acima das pessoas comuns, nem uma educação que seja excepcionalmente favorecida pela natureza e pelas circunstâncias; mas temos de levar em consideração a vida que a maioria tem condições de partilhar e provavelmente as formas de governo que os estados em geral também possam alcançar."
Até o presente, eis o maior (e mais cioso) discípulo de Platão; e a maioria das críticas posteriores bate na mesma tecla. Platão não deu o devido valor, segundo nos disseram, à força do hábito acumulado na instituição da monogamia e no código moral associado a esta instituição; subestimou o possessivo ciúme dos elementos do sexo masculino, ao supor que um homem iria contentar-se em possuir apenas uma parte de uma esposa; minimizou o instinto maternal ao supor que as mães iriam concordar em ter filhos levados para longe delas e criados em um anonimato cruel. E acima de tudo esqueceu-se de que ao abolir a família estava destruindo a grande zeladora da moral e a principal fonte dos hábitos cooperativos e comunistas que teriam de ser a base psicológica de seu Estado; com uma eloquência sem igual, ele serrara o galho no qual estava sentado.
A todas essas críticas, pode-se responder muito simplesmente dizendo que elas destroem um homem de palha. Platão isenta, explicitamente, a maioria de seu plano comunista; reconhece com nitidez que só uns poucos são capazes da renúncia material que ele propõe para a sua classe dirigente; só os guardiães irão chamar cada guardião de irmão ou irmã; só os guardiães não terão ouro ou bens. A imensa maioria irá manter todas as instituições respeitáveis ― propriedade, dinheiro, luxo, concorrência e a privacidade que possa desejar. Terá um casamento tão monogâmico quanto puder suportar, e toda a moral derivada dele e da família; os pais ficarão com suas mulheres, e as mães, com seus filhos ad libitum e ad nauseam. Quanto aos guardiães, sua necessidade não é tanto de disposição comunista quanto de um senso de honra, e amor a essa honra; o orgulho, e não a bondade, irá mantê-los. No que se refere ao instinto maternal, ele não é forte antes do nascimento, ou mesmo do crescimento, da criança; a mãe comum aceita o recém-nascido mais com resignação do que com alegria; o amor por ele é um sentimento que se desenvolve, não um milagre repentino, e aumenta à medida que a criança cresce, à medida que ela toma forma sob o diligente cuidado da mãe; só quando ela se tiver tornado a corporificação da arte materna tocará de forma irrevogável o coração.
Outras objeções são mais econômicas do que psicológicas. A República de Platão, segundo se alega, denuncia a divisão de toda cidade em duas outras, e depois nos oferece uma cidade dividida em três. A resposta é que a divisão no primeiro caso é pelo conflito econômico; no Estado de Platão, as classes guardiã e auxiliar estão especificamente excluídas da participação nessa concorrência em busca do ouro e de bens. Mas, nesse caso, os guardiães teriam poder sem responsabilidade; e será que isso não levaria à tirania? Em absoluto; eles têm poder e comando político, mas nenhum poder econômico ou riqueza; a classe econômica, ficando descontente com o modo de governar dos guardiães, poderia suspender o fornecimento de alimentos, tal como os parlamentos controlam os executivos ao conterem o orçamento. Mas então, se os guardiães detêm o poder político, mas não o econômico, como poderão manter o seu domínio? Harrington, Marx e muitos outros não têm mostrado que o poder político é um reflexo do poder econômico, e se torna precário tão logo o poder econômico se transfira para um grupo politicamente inferior ― como para as classes médias no século XX?
Esta é uma objeção muito fundamental e, talvez, fatal. Poder-se-ia responder que o poder da Igreja Católica romana, que levou até mesmo reis a se ajoelharem em Ca nossa, baseou-se, em seus primeiros séculos de domínio, mais na inculcação de dogmas do que na estratégia da riqueza. Mas pode ser que o longo domínio da Igreja fosse devido às condições agrícolas da Europa: uma população agrícola inclina-se para a crença sobrenatural pela sua inapelável dependência do capricho dos elementos e por aquela incapacidade de controlar a natureza que sempre leva ao medo e, daí, à veneração; quando a indústria e o comércio evoluíram, surgiu um novo tipo de mentalidade e de homem, mais realista e terreno, e o poder da Igreja começou a desmoronar tão logo entrou em conflito com aquela nova realidade econômica. O poder político tem de estar sempre se reajustando ao variável equilíbrio das forças econômicas. A dependência econômica dos guardiães de Platão em relação à classe econômica iria reduzi-los, muito em breve, a controlados executivos políticos daquela classe; mesmo a manipulação do poder militar não iria adiar por muito tempo esse resultado inevitável ― como as forças militares da Rússia revolucionária não puderam evitar o aparecimento de um individualismo proprietário entre os camponeses que controlavam a produção de alimentos e, portanto, o destino da nação. Para Platão, só restaria uma coisa: que muito embora as políticas econômicas devam ser determinadas pelo grupo economicamente dominante, é melhor que elas sejam administradas por funcionários especialmente preparados para essa finalidade do que por homens que passam, desajeitados, do comércio ou da indústria para a função política sem nenhum treinamento nas artes do estadismo.
O que falta Platão, acima de tudo, talvez, é o senso heraclitiano de fluxo e mudança; ele está ansioso demais por fazer com que o filme cinematográfico deste mundo se torne um quadro fixo e imóvel. Ele adora a ordem de maneira exclusiva, como qualquer filósofo tímido; foi levado, pelo medo que teve da turbulência democrática de Atenas, a um desprezo extremo pelos valores individuais; arruma os homens em classes como um entomologista classifica moscas; e não é contrário a usar embustes sacerdotais para assegurar os seus fins. Seu Estado é estático; poderia tornar-se facilmente uma sociedade conservantista, governada por octogenários inflexíveis hostis à invenção e desconfiados em relação à mudança. É a simples ciência sem arte; exalta a ordem, tão cara à mente científica, e esquece por completo aquela liberdade que é a alma da arte; venera o nome da beleza, mas exila os artistas que, só eles, podem fazer a beleza ou destacá-la. E uma Esparta ou uma Prússia, não um Estado ideal.
E agora que essas desagradáveis necessidades estão expostas com imparcialidade, resta fazer uma sincera homenagem ao poder e à profundidade da concepção de Platão. Na essência, ele está certo ― não está? O que este mundo precisa é de ser governado pelos mais sábios de seus homens. Cabe a nós adaptar seu pensamento à nossa época e às nossas limitações. Hoje, temos que considerar a democracia como ponto pacífico: não podemos limitar o sufrágio, como Platão propunha; mas podemos impor restrições à ocupação de um cargo e assim, garantir aquela mistura de democracia e aristocracia que Platão parece ter em mente. Podemos aceitar sem discutir sua asserção de que os estadistas deveriam ser treinados tão específica e completamente quanto os médicos; poderíamos criar departamentos de ciência e administração política em nossas universidades; e quando esses departamentos tivessem começando a funcionar de forma adequada, poderíamos fazer com qe não pudessem ser indicados para cargos públicos os homens que não fossem formados por essas faculdades políticas. Poderíamos, até, tornar elegível para um cargo todo aquele que tivesse sido treinado para ele e, com isso, eliminar por completo o complexo sistema de indicações no qual tem sua sede a corrupção de nossa democracia; que o eleitorado escolhesse qualquer homem que, devidamente treinado e qualificado, se anunciasse como candidato. Dessa maneira a escolha democrática seria infinitamente mais ampla do que agora, quando Tweedledum e Tweedledee (Personagens de "Através do Espelho e o que Alice Encontrou Lá", de Lewis Carroll - N. do T) montam seu espetáculo e contrafação quadrienal. Só uma emenda seria necessária para tornar bem democrático esse plano de restrição de cargos aos diplomados em técnica administrativa; e a emenda seria uma igualdade de oportunidade educacional que abrisse para todos os homens e mulheres, independentemente das condições financeiras do país, o caminho da instrução universitária e do progresso político. Seria muito simples fazer com que os municípios, condados e estados oferecessem bolsas de estudo a todos os formados nos primeiro e segundo ciclos e na faculdade que tivessem mostrado um certo padrão de capacidade e cujos pais fossem financeiramente incapazes de pagar-lhes o estágio seguinte do processo educacional. Isso seria uma democracia digna do nome.
Por fim, é justo acrescentar que Platão compreende que sua Utopia não se encaixa bem no terreno as coisas exequíveis. Ele admite que descreveu um ideal difícil de ser atingido; responde que há, apesar de tudo, um valor em pintar tais quadros de nosso desejo; a importância do homem está em que ele pode imaginar um mundo melhor e querer transformar pelo menos uma parte dele em realidade; o homem é um animal que faz Utopias. "Olhamos para trás e para a frente e ansiamos por aquilo que não existe." E nem tudo deixa de produzir resultados: muitos sonhos têm criado membros e saído andando, ou criado asas e voado, como o sonho de ícaro de que o homem podia voar. Afinal, mesmo que tenhamos apenas desenhado um quadro, este poderá servir como meta e modelo do nosso movimento e do nosso comportamento; quando um número suficiente de pessoas vir o quadro e seguir seu lampejo, a Utopia encontrará o seu lugar no mapa Enquanto isso, "no céu há um modelo de uma cidade assim, e aquele que quiser poderá contemplá-lo, e, contemplando-o, orientar-se segundo o que viu. Mas se realmente existe ou algum dia haverá tal cidade na Terra (...), ele irá agir de acordo com as leis da cidade, e de nenhuma outra". O homem irá aplicar, mesmo no Estado imperfeito, a lei perfeita.
Apesar de tudo, com todas essas concessões à dúvida, o Mestre foi suficientemente ousado para se arriscar quando surgiu uma oportunidade de executar o seu plano. No ano 387 a.C., Platão recebeu um convite de Dionísio, rei da então florescente e poderosa Siracusa, capital da Sicília, para transformar o seu reino numa Utopia; e o filósofo, pensando, como Turgot, que fosse mais fácil educar um homem ― ainda que fosse um rei ― do que todo um povo, concordou. Mas quando Dionísio descobriu que o plano exigia que ele se tornasse um filósofo ou deixasse de ser rei, esquivou-se; o resultado foi uma áspera discussão. Segundo dizem, Platão foi vendido como escravo, para ser salvo por seu amigo e discípulo Anicéris; quando os seguidores atenienses de Platão quiseram reembolsá-lo pelo resgate que pagara, ele recusou-se a receber, dizendo que eles não deveriam ser os únicos privilegiados a ajudarem a filosofia. Esta experiência (e, se pudermos acreditar em Diógenes Laércio, outra semelhante) pode ser responsável pelo desiludido conservadorismo do último trabalho de Platão, as Leis.
E, no entanto, os últimos anos de sua longa vida devem ter sido bem felizes. Seus discípulos haviam se espalhado em todas as direções, e seu sucesso o tomara venerado em toda parte. Ele viviam em paz em sua Academia andando de grupo em grupo de seus discípulos e dando-lhes problemas e tarefas sobre os quais eles deviam fazer pesquisas, apresentando-lhe um relatório e sua resposta quando ele voltasse outra vez. La Rochefoucauld dizia que "poucos sabem envelhecer". Platão sabia: aprender como Sólon e ensinar como Sócrates; orientar os jovens ansiosos e ter o amor intelectual dos companheiros. Porque seus discípulos o amavam tanto quanto ele os amava; ele era tanto amigo deles quanto seu filósofo e guia.
Um de seus discípulos, enfrentando esse grande abismo chamado casamento, convidou o Mestre para a festa de suas bodas. Platão foi, rico com os seus oitenta anos, e uniu-se prazerosamente aos foliões. Mas à medida que as horas passavam em meio à alegria, o velho filósofo retirou-se para um canto tranquilo da casa e sentou-se numa cadeira para tirar uma soneca. Pela manhã, quando a festa havia terminado, os exaustos convivas foram acordá-lo. Verificaram que, durante a noite, tranquilamente, sem agitação, ele passara de um sono curto para um sono interminável. Toda Atenas o acompanhou à sepultura.
A História da Filosofia, de Will Durant
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