Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

Os Usos da Filosofia

      Existe um prazer na filosofia, e um atrativo mesmo nas miragens da metafísica, que todo estudioso sente até que as vulgares necessidades da existência física o arrastem do auge do pensamento para o mercado da disputa e do lucro econômico. A maioria de nós conheceu um certo período áureo no junho de nossas vidas, quando a filosofia era, de fato, como Platão a chama, "esse caro deleite"; quando o amor de uma Verdade modestamente esquiva parecia incomparavelmente mais glorioso do que a ânsia pelos prazeres carnais e do que as impurezas do mundo. E sempre há, em nós, um sequioso remanescente daquele antigo namoro com a sabedoria. "A vida tem um significado", sentimos nós com Browning, "e procurar esse significado é, para mim, um deleite." Uma parte muito grande de nossas vidas é destituída de significado, compreendendo uma vacilação e uma futilidade auto-canceladoras; lutamos com o caos que nos cerca e que está dentro de nós; mas o tempo todo acreditaríamos existir algo vital e importante em nós, se ao mesmo pudéssemos decifrar nossas almas. Queremos compreender; "a vida, para nós, significa estar sempre transformando em luz e chama tudo aquilo que somos ou com que deparamos"; (Nietzsche, A Gaia Ciência, pref.); somos semelhantes a Mitya, em Os Irmãos Karamázovi ― "um daqueles que não querem milhões, mas uma resposta a suas perguntas"; queremos ter conhecimento do valor e da perspectiva das coisas passageiras e, assim, sair do turbilhão das formalidades cotidianas. Queremos saber que as coisas pequenas são pequenas e as coisas grandes são grandes, antes que seja tarde demais; queremos ver as coisas, agora, tal como irão parecer sempre ― "A luz da eternidade".
      Queremos aprender a rir diante do inevitável, a sorrir quando a morte aparecer. Queremos ser um todo, coordenar nossas energias criticando e harmonizando nossos desejos; porque energia coordenada é a última palavra na ética e na política, e talvez também na lógica e na metafísica. "Ser filósofo", disse Thoreau, "não é apenas ter pensamentos sutis, nem mesmo fundar uma escola, mas amar o saber a ponto de viver, segundo os ditames deste saber, uma vida de simplicidade, independência, magnanimidade e confiança." Podemos estar certos de que, se conseguirmos controlar o saber, todas as demais coisas nos serão incorporadas. "Procurem, primeiro, as bosas coisas da mente", adverte-nos Bacon, "e o resto lhes será proporcionado, ou, então, a falta do resto não será sentida." A verdade não nos fará ricos, mas nos tornará livres.

      Um leitor indelicado nos deterá, aqui, informando-nos que a filosofia é tão inútil quanto o xadrez, tão obscura quanto a ignorância, e tão estagnante quanto a satisfação. "Não há nada tão absurdo", disse Cícero, "que não possa ser encontrado nos livros dos filósofos." Não há dúvida que alguns filósofos têm todo tipo de sabedoria, exceto o senso comum; e muito voo filosófico tem sido devido ao poder ascencional do ar rarefeito. Tomemos a decisão de, nesta nossa viagem, só tocarmos nos pontos em que haja luz, mantermo-nos afastados das lamacentas correntes da metafísica e dos "multíssonos mares" da disputa teológica.
      Mas será que a filosofia é estagnante? A ciência parece estar sempre avançando, enquanto a filosofia parece estar sempre perdendo terreno. No entanto, isso só se deve ao fato de a filosofia aceitar a árdua e perigosa tarefa de lidar com problemas ainda não abertos aos métodos da ciência ― problemas como o do bem e do mal, da beleza e da feiura, da ordem e da liberdade, da vida e da morte; tão logo um campo de investigação gera conhecimento suscetível de uma formulação exata, é chamado de ciência. Toda ciência começa como filosofia e acaba como arte; surge na hipótese e flui para a realização.
      Filosofia é uma interpretação hipotética do desconhecido (como na metafísica) ou do conhecido de forma inexata (como na ética ou na filosofia política); é a trincheira adiantada no cerco à verdade. Ciência é o território capturado; e por detrás dele ficam as regiões seguras nas quais o conhecimento e a arte constroem o nosso mundo imperfeito e maravilhoso. A filosofia parece estar parada, perplexa; mas isto é só porque ela deixa os frutos da vitória para suas filhas, as ciências, enquanto ela própria segue adiante, divinamente descontente, em direção ao incerto e inexplorado.

      Devemos empregar linguagem mais técnica? Ciência é descrição analítica; filosofia é interpretação sintética. A ciência quer decompor o todo em partes, o organismo em órgãos, o obscuro em conhecido. Ela não procura conhecer os valores e as possibilidades ideais das coisas, nem o seu significado total e final. contenta-se em mostrar a sua realidade e sua operação atuais, reduz resolutamente o seu foco, concentrando-o na natureza e no processo das coisas tais como são. O cientista é tão imparcial quanto a natureza no poema de Turgenev: está tão interessado na perna de uma pulga quanto nos paroxismos criativos de um gênio. Mas o filósofo não se contenta em descrever o fato; quer averiguar a relação do fato com a experiência em geral e, com isso, chegar ao seu significado e ao seu valor; ele combina coisas numa síntese interpretativa; tenta montar, de maneira melhor do que antes, esse grande relógio que é o universo e que o cientista perquiridor desmontou analiticamente. A ciência nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na guerra; mas só a sabedoria ― o desejo coordenado à luz de toda a experiência ― pode nos dizer quando curar e quando matar.
      Observar processos e construir meios é ciência; criticar e coordenar fins é filosofia; e porque hoje os nossos meios e instrumentos se multiplicaram além da nossa interpretação e da nossa síntese de ideais e fins, nossa vida está cheia de som e fúria, não significando coisa alguma. Porque um fato nada 6 em relação ao desejo; não é completo, exceto em relação a um propósito e a um todo. Ciência sem filosofia, fatos sem perspectiva e avaliação não podem nos salvar da devastação e do desespero. A ciência nos dá o conhecimento, mas só a filosofia pode nos dar a sabedoria.

      Especificamente, filosofia significa e abrange cinco campos de estudo e discurso: a lógica, a estética, a ética, a política e a metafísica. Lógica é o estudo do método ideal de pensamento e pesquisa: observação e introspecção, dedução e indução, hipótese e experimento, análise e síntese ― são estas as formas da atividade humana que a lógica tenta compreender e orientar; é um estudo maçante para a maioria de nós, e no entanto os grandes acontecimentos na história do pensamento são os melhoramentos que os homens têm feito em seus métodos de pensamento e de pesquisa. Estética é o estudo da forma ideal, ou beleza; é a filosofia da arte. Ética é o estudo da conduta ideal; o mais elevado dos conhecimentos, dizia Sócrates, é o conhecimento do bem e do mal, o conhecimento da sabedoria da vida. Política é o estudo da organização social ideal (não é, como se poderia supor, a arte e a ciência de conseguir e manter um cargo); monarquia, aristocracia, democracia, socialismo, anarquismo, feminismo ― estes são as dramatis personae da filosofia política. E por último, metafísica (que se envolve em tantas dificuldades por não ser, como as outras formas de filosofia, uma tentativa de coordenar o real à luz do ideal) é o estudo da "realidade máxima" de todas as coisas: da natureza real e final da "matéria" (ontologia), da "mente" (psicologia filosófica), e da inter-relação de "mente" e de "matéria" nos processos de percepção e conhecimento (epistemologia).

      São essas as partes da filosofia; mas assim desmembrada, ela perde a sua beleza e sua alegria. Iremos procurá-la, não em seus encarquilhados abstrativismo e formalidade, mas vestida na forma viva do gênio; iremos estudar não apenas filosofias, mas filósofos; passaremos nosso tempo com os santos e mártires do pensamento, deixando que seus espíritos radiantes nos envolvam até que talvez nós também, até certo ponto, compartilhemos do que Leonardo chamou de "o mais nobre dos prazeres, a alegria de compreender". Cada um desses filósofos tem alguma lição para nós, se o abordarmos da maneira adequada. "Sabe qual é o segredo do verdadeiro scholar", pergunta Emerson. "Em todo homem há algo que eu posso aprender com ele; e nisso, sou seu discípulo." Bem, não há dúvida de que podemos tomar essa atitude em relação às grandes inteligências da história, sem que nosso orgulho seja ferido! E podemos nos regozijar com aquele outro pensamento de Emerson, de que quando o gênio nos fala sentimos uma reminiscência sobrenatural de termos tido vagamente, em nossa juventude distante, o mesmo pagamento que ele agora expressa, mas de que nos faltara a arte ou a coragem de vestir com forma e palavras. E, na verdade, os grandes homens só nos falam quando temos ouvidos e alma para ouvi-los; só quando temos, em nós mesmos, as raízes, pelo menos, daquilo que floresce neles. Nós também tivemos as experiências que eles tiveram, mas delas não extraímos por completo seus significados secretos e sutis: não éramos sensíveis aos sobretons da realidade que vibravam à nossa volta. O gênio ouve os sobretons e a música das esferas; o gênio sabe o que Pitágoras queria dizer quando declarou que a filosofia é a mais sublime das músicas.

      Por isso, ouçamos esses homens, prontos a perdoar-lhes os erros passageiros e ansiosos por aprendermos as lições que eles estão tão ansiosos por dar. "Sê razoável, então", disse o velho Sócrates a Crito, "e não te preocupes se os professores de filosofia são bons ou ruins, mas pensa apenas na filosofia propriamente dita. Tenta examiná-la bem e com sinceridade; e se ela for má, procura afastar dela todos os homens; mas se ela for o que acredito que é, segue-a e serve-a, e fica contente".

Livro A História da Filosofia, de Will Durant


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