Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

ÉTICA NA HISTÓRIA - Algumas concepções da filosofia moral

      Vejamos, de forma resumida, algumas das reflexões éticas que marcaram os grandes períodos históricos. Para isso, retomaremos aspectos do pensamento de alguns filósofos estudados anteriormente. Daremos destaque às concepções de Aristóteles, na Antiguidade, Santo Agostinho, na Idade Média, Immanuel Kant, na Idade Moderna.


Antiguidade: ética grega
    A preocupação com os problemas éticos teve início de forma mais sistematizada na época de Sócrates, filósofo também conhecido como "o pai da moral". Vejamos o que disseram os principais filósofos gregos desse período sobre essa questão:
• Os sofistas afirmavam que não existe normas e verdades universalmente válidas. Tinham, portanto, uma concepção ética relativista ou subjetivista.
• Ao contrário dos sofistas, Sócrates sustentou a existência de um saber universalmente válido, que decorre do conhecimento da essência humana, a partir da qual se pode conceber a fundamentação de uma moral universal. E o que é essencial no ser humano? Sua alma racional. O ser humano é, essencialmente, razão. E é na razão que se devem, portanto, fundamentar as normas e costumes morais. Por isso, dizemos que a ética socrática é racionalista. O indivíduo que age conforme a razão age corretamente.

Detalhe de Hércules em luta contra Hidra (1824) — François-Joseph Bosio. Os antigos gregos desenvolveram uma ética racionalista na qual a razão deveria prevalecer sobre as paixões e os desejos individuais. O mal, as paixões desenfreadas, a iniquidade, a que os gregos denominavam hybris, eram representadas pelas personagens monstruosas que deveriam ser vencidas pelos heróis.

Platão desenvolveu o racionalismo ético iniciado por Sócrates, aprofundando a diferença entre corpo e alma. Argumentava que o corpo, por ser a sede dos desejos e paixões, muitas vezes desvia o indivíduo de seu caminho para o bem. Assim, defendeu a necessidade de purificação do mundo material para alcançar a ideia de bem. Segundo Platão, o ser humano não consegue caminhar em busca da perfeição agindo sozinho. Necessita, portanto, da sociedade, da pólis. No plano ético, o indivíduo bom é também o bom cidadão.
• Depois do período clássico grego, o estoicismo desenvolveu uma ética baseada na procura da paz interior e no autocontrole individual, fora dos contornos da vida política. Assim, o princípio da ética estoica é a apatia (apatheia), atitude de aceitação de tudo o que acontece, e o amor ao destino (amor fati), porque tudo faria parte de um plano superior guiado por uma razão universal que a tudo abrangeria. Desse modo atingia-se a ataraxia, ou imperturbabilidade da alma.
• A ética do epicurismo, de forma semelhante, defendia a atitude de desvio da dor e procura do prazer espiritual, do autodomínio e a paz de espírito (ataraxia).


Ética do equilíbrio
    Aristóteles também desenvolveu uma reflexão ética racionalista, mas sem o dualismo corpo-alma platônico. Procurou construir uma ética mais realista, mais próxima do indivíduo concreto. Para tanto, perguntou-se sobre o fim último do ser humano. Para o que tendemos? E respondeu: para a felicidade. Todos nós buscamos a felicidade.
      E o que entende Aristóteles por felicidade? Para o filósofo, a felicidade não se confunde com o simples prazer, o prazer das sensações ou o prazer proporcionado pela riqueza e pelo conforto material. A felicidade maior se encontraria na vida teórica, que promove o que há de mais especificamente humano: a razão.
      O indivíduo que se desenvolve no plano teórico, contemplativo, pode compreender a essência da felicidade e realizá-la de forma consciente. Mas isso seria privilégio de uma minoria. Segundo o filósofo, a pessoa comum, aquela que não pode se dedicar à atividade teórica, aprenderia a agir corretamente apenas pelo hábito.
      Assim, agir corretamente seria praticar as virtudes. E o que seria a virtude? Em sua obra Ética a Nicômaco, Aristóteles explica:

"A excelência moral [virtude moral], então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio-termo determinado pela razão. Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio-termo." (p. 42).

      A coragem, por exemplo, seria uma virtude situada entre a covardia (a deficiência) e a temeridade (o excesso). Assim, o filósofo propôs uma ética do meio-termo, na qual a virtude consistiria em procurar o ponto de equilíbrio entre o excesso e a deficiência.
      É importante notar que, tanto em Platão como em Aristóteles, a ética estava vinculada à vida política. Aristóteles refere-se mesmo à ética como sendo um ramo da política, já que a primeira trataria do bem-estar individual, enquanto a segundo se voltaria para o bem comum.


Idade Média: ética cristã
    O que diferencia radicalmente a ética cristã da ética grega são dois pontos:
abandono do racionalismo — a ética cristã deixou de lado a ideia de que é pela razão que se alcança a perfeição moral e centrou a busca dessa perfeição no amor a Deus e na boa vontade;
emergência da subjetividade — acentuando a tendência já esboçada na filosofia de estoicos e epicuristas, a ética cristã tratou a moral do ponto de vista estritamente pessoal, como uma relação entre cada indivíduo e Deus, isolando-o de sua condição social e atribuindo à subjetividade uma importância até então desconhecida.
      Os filósofos medievais herdaram alguns elementos da tradição filosófica grega, reconfigurando-os no interior de uma ética cristã. Santo Tomás de Aquino (século XIII), por exemplo, recuperou da ética aristotélica a ideia de felicidade como fim último do ser humano, mas cristianizou essa noção ao identificar Deus como a fonte dessa felicidade.

Os sete pecados mortais e os quatro novíssimos do homem — Hieronymus Bosch. Para Nietzsche, a moral cristã é uma moral de rebanho, de vencidos que perderam a vontade de potência. Noções como pecado, culpa e inferno seriam apenas formas de dominação da força vital individual.

Ética do livre-arbítrio
    Santo Agostinho (século III) transformou a ideia de purificação da alma, da filosofia de Platão, na ideia da necessidade de elevação ascética para compreender os desígnios de Deus. Também a ideia da imortalidade da alma, presente em Platão, foi retrabalhada por Agostinho na perspectiva cristã.
      Mas a ética agostiniana destaca-se por outro conceito. Ao tentar explicar como pode existir o mal se tudo vem de Deus — e Deus é bondade infinita —, Santo Agostinho introduziu a ideia de liberdade como livre-arbítrio, isto é, a noção de que cada indivíduo pode escolher livremente entre aproximar-se de Deus ou afastar-se dele. O afastamento de Deus é que seria o mal, de acordo com o filósofo.
      Com a noção de livre-arbítrio, de escolha individual, Agostinho acentuou o papel da subjetividade humana nas coisas do mundo. O livre-arbítrio é o meio pelo qual o ser humano realiza sua liberdade, mas, de acordo com a concepção cristã, cada indivíduo pode usá-lo bem ou mal — e é no mau uso que estaria a origem de todo o mal.
      De outro lado, o conceito de livre-arbítrio esvaziou a noção grega de liberdade como possibilidade de realização plena dos indivíduos em seu meio social. Em outras palavras, diminuiu a importância da dimensão social da liberdade, e esta passou a ter um caráter mais pessoal, subjetivo, individualista.


Idade Moderna: ética antropocêntrica
    Com o final da Idade Média, marcado pelo Renascimento, há uma retomada do humanismo. No terreno da reflexão ética, esse fato orientou uma nova concepção moral, centrada na autonomia humana.
      No Iluminismo, essa orientação fica mais evidente, pois os filósofos passam a defender a ideia de que a moral deve ser fundamentada não mais em valores religiosos, e sim naqueles oriundos da compreensão do que é a natureza humana.
      A concepção mais expressiva do período moderno a respeito da natureza humana é a de uma natureza racional, que encontra em Kant sua formulação mais bem-acabada.

A Declaração dos Direitos Humanos, do século XVIII, expressa a concepção de uma natureza humana racional, desenvolvida na Idade Moderna.


Ética do dever
    Em seus textos Crítica da razão prática e Fundamentação da metafísica dos costumes, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) aponta a razão humana como uma razão legisladora, capaz de elaborar normas universais, uma vez que constitui um predicado universal dos seres humanos. As normas morais teriam, portanto, sua origem na razão.
      Embora, em Kant, as normas morais devam ser obedecidas como deveres, a noção kantiana de dever confunde-se com a própria noção de liberdade, porque, em seu pensamento, o indivíduo que obedece a uma norma moral atende à liberdade da razão, isto é, àquilo que a razão, no uso de sua liberdade, determinou como correto. Dessa forma, a sujeição à norma moral é o reconhecimento de sua legalidade, conferida pelos próprios indivíduos racionais.
      Kant reforça essa ideia ao dizer que um ato só pode ser considerado moral quando praticado de forma autônoma, consciente, e por dever. Com isso, acentua o reconhecimento do dever como uma expressão da racionalidade humana, única fonte legítima da moralidade.
      A clareza dessa ideia é assim expressa pelo filósofo:

"Age apenas segundo uma máxima [um princípio] tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. (Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 59).

      Essa exigência é denominada por Kant de imperativo categórico, ou seja, é uma determinação imperativa, que deve ser observada sempre, em toda  qualquer decisão ou ato moral que venhamos a praticar. Em outras palavras, o que o filósofo quer dizer é que nossa ação deve ser tal que possa ser universalizada, ou seja, que possa ser realizada por todos os outros indivíduos sem prejuízo para a humanidade. Se não pode ser universalizada, não será moralmente correta e só acontecerá como exceção, nunca como regra. Vejamos como Kant se expressa a esse respeito:

"Se prestarmos atenção ao que se passa em nós mesmos sempre que transgredimos qualquer dever, descobriremos que, na realidade, não queremos que a nossa máxima se torne lei universal, porque isso nos é impossível; o contrário dela é que deve universalmente continuar a ser lei; nós tomamos apenas a liberdade de abrir nela uma exceção para nós." (Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 63).

      E por que realizamos atos contrários ao dever e, portanto, contrários à razão? Kant dirá que é porque nossa vontade é também afetada pelas inclinações, que são os desejos, as paixões, os medos, e não apenas pela razão. Por isso afirma que devemos educar a vontade para alcançar a boa vontade, que seria aquela guiada unicamente pela razão.
      Em resumo, a ética kantiana é uma ética formal ou formalista, pois postula o dever como norma universal, sem se preocupar com a condição individual, em que cada um se encontra diante desse dever. Em outras palavras, Kant nos dá aa forma geral da ação moralmente correta (o imperativo categórico), mas não diz nada acerca de seu conteúdo, não nos diz o que devemos fazer em cada situação concreta.


Idade Contemporânea: ética do indivíduo concreto
    A reflexão ética na Idade Contemporânea (séculos XIX e XX) desdobrou-se em uma série de concepções distintas acerca do que seja a moral e sua fundamentação. Seu ponto comum é a recusa de uma fundamentação exterior, transcendental para a moralidade, centrando no indivíduo concreto a origem dos valores e das normas morais.
      Um dos primeiros passos na formulação de uma ética do indivíduo concreto foi dado por Hegel, em sua crítica ao formalismo de Kant.


Fundamentação histórico-social
    Como diversos autores contemporâneos, o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831) questionou o formalismo da ética kantiana. Para ele, ao não levar em consideração a história e a relação do indivíduo com a sociedade, a ética de Kant não apreende os conflitos reais existentes nas decisões morais. Kant teria considerado a moral apenas como uma questão pessoal, íntima e subjetiva, na qual o sujeito tem que se decidir entre suas inclinações (desejos, medos etc.) e sua razão.
      De acordo com Hegel, portanto, a moralidade assume conteúdos diferenciados ao longo da história das sociedades, e a vontade individual seria apenas um dos elementos da vida ética de uma sociedade em seu conjunto. A moral seria o resultado da relação entre o indivíduo e o conjunto social. E em cada momento histórico se manifestaria tanto nos códigos normativos como, implicitamente, na cultura e nas instituições sociais. Desse modo, Hegel vinculou a ética à história e a sociedade.


Fundamentação ideológica
    O filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) entendia a moral como uma produção social que atende a determinada demanda da sociedade. E essa demanda deve contribuir para a regulação das relações sociais.
      Como as relações sociais se transformam ao longo da história, transformam-se também os indivíduos e as moralidades que regulam essas relações. Isso quer dizer que Marx compreende a moral como uma forma de consciência própria a cada momento do desenvolvimento da existência social.
      Assim, os valores que fundamentam as normas morais derivam da existência social e, portanto, não são absolutos, não valem de forma universal para todos os indivíduos e para todos os tempos. A liberdade, por exemplo, embora seja um valor universal, teve conteúdos diferenciados ao longo da história.
      Com base no conceito de liberdade, Marx mostra como os valores morais, que são concebidos em meio a determinada forma de existência social, também refletem essa existência. A liberdade, de acordo com a Declaração dos Direitos do Homem, do final do século XVIII, é o poder que o indivíduo tem de fazer tudo o que não prejudique os direitos de todos os outros. Na análise do filósofo, esse sentido de liberdade, forjado pela modernidade, reflete a existência de indivíduos isolados, competitivos, ou seja, formados por uma sociabilidade que estimula a competitividade e a concorrência como valores.
      Assim, a moral seria, para Marx, uma das formas assumidas pela ideologia dominante em sociedade, pois difunde determinados valores que são necessários à manutenção dessa sociedade. É a fundamentação ideológica da moral.


Ética discursiva
    Outra busca de respostas e fundamentação para uma ética contemporânea desenvolveu-se no campo da análise da linguagem.
      O filósofo alemão Jurgen Habermas (1929-) é um dos maiores representantes dessa corrente, com sua ética discursiva, ou seja, fundada no diálogo e no consenso entre os sujeitos. O que se buscaria nesse diálogo é a razão que, tendo sido reconhecida pelos participantes do diálogo, sirva como fundamentação última para a ação moral.
      O conceito de razão em Habermas não é o mesmo do Iluminismo. Trata-se de uma razão comunicativa, que não existe pronta nem acabada, mas que se constrói a partir de uma argumentação que leva a um entendimento entre os indivíduos. É uma razão interpessoal e não subjetiva; é uma razão processual e não definitiva e acabada.
      Para que essa argumentação leve a um entendimento real entre os indivíduos é necessário que o diálogo seja um diálogo livre, sem constrangimentos de qualquer ordem, e que o convencimento se dê a partir de argumentos válidos e coerentes.
      A ética discursiva de Habermas é, portanto, uma aposta na linguagem e na capacidade de entendimento entre as pessoas na busca de uma ética democrática e não autoritária, baseada em valores validados e consensualmente aceitos.
      A grande questão que permanece em relação a essa proposta ética é quanto às condições de realização de um diálogo livre e igualitário na sociedade de hoje, marcada pela desigualdade e pelo constrangimento.

Crianças refugiadas no Chade, África. Em termos de uma ética prática, segundo o filósofo australiano contemporâneo Peter Singer, "Devemos considerar as consequências tanto do que fazemos como do que decidimos não fazer. [...] o sofrimento dessas crianças, ou de seus pais, é tão terrível como nossa própria dor em situação semelhante; portanto não podemos fugir à responsabilidade por esse sofrimento pelo fato de que não tenhamos sido seus causadores. Onde tantos passam tanta necessidade, viver indulgentemente na luxúria não é moralmente neutro, e não basta que não tenhamos matado ninguém para que nos tornemos cidadãos decentes do mundo." (Writings on ethical life, p. xvi).


Sugestões de filmes

A Lista de Schindler (1993, EUA, direção de Steven Spielberg)
      Filme sobre industrial alemão que salva centenas de judeus poloneses durante a Segunda Guerra Mundial. Mostra como o componente moral de um indivíduo pode interferir nas suas decisões e escolhas, levando-o a ações fundamentais em sua vida e nas vidas de outros seres humanos.

Pulp Fiction (1994, EUA, direção de Quentin Tarantino)
      Filme polêmico sobre o mundo do crime, retratando a gratuidade da violência na atualidade. A violência torna-se banal, mata-se por qualquer motivo. Pode ser visto como uma crítica da perda dos valores morais na sociedade contemporânea.

Central do Brasil (1998, EUA, direção de Walter Salles Jr.)
      Filme que mostra a amizade entre uma mulher e um menino em busca de seu pai. Parte da apatia e da indiferença moral que caracteriza o Brasil de hoje, buscando recuperar a importância dos atos individuais no resgate de nossa cidadania.

Poderosa Afrodite (1995, EUA, direção de Woody Alien)
      Comédia centrada na relação de um homem (casado) com uma prostituta que, no passado, deu o filho para adoção. Ele deve decidir se conta ou não a ela que foi ele quem adotou a criança. Mostra ainda, de forma divertida, a prostituta de maneira não preconceituosa e a difícil relação no casamento, marcada pelo amor, pelos conflitos e pela rotina.

O jardineiro fiel (2005, EUA, direção de Fernando Meirelles)
      Diplomata britânico investiga a misteriosa morte de sua esposa no Quênia e acaba descobrindo a existência de pesquisas não éticas de indústria farmacêutica com a população pobre desse país. Interessante para descobrir as questões de bioética.
Compartilhar:
← Anterior Proxima → Inicio

Um comentário:

  1. oi boa noite? queria saber se ainda a tenpo pra fazer essas atividades, eu nao fiz ainda por que hoje que consegui acessar o site

    ResponderExcluir

Postagens mais lidas

O QUE É CIÊNCIA - Do método científico às leis científicas

      Comecemos nossa investigação sobre a ciência buscando o significado básico dessa palavra. O termo ciência vem do latim scientia , que...