Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

PATRÍSTICA - A matriz platônica de apoio à fé

      No processo de desenvolvimento do cristianismo, tornou-se necessário explicar seus preceitos às autoridades romanas e ao povo em geral. A Igreja Católica sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela força. Tinham de ser apresentados de maneira convincente, mediante um trabalho de pregação e conquista espiritual.
      Foi assim que os primeiros padres da Igreja empenharam-se na elaboração de diversos textos sobre a fé e a revelação cristãs. O conjunto desses textos ficou conhecido como patrística, por terem sido escritos principalmente por esses grandes padres da Igreja.


Santo Agostinho
    Aureliano Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste, província romana situada na África, e faleceu em Hipona, hoje localizada na Argélia. Nessa última cidade viria a ocupar o cargo de bispo da Igreja Católica.
      Em sua formação intelectual, Agostinho, professor de retórica em escolas romanas, despertou para a filosofia com a leitura de Cícero. Posteriormente, deixou-se influenciar pelo maniqueísmo, doutrina persa que afirmava ser o universo dominado por dois grandes princípios opostos, o bem e o mal, em uma incessante lutra entre si.

Cícero (106-43 a.C.) — orador e político romano que se inspirou no ecletismo, isto é, a busca de um acordo entre os ensinamentos das escolas platônica, aristotélica, hedonista etc.

      Mais tarde, já insatisfeito com o maniqueísmo, passou a lecionar em Roma e posteriormente em Milão. Nesse período entrou em contato com o ceticismo e, depois, com o neoplatonismo, movimento filosófico do período greco-romano, desenvolvido por pensadores inspirados em Platão, que se espalhou por diversas cidades do império romano, sendo marcado por sentimentos religiosos e crenças místicas.
      Cresceu e aprofundou-se então em Agostinho uma grande crise existencial, uma inquietação quase desesperada em busca de sentido para a vida. Foi nesse período crítico que ele se sentiu extremamente atraído pelas pregações de Santo Ambrósio, bispo de Milão. Pouco tempo depois, converteu-se ao cristianismo, tornando-se seu grande defensor pelo resto da vida.


Superioridade da alma
    Em sua obra, Agostinho argumenta em favor da supremacia do espírito sobre o corpo, a matéria. Para ele, a alma teria sido criada por Deus para reinar sobre o corpo, dirigindo-o para a prática do bem.
      O pecador, entretanto, utilizando-se do livre-arbítrio, costumaria inverter essa relação, fazendo o corpo assumir o governo da alma. Provocaria, com isso, a submissão do espírito à matéria, o que seria, para Agostinho, equivalente à subordinação do eterno ao transitório, da essência à aparência. A verdadeira liberdade estaria na harmonia das ações humanas com a vontade de Deus. Ser livre é servir a Deus, diz Agostinho, pois o prazer de pecar é a escravidão.


Boas obras ou graça divina?
    Segundo o filósofo, o ser humano que trilha a via do pecado só consegue retornar aos caminhos de Deus e da salvação mediante a combinação de seu esforço pessoal de vontade e a concessão, imprescindível, da graça divina. Sem a graça de Deus, o ser humano nada pode conseguir. Essa graça, no entanto, seria concedida apenas aos predestinados à salvação.
      A questão da graça, tal como colocada pelo filósofo, marcou profundamente o pensamento medieval cristão. E a doutrina da predestinação à salvação foi, posteriormente, adotada por alguns ramos da teologia protestante (Reforma Protestante).
      Na mesma época de Agostinho, outro teólogo, Pelágio, afirmava que a boa vontade e as boas obras humanas seriam suficientes para a salvação individual. Seus ensinamentos constituíram a doutrina do pelagianismo, contra a qual se colocou Agostinho. No concílio de Cartago do ano de 417, o papa Zózimo condenou o pelagianismo como heresia e adotou a concepção agostiniana de necessidade da graça divina, doada livremente por Deus aos seus eleitos.
      A condenação do pelagianismo explica-se pelo fato de que conservava a noção de autonomia da vida moral e humana, isto é, a noção de que o indivíduo pode salvar-se por si só, sendo bom e fazendo boas obras, sem a necessidade da ajuda divina. Essa noção chocava-se com a ideia de submissão total do ser humano ao Deus cristão, defendida pela Igreja. "O fato de assim a Igreja ter se pronunciado por tal doutrina assinalou o fim da ética pagã e de toda a filosofia helênica." (Pohlenz, citado em Reale e Antiseri, História da filosofia, v. 1, p. 433).
      Uma consequência disso é a forma como se passa a enfatizar a interioridade. Enquanto na filosofia grega o indivíduo se identificava com o cidadão (isto é, o ser humano social, político), a filosofia cristã agostiniana enfatiza no indivíduo sua vinculação pessoal com Deus, a responsabilidade de cada indivíduo pelos próprios atos e exalta a salvação individual.


Liberdade e pecado
    Outro aspecto fundamental da filosofia agostiniana é o entendimento de que a vontade é uma força que determina a vida e não uma função específica ligada ao intelecto, tal como diziam os gregos. Agostinho contrapõe-se, dessa forma, ao intelectualismo moral, que teve sua expressão máxima em Sócrates.
      Isso significa que, de acordo com Agostinho, a liberdade humana é própria da vontade e não da razão — e é nisso que reside a fonte do pecado. A pessoa peca porque usa de seu livre-arbítrio para satisfazer uma vontade , mesmo sabendo que tal atitude é pecaminosa. Nas palavras do filósofo, vejamos as causas mais comuns do pecado:

"O ouro, a prata, os corpos belos e todas as coisas são dotadas dum certo atrativo. O prazer de conveniência que se sente no contato da carne influi vivamente. Cads um dos outros sentidos encontra nos corpos uma modalidade que lhes corresponde. Do mesmo modo a honra temporal e o poder de mandar e dominar encerram também um brilho, donde igualmente nasce a avidez e a vingança. [...] A vida neste mundo seduz por causa duma certa medida de beleza que lhe é própria, e da harmonia que tem com todas as formosuras terrenas.
Por todos estes motivos e outros semelhantes, comete-se o pecado, porque, pela propensão imoderada para os bens inferiores, embora sejam bons, se abandonam outros melhores e mais elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à vossa verdade e à vossa lei." (Santo Agostinho, Confissões, p. 33).

      Por isso Agostinho afirma que o ser humano não pode ser autônomo em sua vida moral, isto é, deliberar livremente sobre sua conduta. No entanto, como o que conduz seus atos é a vontade e não a razão, o ser humano pode querer o mal e praticar o pecado, motivo pelo qual necessita da graça divina para se salvar.

Tentação de Adão e Eva (século XVI) — Tintoretto.


Precedência da fé
    Agostinho também discutiu a diferença entre fé cristã e razão, afirmando que a fé nos fez crer em coisas que nem sempre entendemos pela razão: "creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que creio conheço" (Santo Agostinho, De magistro, p. 319).
      Baseando-se no profeta bíblico Isaías, dizia ser necessário crer para compreender, pois a fé ilumina os caminhos da razão, e a compreensão nos confirma a crença posteriormente. Isso significa que, para Agostinho, a fé revela verdades ao ser humano de forma direta e intuitiva. Vem depois a razão, esclarecendo aquilo que a fé já antecipou. Há, portanto, para ele, uma precedência da fé sobre a razão.


Influência helenística
    O pensamento agostiniano (de Agostinho) reflete, em grande medida, os principais passos de sua trajetória intelectual anterior à conversão ao catolicismo, quando sofreu a influência do helenismo. Vejamos alguns elementos.
• Do maniqueísmo o filósofo herdou uma concepção dualista no âmbito moral, simbolizada pela luta entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a alma e o corpo. Nesse sentido, dizia que o ser humano tem uma inclinação natural para o mal, para os vícios, para o pecado. Insistia em que já nascemos pecadores (pecado original) e somente um esforço consciente pode nos fazer superar essa deficiência "natural". Considerando o mal como o afastamento de Deus, defendia a necessidade de uma intensa educação religiosa, com a finalidade de reduzir essa distância.
• Do ceticismo ficou a permanente desconfiança nos dados dos sentidos, isto é, no conhecimento sensorial, que nos apresenta uma multidão de seres mutáveis, flutuantes e transitórios.
• Do platonismo Agostinho assimilou a concepção de que a verdade, como conhecimento eterno, deveria ser buscada intelectualmente no "mundo das ideias". Por isso defendeu a via do autoconhecimento, o caminho da interioridade, como instrumento legítimo para a busca da verdade. Assim, somente o íntimo de nossa alma, iluminada por Deus, poderia atingir a verdade das coisas. Da mesma forma que os olhos do corpo necessitam da luz do sol para enxergar os objetos do mundo sensível, os "olhos da alma" necessitam da luz divina para visualizar as verdades eternas da sabedoria.
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