Pensar a vida e viver o pensamento, de forma profunda e radical. Isso é filosofar.

COMO ANDA NOSSA FELICIDADE? O que dizem a história e a ciência

      A maioria dos problemas com os quais se preocuparam os grandes filósofos da história ainda ecoa nos consultórios de psicologia, onde especialistas procuram aliviar o sofrimento de pessoas de todas as idades e apoiá-las para que construam uma vida mais feliz. E boa parte desses problemas ainda merece atenção especial como temas éticos e sociais importantes.

Estudo de jovem para a obra Sonho de felicidade (1819) — Pierre-Paul Prud'hon. Veja mais fotografias como esta aqui


Felicidade na história
    Nos séculos seguintes à Antiguidade, diversos pensadores voltaram às doutrinas gregas, reformulando-as nos termos de sua época e de sua perspectiva particular. Por isso costuma-se dizer que a filosofia é uma conversação que nunca acaba. Muda o mundo, modificam-se as pessoas. Surgem novas percepções, novos valores, novas necessidades.
      Isso quer dizer que, quando filosofamos, devemos também considerar nosso objeto de estudo (nesse caso, a felicidade) no tempo e no espaço, isto é, na história. Devemos sempre nos perguntar: o que permaneceu e o que mudou com o passar do tempo e as transformações sociais e culturais de cada época?
      Segundo alguns estudiosos, três ideais ou valores foram ganhando importância ao longo da história nas sociedades ocidentais e são, hoje, considerados elementos fundamentais da felicidade individual e coletiva:
amor ao próximo — com o surgimento do cristianismo, o amor, que havia sido em parte relegado a um segundo plano pelos gregos, ganhou o estatuto ou condição de mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas e amar o próximo como a si mesmo (cf. Mateus, 22, 34 a 40). Disseminou-se então, progressivamente, a noção de igualdade entre todos os seres humanos, pois o Deus cristão os teria criado a todos para reinarem sobre a Terra e os amaria igualmente, impondo o respeito por toda a humanidade. Com mais amor e menos egoísmo, as pessoas deveriam se sentir mais felizes.
liberdade — no período do Iluminismo (século XVIII), ganhou especial relevância o tema da liberdade em seus diversos sentidos: a liberdade de ser (diferente de ou contra a natureza), a liberdade de pensar por si próprio (liberdade de consciência), a liberdade de querer e agir (liberdade política e autonomia). Desde então, tornou-se impossível pensar que uma pessoa possa ser feliz sem ser livre;
bem comum — a ideia de felicidade como bem comum (isto é, para toda a sociedade) já existia em Platão. A felicidade não pode ser apenas minha; tem de ser de todos. Mas é a partir do Iluminismo — e da assimilação da noção de amor ao próximo pelas sociedades fundadas em valores cristãos — que esse ideal passou a ser amplamente defendido. Tanto assim que se tornou um dos princípios fundamentais do mundo ocidental contemporâneo, junto com a liberdade, como se expressa no segundo parágrafo da Declaração de Independência dos Estados Unidos: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade". (Disponível no site Acesso em: 13 dez. 2007).


Felicidade nas ciências
    Além da história, para realizar uma boa investigação filosófica não podemos deixar de considerar o que as diversas ciências estão dizendo a respeito de nosso objeto de estudo e reflexão, seja ele qual for. No caso da felicidade, resultados de pesquisas científicas realizadas em diversas áreas, como psicologia, medicina, sociologia e economia, podem lançar novas luzes sobre nossa investigação e ajudar-nos a desfazer alguns mitos sobre esse tema.
      Como o ser humano é multidimensional, é preciso abordá-lo a partir das diversas dimensões que o constituem e procurar uma visão totalizada — e a filosofia é especialista nisso, como você irá perceber ao longo do livro.
      Vejamos, então, algumas dessas abordagens (trata-se do resumo de alguns conceitos contidos em Layard, La felicidad: lecciones de una nueva ciencia).

Pessoas praticam tai chi chuan em Pequim, China. O velho ideal grego de equilíbrio entre a mente e o corpo ficou célebre nas palavras do poeta latino Juvenal (c. 60-128): "mente sã em corpo são" (em latim, mens sana in corpore sano).


Plano físico
    A felicidade parece ter mesmo uma dimensão física, que pode ser identificada e medida em termos de ondas cerebrais (os epicuristas adorariam saber disso). Estudos de neurofisiologia realizados nos últimos anos em pessoas de todas as idades, inclusive bebês, apontam que a atividade de certa parte do cérebro aumenta quando a pessoa experimenta sensações ou sentimentos agradáveis ou se expressa de maneira positiva, como ao sorrir. Também há evidências científicas de que algumas substâncias produzidas pelo nosso corpo estão relacionadas com as sensações de paz, prazer e bem-estar de um indivíduo.
      Alguns estudos nos fazem igualmente supor que possa sentir um fator de predisposição genética para experimentar a vida de maneira mais positiva que outras. Gêmeos idênticos (que têm material genético idêntico) mostraram um grau de felicidade bastante similar, mesmo quando criados em lares distintos, o que não ocorre com os não idênticos (em que apenas metade dos genes é idêntica). Essa é uma questão complexa, que deve ser tratada com muito cuidado.
      A saúde física também é um fator importante para nossa felicidade. No entanto, mesmo em condições desfavoráveis de saúde, como demonstram algumas investigações, as pessoas, depois de algum tempo, tendem a se adaptar às limitações físicas surgidas durante suas vidas, podendo manter um bom nível de satisfação a partir de então.
      A relação saúde-felicidade pode seguir, porém, direção inversa: resultados de pesquisas recentes revelam que a pessoa feliz tende a ser mais saudável, a ter um sistema imunológico mais forte e a viver mais anos. Ou seja, em vez de ser o físico que determina o psíquico, é o psíquico que determina o físico, o que parece inverter a lógica até há pouco tempo predominante nas ciências.
      Conforme veremos durante este livro, a relação corpo-mente é uma questão bastante polêmica na história da filosofia.


Plano psicológico
    Desde o surgimento da psicanálise, com Sigmund Freud (pensador), entende-se que os primeiros anos de vida são fundamentais para o modo como uma pessoa irá experimentar sua existência. Episódios traumáticos, dolorosos podem limitar suas possibilidades de desenvolver vivências felizes.
      Por outro lado, também se considera que os modelos psicológicos e de conduta que a pessoa encontra em seu meio familiar imprimem-se em sua psique (ou em seu cérebro) e tendem a ser repetidos durante toda a sua vida. Portanto, se esses modelos são negativos, limitantes, existe maior probabilidade de que ela desenvolva uma existência infeliz, se não for consciente desses padrões e não puder retrabalhá-los.

Psique — estrutura mental ou psicológica de uma pessoa, geralmente entendida como parte distinta do corpo material.

      De fato, vários estudos no campo da psicologia têm confirmado que saber administrar os próprios pensamentos é fator crucial para a felicidade de um indivíduo. A dimensão interior — o conjunto de crenças, valores, estados de ânimo, maneira de ver a vida — influi de forma contundente na construção de uma existência feliz ou infeliz (quase toda a filosofia grega aplaudiria em pé essa conclusão). Muitas vezes, o que se chama de "sorte" não é outra coisa senão o resultado de um estado de ânimo mais aberto e propício para perceber e aproveitar as oportunidades que surgem na vida. Daí a importância do auto reconhecimento.


Plano econômico
    Existe também uma tendência em acreditar que a melhora no nível de renda torna uma pessoa mais feliz. Em outras palavras, o dinheiro traria felicidade. Trata-se de uma visão economicista do tema. Essa noção, no entanto, tem sido relativizada a partir dos resultados de certos estudos.

Economicista — que supervaloriza os aspectos econômicos de um tema.

      O que se sabe, sem dúvida, é que há maior dificuldade em levar uma vida digna e, portanto, feliz quando se está na miséria. Em contrapartida, quando os rendimentos são superiores a determinado patamar, pesquisadores têm observado que o incremento da percepção de felicidade não é proporcional ao enriquecimento das pessoas. É o que tem ocorrido nos países ricos, onde, embora o nível de renda tenha aumentado significativamente nos últimos 50 anos, a percepção da própria felicidade não se elevou, ou subiu bem menos.
      O trabalho é outro fator fundamental na composição global de felicidade. Fonte do sustento material e meio de realização individual, a atividade profissional que um indivíduo desempenha representa, ao mesmo tempo, sua contribuição para os entes queridos e para a sociedade em geral. Por isso o desemprego causa tanta infelicidade: não é apenas pela perda econômica que representa, mas também porque afeta substancialmente a autoestima das pessoas e suas relações sociais.


Plano social
    Somos seres profundamente sociais. Estudos confirmam que tanto a vida familiar e conjugal bem como o convício com os amigos e a relação com a comunidade são muito importantes para a constituição de nossa identidade pessoal e do sentido de nossas vidas. Esses dois ingredientes definem em grande medida a forma com que nos posicionamos em relação ao mundo e nossas possibilidades de sermos felizes.
      No entanto, pesquisas indicam que boa parte da insatisfação de um indivíduo tem consigo mesmo ou com sua vida vem da comparação social. As pessoas não param de se comparar entre si, e isso gera muita infelicidade. Se o outro tem mais ou é melhor em algo, fico triste, deprimido; se sou eu quem tem mais ou é melhor, fico feliz. Parece que a vida seria muito melhor se não houvesse tanta necessidade de afirmação pessoal e de competição.
      O individualismo — a defesa exagerada dos interesses pessoais em detrimento dos interesses do outro — tende a gerar um mal-estar social. De acordo com estudos nos campos da psicologia, da antropologia e da biologia, a cooperação (ou um equilíbrio entre competição e cooperação) costuma trazes melhores resultados, tanto para o indivíduo como para o todo. Algumas pesquisas também indicam que, quando as pessoas se preocupam mais com o bem dos outros, expressando menos ansiedade em relação ao benefício próprio, são mais felizes.

O bom samaritano — Antonio Zanchi (Sotheby's Institute of Art, Londres, Reino Unido). É difícil ser feliz quando outros ao nosso lado sofrem ou sentem dor.


Conclusão
    Pronto, já temos uma boa quantidade de elementos para formar uma ideia, mesmo que provisória, sobre os dois temas básicos tratados neste capítulo: a filosofia e a felicidade. Com relação à filosofia e ao filosofar, voltaremos a eles em outro post. Quanto à felicidade, cabe aqui uma reflexão final.
      A busca desenfreada de felicidade individual na sociedade contemporânea é sinal de que grande parte das pessoas tomou um rumo equivocado. Concordamos — nós, os autores deste livro — com o economista inglês Richard Layard (1934-) quando ele diz que uma sociedade não pode prosperar sem certa sensação de compartilhar objetivos, de bem comum. Quando a única meta das pessoas é alcançar o melhor apenas para si mesma, a vida torna-se estressante demais, solitária demais, pobre demais, e abre espaço para a entrada da infelicidade.
      Na mesma direção, o filósofo francês André Comte-Sponville (1952-) costuma recomendar às pessoas que se preocupem menos com a própria felicidade e um pouco mais com a dos outros; que esperem um pouco menos e amem um pouco mais.
      O pensador inglês Jeremy Bentham (1748-1832) certamente concordaria com isso, como atesta esta bela mensagem que ele enviou a uma jovem na data de seu aniversário:

"Crie toda a felicidade que possas; suprima toda a infelicidade que consigas. Cada dia te dará a oportunidade de agregar algo ao bem-estar dos demais ou de mitigar um pouco suas dores. E cada grão de felicidade que semeies no peito alheio germinará em teu próprio peito, ao passo de cada dor que arranques dos pensamentos e sentimentos de teus semelhantes será substituída pela paz e alegria mais belas do santuário de tua alma" (Citado em Layard, La felicidad: lecciones de una nueva ciencia, p. 230; tradução dos autores).


Sugestões de filmes

A festa de Babette (1987, Dinamarca, direção de Gabriel Axel)
      História situada no século XIX. Mulher francesa vai viver em vilarejo dinamarquês, de costumes muito austeros e religiosos. Lá prepara uma surpresa para seus habitantes, ligada a um dos maiores prazeres do ser humano: a comida.


Fahrenheit 451 (1966, Reino Unido, direção de François Truffaut)
      Ficção científica baseada em livro homônimo d Ray Bradbury. Em uma sociedade futura, de regime totalitário, os livros são proibidos, porque se acredita que a leitura é perda de tempo e impede as pessoas de serem felizes. Alguns passam a ler escondido.


O fabuloso destino de Amélie Poulain (2001, França, direção de Jean-Pierre Jeunet)
      Comédia tocante sobre moça que acha uma caixa e busca seu dono até encontrá-lo. A felicidade que este demonstra ao rever seus objetos contagia a jovem e muda sua visão de mundo.


      Após tudo o que estudamos neste post, você acha que é possível ser plenamente feliz quando se busca apenas a felicidade individual?
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