SANTO AGOSTINHO
Agostinho (354-430) queria desesperadamente conhecer a verdade. Como cristão, acreditava em Deus. Mas sua crença deixou muitas perguntas sem resposta. O que Deus queria que ele fizesse? Como deveria viver? No que deveria acreditar? Ele passou a maior parte da sua vida pensando e escrevendo sobre essas questões. Os riscos eram muito altos. Para aqueles que acreditam na possibilidade de passar a eternidade no inferno, cometer um erro filosófico parece ter consequências terríveis. Como pensava o próprio Agostinho, ele poderia acabar queimando no enxofre para sempre se estivesse errado. Um dos problemas sobre os quais ele se debruçava era por que Deus permitiu o mal no mundo. A resposta dele ainda é popular entre muitos crentes.
No período medieval, aproximadamente do século V ao século XV, a filosofia e a religião estiveram intimamente ligadas. Os filósofos medievais estudaram os filósofos gregos antigos, como Platão e Aristóteles, mas adaptaram suas ideias, aplicando-as a suas próprias religiões. A maioria desses filósofos era cristã, porém houve importantes filósofos judeus e árabes, como Maimônides e Avicena. Agostinho, que muito tempo depois foi canonizado, destaca-se como um dos maiores.
Agostinho nasceu em Tagaste, norte da África, onde hoje é a Argélia, mas na época ainda fazia parte do Império Romano. Seu nome verdadeiro era Aurélio Agostinho (em latim, Aurelius Augustinus), embora hoje seja praticamente conhecido como Santo Agostinho ou Agostinho de Hipona (por causa da última cidade em que viveu).
A mãe de Agostinho era cristã, enquanto o pai seguia uma religião local. Aos trinta anos, depois das loucuras que fez na adolescência e no início da idade adulta, quando teve um filho com uma amante, Agostinho converteu-se ao cristianismo e acabou tornando-se bispo de Hipona. É sabido que ele pediu a Deus para deixar de ter desejos sexuais, "mas não agora", pois ainda apreciava muito os prazeres mundanos. Em um estágio mais avançado da vida, Agostinho escreveu muitos livros, incluindo Confissões, A cidade de Deus e quase mais cem outros, baseando-se fortemente na sabedoria de Platão, mas conferindo-lhe traços cristãos.
A maioria dos cristãos pensa que Deus tem poderes especiais: que ele ou ela é o supremo bem, sabe tudo e pode fazer tudo. Tudo isso faz parte da definição de "Deus", que não seria Deus sem essas qualidades. Deus é descrito de formas semelhantes em muitas outras religiões, mas Agostinho só tinha interesse na perspectiva cristã.
Quem acredita nesse Deus terá ainda de admitir que existe muito sofrimento no mundo. Seria muito difícil negar isso. Parte desse sofrimento é o resultado do mal natural, como terremotos e doenças. Parte deve-se ao mal moral: o mal causado pelos seres humanos. Assassinato e tortura são dois exemplos claros do mal moral. Muito antes de Agostinho começar a escrever, o filósofo grego Epicuro reconheceu que isso apresenta um problema. Como poderia um Deus bom e todo-poderoso tolerar o mal? Se Deus não pode impedir que isso aconteça, então não pode ser verdadeiramente todo-poderoso. Há limites no que ele pode fazer. Mas, se Deus é todo-poderoso e parece não querer deter o mal, como pode ser ele o supremo bem? Isso não parecia fazer sentido, e é algo que confunde muitas pessoas até hoje. Agostinho concentrou-se no mal moral. Percebeu que a ideia de um Deus que sabe do acontecimento desse tipo de mal e não faz nada para evitá-lo é difícil de entender. Ele não se satisfazia com a ideia de que Deus age de maneira misteriosa, que está além da compreensão humana. Ele queria respostas.
Imagine um assassino prestes a matar sua vítima; ele está diante dela com uma faca afiada. Um ato verdadeiramente mau está prestes a acontecer. Contudo, sabemos que Deus é poderoso o suficiente para deter essa ação. Para isso, bastariam algumas alterações mínimas nos neurônios do pretenso assassino. Ou Deus poderia deixar todas as facas moles e borrachudas toda vez que alguém tentasse usá-las como uma arma mortal. Desse modo, as facas resvalariam na vítima, e ninguém ficaria ferido. Deus tem de saber o que está acontecendo, pois ele sabe absolutamente tudo. Nada lhe escapa. E tem de não desejar que o mal aconteça, pois isso faz parte do que significa ser o bem supremo. Mesmo assim, assassinos matam suas vítimas. Facas de aço não viram borracha. Não há nenhum lampejo de luz, nenhum trovão, a arma não cai milagrosamente da mão do assassino, nem o assassino muda de ideia no último minuto. O que acontece, então?
Este é o clássico problema do mal, o problema de explicar por que Deus permite tais acontecimentos. Presume-se que, se tudo vem de Deus, então o mal deve vir de Deus também. Em certo sentido, Deus deve ter desejado que isso acontecesse.
Quando era mais jovem, Agostinho tinha uma maneira de evitar a crença de que Deus queria que o mal acontecesse. Ele era maniqueísta. O maniqueísmo foi uma religião que surgiu na Pérsia (hoje, Irã). Os maniqueístas acreditavam que Deus não era onipotente. Ao contrário, havia uma luta eterna entre forças idênticas, o bem e o mal. Portanto, nessa visão, Deus e Satã estavam presos numa batalha contínua pelo controle. Os dois eram extremamente fortes, mas nenhum deles era poderoso o suficiente para destruir o outro. Em determinados lugares e determinados momentos, o mal se sobressaía, mas nunca durante muito tempo. A bondade acabaria retornando, triunfante, mais uma vez. Isso explicava por que essas coisas terríveis aconteciam: o mal é proveniente das forças obscuras, e a bondade, das forças da luz.
Os maniqueístas acreditavam que a bondade surgia dentro de nós, que ela vinha da alma. Já o mal vinha do corpo, com todos os seus pontos fracos, desejos e a tendência de nos levar para o mau caminho. Isso explicava por que as pessoas, às vezes, voltavam-se para as más ações.
O problema do mal não era tão grande para os maniqueístas porque eles não aceitavam a ideia de que Deus fosse tão poderoso a ponto de controlar todos os aspectos da realidade. Se Deus não tinha poder sobre tudo, então, além de não ser responsável pela existência do mal, ninguém poderia culpá-lo por não conseguir evitar o mal. Os maniqueístas teriam explicado as ações do assassino como forças das trevas agindo dentro dele, levando-o na direção do mal. Essas forças seriam tão poderosas no indivíduo que as forças da luz não poderiam derrotá-las.
Em uma idade mais avançada, Agostinho rejeitou a abordagem maniqueísta. Ele não conseguia entender por que a luta entre o bem e o mal seria interminável. Por que Deus não vencia a batalha? Não era certo que as forças do bem era mais fortes que as do mal? Por mais que os cristãos aceitassem a possível existência de forças do mal, elas nunca são tão grandes quanto a força de Deus. Mas se Deus era verdadeiramente todo-poderoso, como Agostinho passou a acreditar, os problemas do mal permaneceriam. Por que Deus permitia o mal? Por que havia tanto mal? A solução não é nada fácil. Agostinho pensou exaustivamente sobre esses problemas, e sua principal solução baseou-se na existência do livre-arbítrio: a capacidade humana de decidir o que fazer. Esse argumento costuma ser chamado de defesa do livre-arbítrio e trata-se de uma teodiceia ― a tentativa de explicar e defender a ideia de como um Deus bom permitia o sofrimento.
Deus concede-nos o livre arbítrio. Você pode escolher, por exemplo, se vai ou não ler a próxima frase. Esta é a sua escolha. Se não há ninguém forçando você a continuar lendo, então você é livre para parar. Agostinho considerava que ter livre-arbítrio é bom, já que nos permite agir moralmente. Nós podemos decidir ser bons; para ele, isso significava seguir os mandamentos de Deus, principalmente os dez mandamentos, além do "amor ao próximo" pregado por Jesus Cristo. Porém, a consequência de termos livre-arbítrio é que podemos decidir fazer o mal. Podemos ser desencaminhados e praticar más ações, como mentir, roubar, ferir ou até matar as pessoas. Isso costuma acontecer quando nossas emoções subjugam a razão. Desenvolvemos fortes desejos por objetos e por dinheiro. Cedemos à luxúria e somos distanciados de Deus e seus mandamentos.
Agostinho acreditava que o nosso lado racional deveria manter as paixões sob controle, visão que ele compartilhava com Platão. Os seres humanos, ao contrário dos animais, têm o poder da razão e deveriam usá-lo. Se Deus tivesse nos programado de modo a sempre escolhermos o bem sobre o mal, não causaríamos nenhum dano, mas também não seríamos livres e não poderíamos usar a razão para decidir o que fazer. Deus poderia ter-nos feito desse modo. Agostinho argumentava que foi muito melhor termos escolha. Do contrário, seríamos como marionetes nas mãos de Deus, que controlaria nossos fios para que sempre nos comportássemos bem. Não haveria sentido nenhum em pensar sobre como se comportar, pois sempre escolheríamos automaticamente a opção do bem.
Então, Deus é poderoso o suficiente para evitar todo o mal, mas a existência do mal não está diretamente ligada a Deus. O mal moral é resultado das nossas escolhas. Agostinho acreditava que ele também era parcialmente o resultado de escolhas de Adão e Eva. Assim como muitos cristãos daquela época, ele estava convencido de que as coisas deram terrivelmente errado no Jardim do Éden, tal como descrito no primeiro livro da Bíblia, o Gênesis. Quando Adão e Eva comeram o fruto da árvore do conhecimento e traíram a Deus, trouxeram o pecado para o mundo. Esse pecado, chamado de pecado original, não foi algo que afetou apenas suas próprias vidas. Agostinho afirmava que o pecado original era transmitido de geração a geração pelo ato da reprodução sexual. Até mesmo uma criança, em seus primeiros momentos de vida, carrega traços desse pecado. O pecado original nos torna mais propensos ao pecado. Para muitos leitores de hoje, essa ideia de que devemos nos culpar e ser punidos por ações cometidas por outros é muito difícil de aceitar. Isso parece injusto. No entanto, a ideia de que o mal é resultado do nosso livre-arbítrio, e não diretamente de Deus, ainda convence muitos fiéis ― ela permite que estes acreditem em um Deus onipotente, onipresente, que só faz o bem.
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